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Com o objetivo de realizar pesquisa de campo na Guiana Francesa, fui até Albina62, para cruzar a fronteira, pois ela se localiza na margem surinamesa do rio Marowijne, em frente à cidade francesa de Saint Laurent du Maroni. O trajeto de Paramaribo até lá foi feito de táxi63, pois não havia transporte público que fizesse o percurso — este era feito por qualquer pessoa,

60 Reencontrei essa mulher em outro contexto, em 2012: estava grávida e era cozinheira no garimpo em que

trabalhava seu companheiro, e, diferente de quando a conheci, já não atuava na prostituição.

61 Composto, na época, por um garimpeiro, um pastor da Assembleia de Deus, um proprietário de hotel em

Paramaribo, um dono de comércio em área de garimpo e um dono de máquina de extração de ouro.

62 Pertencente ao distrito de Marowijne, Albina é cidade estratégica na passagem de brasileiros a caminho de

algumas áreas de garimpo. É composta principalmente por populações indígenas e Noirs Marrons Ndjuka.

63 Um taxista que eu já conhecia em Paramaribo: um jovem surinamês de origem javanesa, casado com uma

brasileira que foi ainda criança para o Suriname. Ele, como boa parte dos surinameses que trabalham na região do Klein Belém, falava português.

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fosse taxista ou alguém que trabalhasse de maneira informal no transporte de cargas e passageiros64. A viagem, que durou aproximadamente quatro horas, foi bastante cansativa, porque apenas uma parte da estrada era asfaltada65 e, no resto, de chão batido, havia muita poeira, pois máquinas preparavam o solo para ser asfaltado.

No caminho havia uma barreira policial surinamesa, e fomos parados. O policial perguntou, em português, se eu falava taki-taki; diante da resposta negativa, iniciou uma conversa nessa língua com o taxista, que passou a traduzir. Tentei responder diretamente às suas questões em inglês, mas nem sempre ele entendia, ou eu não sabia lhe explicar direito, e o taxista traduzia. Enfim: pelas regras da imigração do Suriname era preciso ter passado pelo seu serviço de imigração para solicitar um carimbo no passaporte66, o qual permitiria ficar mais dois meses no país. Como eu já estava em território surinamês havia quase três meses, o policial avisou que eu estava em situação ilegal e não poderia seguir viagem, e me pediu para descer do carro e acompanhá-lo ao escritório, do outro lado da pista. Lá, seu superior olhou o passaporte e lhe disse para “olhar melhor o passaporte da próxima vez, pois ela tem um visa da França e está voltando para casa” — segundo a tradução que o taxista fez, sorrindo.

Chegamos a Albina no final da manhã. Nessa cidade a circulação fronteiriça é intensa, feita em canoas conduzidas pelos Noirs Marrons através do Marowijne (eles são responsáveis pela maior parte do transporte fluvial realizado no país, pois conhecem melhor que ninguém os rios no meio da floresta, sobretudo nas áreas de difícil acesso). Os seus moradores também atravessam constantemente para Saint Laurent du Maroni; esta, na verdade, é como se fosse extensão do Suriname, e o rio estreito, uma “pequena rua” a ser cruzada em uns cinco minutos. Mas, para os não moradores, antes de atravessá-lo é necessário passar pela aduana surinamesa, que fica um pouco afastada do local onde atracam as canoas, de muita movimentação. Desci da van na margem do rio, em meio à grande confusão de condutores e passageiros67, e fui para a aduana, na frente da qual peguei, depois, a canoa para atravessá-lo.

64 No Suriname, nesse tipo de transporte o preço é quase tabelado, mas é necessário negociar com antecedência;

depois de acertados o valor, a data e a hora, o motorista passa no local para pegar o passageiro, e, dependendo do que foi combinado, outras pessoas, desconhecidas, vão na mesma lotação (covoiturage).

65 Segundo Maria Stela de Campos França (Apanjaht: a expressão da sociedade plural no Suriname. 228p. Tese

[Doutorado em Antropologia Social] - Universidade de Brasília, Brasília, 2004), Albina, durante a guerra civil ocorrida na década de 1980 no Suriname, teve parte de suas estradas, que a ligava a Paramaribo, destruídas por bombas, para dificultar o pouso de aeronaves nas suas proximidades.

66 É um procedimento obrigatório, mas não muito explícito, pois a informação que fica à disposição é de que os

brasileiros podem permanecer no Suriname como turistas por três meses, e em nenhum momento é mencionado que a partir de um mês é preciso solicitar um carimbo no passaporte para ficar mais dois meses. Na primeira viagem ao Suriname, em 2007, cuja estadia foi de 35 dias, meu passaporte não foi carimbado e a saída do país ocorreu normalmente, sem questionamentos pela ausência do procedimento.

67 Onde atracam as canoas há disputa entre os canoeiros pelos passageiros que atravessarão o rio e entre motoristas

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Apesar de a fronteira parecer invisível, em razão do vaivém de canoas e de a vida cotidiana de muitos ali estar atrelada aos dois lados do rio, avisei ao canoeiro que eu precisava oficializar minha entrada na Guiana Francesa, e ele me levou para a aduana. Nela, olharam atentamente o meu passaporte, o carimbo de visto da França metropolitana e a Carta de Séjour, carimbaram a data de entrada naquele e me liberaram para entrar. Saí dali com a perspectiva de encontrar um táxi ou um ônibus para ir até a rodoviária, pois meu destino final era Caiena68 — no entanto, não havia por perto estabelecimento ou alguém que pudesse indicar a direção do local onde pegar a van para essa cidade, pois a movimentação de canoas e carros, que na margem francesa do Marowijne é idêntica à da surinamesa (Figura 2), ficava um pouco antes da aduana, numa parte sem controle administrativo.

segui-los. É meio confuso para quem não está acostumado, pois eles gritam para ganhar a atenção e influenciar a escolha das pessoas, ao mesmo tempo que começam a tirar-lhes das mãos as bagagens sem que elas saibam exatamente o que está ocorrendo; quando percebem, suas coisas já estão dentro da canoa ou da van e praticamente são obrigadas a acompanhá-los. Parece uma desordem total, ninguém ouve ninguém, mas há todo um código de negociação que só eles entendem. O certo é que assim que as pessoas estão sentadas os gritos cessam e o perdedor sai em busca de outro passageiro. Senti todo esse furor ao retornar da Guiana Francesa: ao descer da van na margem do rio, fui cercada por três homens, que falavam em voz alta que era para pegar a sua canoa, mas não se falavam entre si. Fiquei um pouco assustada, pois um deles pegou a minha mochila e, antes que eu pudesse dizer não, eu já estava dentro da canoa. Enfim, não escolhi que canoa pegar, apenas segui o homem que estava com minha mochila, tentando recuperá-la, enquanto os outros dois, atrás, indicavam-me a sua.

68 Não foi realizada pesquisa em Saint Laurent du Maroni porque não foi possível contatar pessoas dessa cidade

que pudessem passar informações ou ajudar a consegui-las, o que colocava a necessidade de um local seguro para ficar e de tempo para localizar mulheres brasileiras profissionais do sexo. Além disso, havia a ideia de que em Caiena o campo daria as respostas em relação à Guiana Francesa. Mas a prostituição de migrante é uma realidade ali: “Aujourd’hui, la prostitution à St Laurent semble être une prostitution de rue traditionnelle dans une bourgade peu animée. Les femmes sont originaires du Surinam, du Guyana et de République Dominicaine, et dans une moindre mesure du Brésil” (GUILLEMAUT, Françoise; SAMSON, Martine Schutz. Travail du sexe et mobilité

en Guyane, des défis pour la lutte contre le VIH/sida. Antilles-Guyane: Ministère du Travail, de l’Emploi et de la

Santé/Direction Générale de la Santé – DGS/RI 2, Bureau des infections par le VIH, les IST et les hépatites, 2011, p.26).

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Figura 2: Saint Laurent du Maroni: local onde atracam canoas que

fazem a travessia do rio Marowijne entre essa cidade e Albina (fronteira da Guiana Francesa com o Suriname) (2011)69.

Encontrei-me no meio de quase nada, e então percebi um carro velho, sem portas, aproximando-se; dele desceu um homem de aproximadamente 60 anos70, que informou o caminho e disse estar indo na mesma direção, que poderia me deixar perto do meu destino, e eu aceitei. Era aproximadamente meio-dia, momento do dia que na região amazônica é bastante quente e que, na Guiana Francesa, quase nada funciona (mesmo repartições públicas), o que me fez esperar três horas para iniciar o percurso em direção a Caiena. Até chegar a essa cidade, e já próximo a ela, houve eficiente fiscalização da Gendarmerie: por eu ser brasileira e precisar de visto para entrar na Guiana Francesa71, nas duas vezes em que paramos para fiscalização (uma itinerante e uma em um posto fixo), meus documentos foram alvo de observação mais atenta.

Nos dias em que fiquei em Caiena pude visitar locais de maior concentração de brasileiros, como os bairros Matinha e Cabassou, e a praia Montjoly, aos quais fui graças à ajuda de três brasileiros, que me levaram de carro72. O contato com dois deles foi possível porque no Suriname conheci um brasileiro morador de Caiena, e ele passou o telefone deles (os

69 Com exceção de algumas imagens retiradas do Facebook (o que é indicado em nota de rodapé), todas as

fotografias aqui apresentadas são de minha autoria, e em parênteses está o ano em que cada uma foi feita.

70 Um haitiano que havia migrado décadas atrás para a Guiana Francesa.

71 Os brasileiros podem entrar na França metropolitana apenas com o passaporte, ou seja, não precisam de visto, e

ficar por um período de três meses como turistas, e o mesmo acontece com os franceses no Brasil; porém, esse acordo bilateral não se aplica à Guiana Francesa, e isso eu sabia, pois entrei em contato com a Embaixada da França no Brasil, onde informaram que, como eu tinha a Carta de Séjour da França metropolitana, não teria problemas para entrar na Guiana Francesa.

72 O transporte público em Caiena é realizado por ônibus, mas os horários fixados são bem espaçosos, o que fazia

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dois, coordenadores de associações: DAAC Guyane e Skat Park); a terceira pessoa, uma mulher, conheci por acaso em uma loja.

Nessa cidade foram feitas entrevistas em locais inusitados, pois eu ficaria pouco tempo e as pessoas tinham pouca disponibilidade: em depósito de loja; dentro de carro quando o entrevistado se dirigia ao trabalho; na praça central, em meio ao burburinho das pessoas que nela transitavam; e, a mais curiosa, em uma casa abandonada, ocupada por brasileiros, à noite (por volta de 20h).

Essa casa não parecia estar ocupada, pois durante a noite as lâmpadas não eram acesas — a eletricidade só era utilizada para manter eletrodomésticos ligados, caso da geladeira. Segundo os moradores, estava abandonada e foi ocupada por brasileiros; como não havia um responsável para assumir a conta de energia elétrica, esta foi cortada, mas eles a religaram, e, para não chamar a atenção, à noite utilizavam velas e lanternas — isso perto do centro de Caiena. Fui levada até a casa pela brasileira que conheci em uma loja. A casa ficava no alto de um pequeno morro, e havia mato em torno dela, o que ajudava a parecer abandonada — mas não era possível visualizar muita coisa do terreno na escuridão, e, na verdade, nem vi direito o rosto das pessoas com as quais conversei: ao chegar lá, a mulher que seria entrevistada veio ao nosso encontro com uma lanterna, para facilitar nossa entrada.

Naquele momento moravam ali uma criança, duas mulheres e vinte garimpeiros73. Estes, segundo a interlocutora, estavam no país legalmente, eram funcionários de uma empresa de mineração de ouro e trabalhavam perto de Caiena. Provavelmente, seu endereço “oficial” era o de alguém que conheciam, mas moravam ali, em condições precárias, um retrato da moradia de migrantes brasileiros na cidade, onde vivem muitas famílias com trabalho regular e Carta de Séjour. Segundo a DAAC Guyane, a Guiana Francesa estava com dificuldades para suprir o seu déficit habitacional, que não atingia apenas os estrangeiros.

O tempo passado no departamento francês mostrou que o processo migratório de brasileiros e brasileiras nesse território tem outros contornos e circuitos, comparativamente ao Suriname e à Guiana. Em Caiena os garimpeiros brasileiros sem Carta de Séjour não eram facilmente identificados nas ruas, e as trabalhadoras do sexo brasileiras não migravam através de clubes de prostituição: havia as que já trabalhavam na prostituição no Brasil e as que iam

73 Que não aceitaram falar; alguns, inclusive, entraram no quarto para não ser vistos, pois, segundo eles, falar de

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para trabalhar em serviços domésticos e passavam a atuar ocasionalmente na prostituição de rua ou em bares74.

Os homens e mulheres que trabalhavam em áreas de garimpo clandestinas não se instalavam nos locais, mas circulavam entre esse território, o Suriname75 e o Brasil, seguindo o fluxo de trabalho. Isso significa que não dá para defini-los como migrantes na Guiana Francesa ou no Suriname, pois circulam entre esses espaços como se não houvesse fronteira.

Em Caiena também estive na Embaixada brasileira, mas, diferente da do Suriname e a da Guiana (esta, contatada em 2012), não foi possível falar com nenhuma pessoa. Eu queria marcar uma entrevista com alguém, e a única resposta que obtive, através da secretária, foi que o vice-cônsul estava em viagem ao Brasil e que todas as informações relacionadas à instituição e aos brasileiros presentes no departamento francês estavam no site da instituição. Mas, enquanto esperava sua resposta, conversei com brasileiros que estavam ali por motivos específicos: a maioria precisava renovar o passaporte e possuía Carta de Séjour, e tinha casos de solicitação de autorização de retorno ao Brasil (ABR), um documento que assegura a passagem da fronteira sem passaporte76.

Para voltar ao Suriname, novamente passei por Saint Laurent du Maroni. Na aduana o

gendarme ficou algum tempo verificando o meu visto e a Carta de Séjour, depois dirigiu-se a

um colega. Os dois conversaram alguns minutos, então o segundo veio até onde eu estava, pediu que esperasse e saiu do local de carro, com meus documentos. Aproximadamente meia hora depois, voltou, mostrou-me cópias de vários papéis e informou que eu estava em condição ilegal na Guiana Francesa.

Após ter circulado e passado por diversas fiscalizações, mais uma vez me descobri administrativamente ilegal. Naquele momento não entendi o motivo, uma vez que tinha em

74 Em Caiena havia grande fluxo de brasileiras para trabalhar nos serviços domésticos em residências de franceses,

algo quase inexistente no Suriname e na Guiana; ao contrário, nestes últimos são os nacionais que trabalham para os brasileiros, pois cobram mais barato por esse tipo de serviço.

75 O ouro retirado na Guiana Francesa por garimpeiros clandestinos, por exemplo, de modo geral é vendido

informalmente no Suriname, onde compram alimentos e material de trabalho para retornar ao garimpo.

76 São casos de pessoas que não têm os documentos exigidos para solicitar o passaporte, por terem sidos roubados,

por terem perdido, por terem entrado ilegalmente na Guiana francesa. Este era o caso de seu Valdir, 60 anos, originário de Macapá (capital do estado do Amapá), que trabalhava havia vinte anos na Guiana Francesa sem Carta de Séjour: atravessou a fronteira ilegalmente e pouco tempo depois decidiu buscar a família, mas durante a travessia clandestina pelo rio Oiapoque a canoa virou e a mulher e o filho morreram afogados. Ele voltou sozinho para a Guiana Francesa e não retornou ao Brasil. Trabalhara todo esse tempo na agricultura e com jardinagem, nunca ficara desempregado, mas as pessoas que o contratavam não forneciam os papéis necessários para a solicitação de uma Carta de Séjour de trabalho. Naquele momento queria retornar ao Brasil porque já não acreditava que conseguiria um trabalho registrado e se regularizar, e não aceitava a possibilidade de ser deportado. Referindo-se à deportação constante de brasileiros, disse que “gostaria de entrar em meu país de cabeça erguida, e não como um criminoso”. Uma mulher sugeriu que ele circulasse na frente da Gendarmerie ou de um gendarme, pois eles providenciariam seu retorno ao Brasil, e o melhor, ele não gastaria nada. Ele se ofendeu e repetiu que não era um criminoso, e que estava cansado de viver escondido.

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mãos o passaporte e a Carta de Séjour francesa. Pensava estar em uma situação confortável, mas era o primeiro ano de séjour na França, e, segundo o gendarme, era preciso um Séjour específico para uma estada na Guiana Francesa. Expliquei o que disseram na Embaixada francesa quando a consultei, e ele mostrou um papel, que não tive condições de ler porque estava muito nervosa77; então, explicou que a Carta de Séjour permitiria entrar em território

guianês apenas a partir do segundo ano, e continuou: “Você tem um Séjour da França metropolitana e isso não lhe dá o direito de sair para passear na Guiana ou na Martinica; você está ilegal e isso implica em recolher a sua Carta de Séjour”.

Muito nervosa, falei que estava ali para realizar pesquisa para uma tese, e que entrei legalmente, com autorização da aduana francesa. Sua resposta foi que a pessoa que permitiu minha entrada não observou direito a Carta de Séjour. Depois de meia hora de conversa, ele disse que compreendia a situação e, como eu não havia agido de má fé e o funcionário da aduana cometera um erro ao me deixar cruzar a fronteira, não recolheria o documento, mas também não carimbaria a saída da Guiana Francesa no passaporte. Aconselhou-me a explicar a situação ao funcionário da aduana surinamesa em Albina e solicitar a ele que carimbasse e autorizasse minha entrada em território surinamês, e assim tudo estaria resolvido. Ao chegar à aduana surinamesa, fiquei mais um tempo me explicando; por fim, com muita reclamação e indecisão, o funcionário cumpriu todos os procedimentos para que eu pudesse entrar no Suriname legalmente, o que fiz imediatamente, antes que me encontrasse em situação irregular novamente. Estas situações são típicas de controle de fronteiras e demonstram que a dinâmica de mobilidade nesses territórios fronteiriços é complexa, portanto são espaços sociais de interação, tensão e poder.