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CAPÍTULO II – CULTURA, INTERCULTURALIDADE E MIGRAÇÕES

2.1 Cultura, interculturalidade e fluxos migratórios

Na proposta apresentada por esta pesquisa, a ideia é aprofundar o estudo sobre as relações conjugais de pessoas de nacionalidades diferentes. Para isso, a sua linha de corte são cônjuges naturais de países díspares com línguas maternas distintas. Os pioneiros nos estudos sobre migrações, como Simmel, utilizavam predominantemente o termo estrangeiro em detrimento do termo migrante. Dutra (DUTRA, 2013b) esclarece que atualmente há uma hegemonia do segundo, e esta alteração ocorreu por razões metodológicas e epistêmicas, pois o primeiro é carregado de significados sociais que lhe coloca marcas pejorativas. Para a autora, a migração é

Como um ir ou sair para talvez voltar ou ficar; isto é, um permanente vir-a-ser do indivíduo moderno. Um movimento que está sempre acontecendo, pois o migrante não sabe até quando, para onde ou como ficará: ele nunca acaba de sair e de deixar suas origens (DUTRA, 2013a, p. 35).

Deve-se, contudo, esclarecer que, para a compreensão dos fluxos migratórios, é necessário que se faça a interlocução com a categoria “cultura”, e assim destaco que os estudos culturais são campo de pesquisa inerentes às ciências sociais, pois, conforme aponta Cuche (1999), o “homem é essencialmente um ser cultural” e a cultura permite não só adaptar o homem ao seu meio como o seu meio a ele. Logo, concordando com a afirmação do autor, é a noção de cultura que fornece os instrumentais necessários para superar as “explicações naturalizadas” para as relações sociais. A cultura não é, portanto, dada, rígida, estanque; ela é produto das relações dos grupos sociais e que se constrói historicamente. Assim,

O processo que cada cultura sofre em situação de contato cultural, processo de desestruturação e depois de reestruturação, é em realidade o próprio princípio da evolução de qualquer sistema cultural. Toda cultura é um processo permanente de construção, desconstrução e reconstrução. O que varia é a importância de cada fase, segundo as situações. (CUCHE, 1999, p. 137).

Um outro autor que irá possibilitar a compreensão do que me proponho nesta tese éAppadurai (2004). Para este autor é possível compreender que a cultura não deve ter um olhar de “objeto, coisa ou substância” porque não é uma categoria homogênea. Elecritica esta ideia, pois, a partir dela, a compreensão da cultura passa por uma ótica biologizante, a

exemplo da raça e do gênero. Ele tenta romper com a substancialização da cultura sob a perspectiva das diferenças, contrastes e comparações. Segundo Appadurai (2004), “a cultura é uma dimensão penetrante do discurso humano que explora a diferença para gerar diversas concepções da identidade do grupo” (APPADURAI, 2004, p. 27). Dois dos mecanismos encontrados pelo autor para a superação da substancialização da cultura são a linguística e a identidade de grupo. Com isso, ele quer nos dizer que a cultura não é um substantivo a-histórico, formal, binário, intelectual e textualista, mas uma “dimensão cultural é um

“instrumento heurístico ao nosso alcance para falarmos de diferença [...] que exprime, ou serve de fundamento, à mobilização de identidade de grupo” (APPADURAI, 2004, p. 26-27)

Portanto, entendo que o fato de os cônjuges serem apenas de nacionalidades diferentes não é decisivo para constatar que eles possuem culturas alhures, haja vista que alguém que apenas nasceu no Oriente não traz consigo, necessariamente, características desta cultura. A cultura é algo relacional, que está ligada às relações sociais que o indivíduo estabelece ao longo da sua vida, não apenas a biologia, nem tampouco, somente a nacionalidade. Daí porque o recorte da pesquisa são pessoas de nacionalidades, línguas maternas e raízes culturais diferentes.

Corroborando este pensamento, Lind (2008) acredita que a língua tem fundamental importância na cultura, pois ela pode ser utilizada como um laço entre duas nações de mesma língua, a exemplo de Brasil e Portugal. O autor acredita que a língua é o “espelho da cultura”

e, a partir desta análise, penso que a construção dos papéis sociais entre casais interculturais com línguas maternas distintas diverge de casais interculturais que falam a mesma língua, pois a linguagem “fornece um modelo geral do funcionamento da cultura” (HALL, 2016, p.

26).

Para compreender a análise contemporânea sobre cultura trago uma dimensão apresentada por Appadurai (2004). A fim de explicar a cultura na contemporaneidade, o autor ressalta a necessidade de articulação entre cultura, política e economia a partir de uma ótica

“complexa, estratificante e disjuntiva”. Para isso, ele apresenta a ideia de “paisagem”. Na concepção do autor, os fluxos culturais globais apresentam-se de forma fluida e irregular, os quais são característicos do capital internacional, de “mundos imaginados”. Entendo, com isso, que “todos os ângulos de visão, são construções profundamente perspectivadas, inflectidas pela localização histórica e política de diferentes tipos de actores” (APPADURAI, 2004, p. 50–51). Os “mundos imaginados” são universos construídos a partir da imaginação histórica de cada indivíduo ou grupo de indivíduos espalhados pelo mundo.

Para melhor exemplificar, o autor divide estas paisagens em cinco “dimensões culturais globais”: etnopaisagem, mediapaisagem, tecnopaisagem, financiopaisagem, ideopaisagem23. A etnopaisagem diz respeito às pessoas que estão em deslocamento e afeta a política e a cultura do local de origem e do partida, a exemplo dos turistas, imigrantes, refugiados, exilados etc. Atecnopaisagem é a influência que a tecnologia, seja ela de ponta ou não, realiza na dinâmica global. Já a financiopaisagemé uma dimensão complexa, rápida e misteriosa pois “os mercados de capitais, as bolsas nacionais e a especulação comercial se movem nas placas giratórias nacionais a uma velocidade estonteante” (APPADURAI, 2004, p. 53). Por fim, a ideopaisagem e a mediapaisagem estão relacionadas: enquanto a mediapaisagem é a capacidade de distribuição de informação através de mecanismos eletrônicos (jornal, revista, filmes), a ideopaisagem também está relacionada à distribuição de informações, porém mais direcionada a questões políticas e à ideologia do Estado.

Segundo Appadurai (2004), compreender essas “dimensões globais” é necessário para análise da cultura contemporânea. Ele nos lembra que, apesar de essas dimensões sempre terem existido na sociedade, atualmente são mais velozes, com mais informações e volume.

Compreendê-las, então,é essencial para a construção de políticas culturais globais.

Para o autor, o processo de estudo da cultura passou por diferentes abordagens, que me atrevi a expressar da seguinte forma:

Imagem I: Processo de abordagens da categoria ‘cultura’, segundo Appadurai

Elaboração da autora, Appadurai, (2004)

23 LerAppadurai (2004).

Cultura como substância

Cultura como dimensão da

diferença

Cultura como identidade de grupo baseada na

diferença

Cultura como mobilização para

naturalizar um subconjunto das

diferenças

Culturalismo

No gráfico acima, percebe-se que o autor estabelece o culturalismo como ponto mais avançado do estudo da cultura. Em sua concepção, o culturalismo quase nunca vem sozinho:

está sempre acompanhado dos prefixos bi, multi ou inter. Ele nos chama à atenção que culturalismo é “o movimento que envolve identidades em construção consciente [...] é política de identidade mobilizada ao nível do Estado-nação” (APPADURAI, 2004, p. 29), que está alinhado à história e às memórias da população encontrada fora do seu território nacional de origem: os refugiados, exilados e migrantes. Diferentemente dos termos “cultura” e “etnia”, que denotam uma ideia de biologização, naturalização do inconsciente, o culturalismo entende as diferenças culturais como seu objeto consciente (APPADURAI, 2004).

Do ponto de vista desta tese, busco discutir os aspectos culturais que diferenciam os cônjuges culturalmente e como eles constroem as relações de gênero no ambiente doméstico.

Desta forma, o debate é sobre diferenças e desigualdades, sobretudo na esfera doméstica privada. Isto me leva a pensar sociologicamente a partir dos aspectos que os igualam e os diferenciam sem visualizá-los como diferentes pelo simples fato de serem homens ou mulheres, autóctones ou imigrantes. Partindo do pensamento de Appadurai (2004), devo entendê-los como diferenças construídas através de suas relações sociais, e não biologicamente determinadas.

Com base nos conceitos de Appadurai(2004), não quero, com isso, homogeneizar a cultura de um mesmo país e acreditar que, por ser brasileira, tenho a mesma herança cultural de uma pessoa nascida no Sul do país. Entendo, assim, que as pessoas com a mesma nacionalidade não possuem necessariamente uma mesma cultura. De certo, em alguns países nem a língua materna é a mesma. Cito o Brasil como exemplo: um país continental, com índios, negros, com expressões culturais diferentes e a mesma nacionalidade. O que quero argumentar é que o fato de possuírem nacionalidades e línguas maternas diferentes gera diferenças culturais visualizadas no cotidiano familiar. Um casamento entre brasileiros não possui a mesma burocracia (do ponto de vista de oficialização do contrato de casamento) que outro entre pessoas de nacionalidades diferentes, por exemplo. Obviamente que não é apenas nos casamentos que podemos visualizar essas diferenças, mas em todas as relações sociais, que podem ser culturais, de origem, personalidade, financeira, gênero, dentre outras. No entanto, o meu problema de pesquisa recorta os matrimônios de pessoas de nacionalidades diferentes, sendo a mulher brasileira e o homem imigrante.

Esse processo contínuo de construção, desconstrução e reconstrução em uma sociedade globalizada e informatizada possibilita a (re)criação e ressignificação de hábitos e relações culturais entre autóctone e migrantes. Elas podem ser de não aceitação do outro e de

xenofobia ou de pluralismo cultural, aqui entendido como o princípio da igualdade e aceitação do outro sem discriminação de raça, cor, credo, gênero, cultura (ROMERO, 2003).

E é nesse contexto que insiro a categoria de interculturalidade que, assim como a multiculturalidade, é uma das modalidades de compreensão da diversidade cultural. Canclini (2013) aponta que analisar um objeto de pesquisa do ponto de vista da interculturalidade, não é apenas sobre a hibridez cultural, como se ela ocorresse de forma objetiva, sem contextualização, mas sim, nos processos de hibridação, ou seja, como elas são produzidas, como se dá às relações de poder, na construção dos papéis sociais de gênero nas relações conjugais entre pessoas de nacionalidades diferentes. Assim como o autor, compreendo a hibridação como processo de interseção e transações, tornando possível que a multiculturalidade evite o que tem de segregação e se converta em interculturalidade.

A interculturalidade remete à confrontação e ao entrelaçamento, àquilo que sucede quando os grupos entram em relações e trocas. Ambos os termos implicam dois modos de produção do social: multiculturalidade supõe aceitação do heterogêneo, interculturalidade implica que os diferentes são o que são, em relações de negociação, conflito e empréstimo(CANCLINI, 2013, p. 17, grifo do autor).

Ao debater a interculturalidade, percebo que Canclini deixa um hiato nas questões de gênero. Daí porque a construção do modelo de análise desta tese busca a interação com fontes que se aproximam do debate aqui proposto. A categoria de gênero, na atualidade, não pode ser pensada isoladamente porque se trata de uma categoria transversal de análise, conforme apresentarei no próximo capítulo.

A ideia de inter/multiculturalidade surgeno processo de globalização, principalmente com as crescentes ondas migratórias das últimas décadas, nas quais as diferenças e desigualdades são reordenadas e não suprimidas (CANCLINI, 2010). Aí já surge um dos pontos de discussão sobre esta categoria; a ideia do surgimento da interculturalidade é divergente entre os autores que debatem o tema: enquanto alguns acreditam que ela é um braço da multiculturalidade, outros defendem que são categorias distintas, sendo a primeira a evolução da segunda.

Candau(2008), por exemplo, acredita que a interculturalidade é um dos tipos de multiculturalidade. A autora apresenta três abordagens da multiculturalidade: o multiculturalismo assimilacionista – esta abordagem parte da ideia de que vivemos em uma sociedade multicultural onde os indivíduos não possuem as mesmas igualdades de oportunidades; o multiculturalismo diferencialista ou monoculturalismo plural – esta abordagem tende a ter uma visão essencialista da identidade cultural e, ao enfatizar a assimilação, nega-se a diferença; e, por fim, o multiculturalismo interativo ou

interculturalidade – propõe a inter-relação entre diferentes grupos culturais numa mesma sociedade, busca uma análise não essencialista das identidades culturais, sendo, portanto, uma ideia de construção permanente de identidades abertas; ou seja, para essa abordagem estamos em constante processo de hibridação, não existindo cultura pura.

Já Ennes(2016) acredita haver um embate político e analítico entre o multiculturalismo e o interculturalismo. Para o autor, o debate destas duas categorias transita entre os que acreditam que elas possuem mais aspectos que as assemelham do que as distanciam e os que buscam demonstrar a superioridade da segunda como chave analítica

“para apreender e explicar as relações de poder inerentes às formas culturais de existência e relacionamento na sociedade contemporânea” (IDEM, p. 231). O autor depreende que “sob o multiculturalismo a diversidade é apropriada pelo consumo e sofre o esvaziamento político, processo contra o qual o interculturalismo procura agir de modo a retomar as relações entre poder e cultura” (ENNES, 2014, p. 198). Ou seja, diferentemente do proposto por Candau (2008), as duas categorias dialogam, mas uma não está contida na outra.

Ramos (2007), que também entende a interculturalidade como uma categoria diferente da multiculturalidade, apresenta-nos algumas das perspectivas fundamentais para o seu debate: a constatação sociológica, a ideologia, a estratégia de superação da multiculturalidade, a perspectiva interdisciplinar, a perspectiva sistêmica e multidimensional, o processo dinâmico e dialéticoe as perspectivas psicossocial, pedagógica e sociopolítica.

Opto pela compreensão da interculturalidade como chave analítica da minha tese, entendendo-a como relações de poder que estão em constante processo de “negociação, conflito e empréstimo”(CANCLINI, 2013).A interculturalidade não é uma via de mão única.

No processo intercultural as culturas estão em conexão, entrelaçadas, e, no caso desta tese, vivendo sob o mesmo teto. Assim, a opção em utilizar a interculturalidade se dá em razão de ela proporcionar “vantagens epistemológicas e de equilíbrio descritivo e interpretativo, leva a conceber as políticas da diferença não só como necessidade de resistir”(CANCLINI, 2007, p.

25). Diante disso, utilizo a interculturalidade como chave analítica do meu objeto e compreendo que ela ocorre também no processo de interação entre os indivíduos e, portanto, ela permeia o meu olhar metodológico, teórico e analítico.

Ennes (2021) afirma que o interculturalismo é uma chave analítica para pensar a sociologicamente a sociedade, porquepossibilita ao pesquisador “compreender novas dinâmicas da interface entre cultura, política e economia” (IDEM, p. 191). O autor afirma aindaque esta categoria tem-se mostrado importante para a compreensão social dos processos de troca, intercâmbio e sobreposições culturais.

Interculturalismo é, portanto, um recurso analítico para se compreender o mundo contemporâneo e sua polissemia e é, em si, revelador de sua pertinência. Considerar o interculturalismo como chave analítica implica, por exemplo, em reconhecer as particularidades do fenômeno migratório em um contexto marcado pela globalização e desenvolvimento das tecnologias de comunicação e informação (ENNES, 2021, p.

191).

Contudo, o principal enfoque desta categoria está associado ao âmbito institucionaldas políticas públicas que dialogam e convivem com a diversidade (o que de certa forma se tornou um ponto de superação para esta pesquisadora) e percebo que estas relações – diferença, diversidade e desigualdade –estabelecem-se também nas relações face a face, do privado, do doméstico. Nesse contexto, o processo intercultural deve ser entendido sob a perspectiva das relações pessoais e familiares aqui estudadas. É importante pontuar que as relações conjugais não ocorrem apenas nas relações face a face entre os cônjuges mas também entre os grupos que convivem com eles – amigos, familiares, relações de trabalho. O casamento é uma instituição social, ou seja, ele também possui um significado simbólico na sociedade (DUAN; CLABORNE, 2011).

Busco discutir os aspectos que diferenciam os cônjuges culturalmente e como eles constroem suas relações de gênero. Desta forma, o debate recai sobre diferenças e desigualdades, entre homens e mulheres, autóctones e migrantes. Esta possibilidade analítica leva-me a pensar sociologicamente a partir dos aspectos que os igualam e que os distinguem.

Ademais, o debate sobre a interculturalidade deixa um hiato nas questões de gênero e nas relações face a face. É como se ela – a interculturalidade – estivesse associada apenas a questões políticas, étnicas, raciais e linguísticas. Em razão deste hiato, a construção do modelo de análise busca a interação com fontes bibliográficas que se aproximam do debate proposto nesta pesquisa. Dessa forma, a categoria de gênero, ponto de análise central desta pesquisa, não pode ser pensada isoladamente, pois é uma categoria transversal de compreensão da sociedade atual, que permeia todas as relações sociais, inclusive a cultura.

Neste caso particularmente, os casamentos interculturais.

Assim, compreendo que a cultura faz esta ponte entre as teorias aqui discutidas porque está intrinsecamente ligada às relações de gêneroconstruídas no dia a dia de cada sociedade. Assim, entende-se que o processo de construção sociológica do objeto ora apresentado encontra nas teorias aqui discutidas – gênero e cultura – o campo fértil para sua análise pelo que irão dialogar com os dados colhidos na pesquisa empírica.