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Embora não seja a pretensão desta pesquisa se debruçar sobre discussões epistemológicas do campo de estudos do currículo, é fato a necessidade de partir de um conceito que permita compreender o que se entende por currículo nesta pesquisa.

Esse conceito se faz necessário, pois o campo de estudo do currículo tem ganhado mais atenção e as pesquisas realizadas nesta área têm produzido novos entendimentos sobre a escola, a formação dos sujeitos e as políticas públicas de educação. Todos esses aspectos estão presentes (ou ocultos) no currículo.

Portanto, não podemos nos limitar a um entendimento mais simples e objetivo que considera o currículo escolar como sendo apenas um documento contendo um grande rol de conteúdos que devem ser trabalhados em sala de aula em determinado momento do percurso escolar.

O campo de estudo do currículo se mostra muito mais complexo e elaborado do que um mero documento orientador. Ainda assim, todos esses entendimentos sobre o currículo

possuem algo em comum: a ideia de organização do processo educativo (LOPES; MACEDO, 2011).

A palavra currículo tem origem latina (currere/scurrere) e significa “correr, e refere-se a curso (ou carro de corrida)” (GOODSON, 2012, p. 31). Podemos entender isso como o caminho a ser percorrido, ou seja, o percurso.

O ponto chave da discussão proposta neste capítulo gira em torno de que se o currículo não é simplesmente um documento, mas sim o percurso a ser percorrido, logo pode-se perceber que não há um único caminho, uma única rota que leve todos ao mesmo lugar.

Não se nega que a escola deve possuir uma organização que oriente todos os envolvidos no processo educativo, mas é nítido que existem divergências no entendimento de como esse processo deve ser organizado e qual deve ser o seu produto final, ou seja, que tipo de pessoas a escola pretende formar. É por isso que o campo de estudos do currículo é visto como um campo de disputas.

Nesta perspectiva, o currículo é considerado um artefato social e cultural. Isso significa que ele é colocado na moldura mais ampla de suas determinações sociais, de sua história, de sua produção contextual. O currículo não é um elemento inocente e neutro de transmissão desinteressada do conhecimento social. O currículo está implicado em relações de poder, o currículo transmite visões sociais particulares e interessadas, o currículo produz identidades individuais e sociais particulares. O currículo não é um elemento transcendente e atemporal - ele tem uma história, vinculada a formas específicas e contingentes de organização da sociedade e da educação (MOREIRA; SILVA, 2008, p. 7-8).

Ao considerar que o currículo escolar presume relações de poder, logo concluímos que deve haver ao menos duas forças opostas nesta relação. Nas discussões sobre o currículo podemos identificar três forças principais que disputam esse campo. Essas forças são respostas àquilo que deve ser o percurso escolar. Respostas às perguntas: o que ensinar, como ensinar e para quê ensinar? Por se tratar de respostas sistematizadas para o currículo escolar, podemos considerá-las como teorias do currículo (SILVA, 2005).

As três teorias do currículo a que nos referimos são: a teoria curricular tradicional, a teoria curricular crítica e a teoria curricular pós-crítica, as quais serão explicitadas com vistas a traçar um paralelo destas com suas respectivas propostas curriculares para a Educação Física e a respectiva identidade docente constituída a partir dessas propostas.

Para Pimenta (1996, p. 75) “a identidade não é um dado imutável. Nem externo, que possa ser adquirido. Mas é um processo de construção do sujeito historicamente situado”. Isso significa que a identidade não é algo rígido e engessado, mas sim, um processo de devir, onde suas características vão se transformando constantemente acompanhando outras

transformações, como por exemplo, transformações culturais, sociais, políticas, econômicas, científicas, entre outras.

Entendemos, então, a identidade como uma representação sociocultural, ou seja, os aspectos culturais associados aos aspectos da vida social compõem a identidade dos sujeitos. Nesta direção, entendemos também que a identidade docente/profissional se dá na prática social da docência/profissão.

Se considerarmos o contexto cultural e social como determinantes para a relevância das profissões, podemos dizer que:

Uma identidade profissional se constrói, pois, a partir da significação social da profissão; da revisão constante dos significados sociais da profissão; da revisão das tradições. Mas também da reafirmação de práticas consagradas culturalmente e que permanecem significativas (PIMENTA, 1996, p. 76).

Como visto mais acima, há um dinamismo constante que rege o valor das profissões conforme diferentes contextos, em diferentes momentos históricos e, nesta lógica, a profissão do professor é regida pelas novas demandas sociais.

Neste sentido, conforme as demandas das classes dominantes, a identidade do professor de Educação Física se confundiu ao longo de sua história com a identidade de outros profissionais da Educação Física, como o agente de saúde, o militar, o treinador, o preparador físico, o recreador, entre outras. Pode-se dizer que os sujeitos que estavam à frente da Educação Física nas escolas possuíam uma identidade, mas não ligada à docência.

A Educação Física, no Brasil, vai desenvolver sua identidade (?), seus códigos, a partir da relação que estabeleceu/estabelece com o meio ambiente que compreende, fundamentalmente, a instituição escola, instituição militar e a instituição esporte (BRACHT, 1997, p. 17).

Para Pimenta (1996), o profissional docente também é um sujeito, uma parte da demanda social. Ele está inserido nela e também constitui a mesma sociedade para a qual presta seu trabalho. Assim sendo, uma identidade docente [...]:

[...] Constrói-se, também, pelo significado que cada professor, enquanto ator e autor, confere à atividade docente no seu cotidiano a partir de seus valores, de seu modo de situar-se no mundo, de sua história de vida, de suas representações, de seus saberes, de suas angústias e anseios, do sentido que tem em sua vida o ser professor. Assim como a partir de sua rede de relações com outros professores, nas escolas, nos sindicatos e em outros agrupamentos (PIMENTA, 1996, p. 76).

Tratando especificamente da constituição identitária do professor (ou do profissional) de Educação Física podemos entender que:

[...] o que historicamente deu identidade à Educação Física e a seus profissionais foi sua relação com o ensino, com a docência. [...] Tanto no âmbito da educação escolar como fora, nos clubes, centros esportivos, centros comunitários, todos os lugares onde a prática corporal e esportiva se fazia presente [...] (CASTELLANI FILHO, 2013, p. 14-15).

Percebemos, então, que o professor de Educação Física vivenciou um dinamismo muito grande dentro das demandas sociais instituídas pelas políticas públicas de educação desde quando ganhou espaço oficialmente dentro das escolas brasileiras com a disciplina “Ginástica”.

Essa referência do profissional que atuava em ambiente escolar, porém dissociado às questões pedagógicas se confundiu com a atuação do “educador físico” em outros ambientes não escolares.

Esse cenário, por fim, favoreceu a constituição de identidades docentes multifacetadas, pautadas no vasto campo de atuação da Educação Física fora da escola, distanciando o profissional que ministrava aulas de Educação Física na escola, da figura de professor.

Para Valter Bracht, além da história da Educação Física ser marcada por mudanças de direções conforme as jogadas políticas e econômicas, parte desta identidade multifacetada também está relacionada com o fato de a Educação Física não possuir um único e exclusivo objeto de estudo, o que, para muitos, não a torna uma ciência.

[...] um pouco da crise de identidade da Educação Física vem daí, do desejo de tornar-se ciência, e da constatação da dependência de outras disciplinas científicas (a Educação Física é “colonizada” epistemologicamente por outras disciplinas) (BRACHT, 2007, p. 30-31).

Como visto, a Educação Física escolar no Brasil vive uma situação de angústia desde que o Movimento Renovador considerou que era necessário ela passar por uma “crise” em relação à sua constituição identitária.

Além desta história conturbada e da falta de um objeto e um objetivo de estudo mais claro e evidente, o período atual da Educação Física recebe muita influência do paradigma Pós-moderno que entende que a constituição de uma identidade ao sujeito se deve à linguagem e ao poder do discurso.

Apoiados nesse referencial teórico, alguns estudos mais recentes da Educação Física apresentam uma tendência em criticar a Ciência Moderna apontando limites que esta não seria capaz de superar, como o entendimento de identidade.

O sujeito não é algo dado, uma propriedade da condição humana que preexiste ao mundo social, como pensaram, guardadas as devidas epistemes, autores modernos, como Descartes, Kant, Marx, Piaget, entre outros. Ele é constantemente subjetivado, ou seja, o que importa é a relação estabelecida com os regimes de verdade que insistem em fixar sua identidade (NEIRA; NUNES, 2009, p. 139).

No entanto, como vimos a pouco, Pimenta (1996) já se posicionava em relação à identidade não ser um dado imutável. Já para o Materialismo Histórico-dialético, segundo Karl Marx11, a concepção de sujeito é aquele em constante devir a partir de suas necessidades existenciais. Seguindo esse mesmo paradigma, para Freire (1987), o ser humano é um ser inconcluso.

Nesta direção, seguiremos a estudar as teorias do currículo com o olhar voltado ao professor de Educação Física na tentativa de identificar se diferentes teorias curriculares, em alguma medida, poderiam constituir diferentes identidades docentes, pois acreditamos que “[...] no fundo das teorias do currículo está, pois, uma questão de „identidade‟ [...]” (SILVA, 2005, p. 15).