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Da acumulação primitiva aos limites absolutos do capital.

AGRONEGÓCIO.

5.1 O “admirável novo mundo rural” dos conflitos: a base objetiva.

5.1.1 Da acumulação primitiva aos limites absolutos do capital.

José de Souza Martins analisou o processo de reprodução do capital na frente pioneira e a ocupação da Amazônia entre 1970 e 1993. De acordo com o autor, neste período foram registrados 85 mil trabalhadores em condições de escravidão, em 431 fazendas da região. Detendo-se no processo de produção do capital, o sociólogo afirmou que as “formas coercitivas extremadas de exploração do trabalhador” são produzidas “...em momentos e circunstâncias particulares da reprodução do capital”, surgindo “...onde o conjunto do processo de reprodução capitalista do capital encontra obstáculos ou não encontra as condições sociais e econômicas adequadas a que assuma, num dos momentos do seu encadeamento, a forma propriamente capitalista” (MARTINS, 2009, p. 74).

As pesquisas de Martins (2009, p. 81) na frente pioneira mostraram que o emprego de peões (trabalhadores escravizados sob a forma da peonagem ou escravidão por dívida) nas décadas de 1960 e 1970 se deu principalmente nas atividades de formação de fazendas e no desmatamento de floresta virgem para pastagens. Isto o autorizou a dizer que se tratava de uma situação típica de “acumulação primitiva”, uma vez que o trabalho escravo foi encontrado “fora” do processo “normal” e permanente de produção capitalista, ou no momento de criação das condições para a reprodução propriamente capitalista.

A peonagem como produção não capitalista no processo de reprodução ampliada de capital, no caso da abertura de novos empreendimentos capitalistas, não é uma situação permanente, mas um momento do processo da produção que, mais tarde, é substituído pela exploração propriamente capitalista do trabalho. Diferentemente, por exemplo, do regime de aviamento na produção de borracha e de castanha-do-pará, onde a superexploração do trabalho na forma de trabalho análogo à escravidão é regular, ou seja, se dá em praticamente todo o processo da produção, demonstrando que a peonagem não é restrita as áreas de expansão territorial e que, segundo José de Souza Martins, a acumulação primitiva se estende pelo interior do processo de reprodução ampliada do capital, pelo menos no caso brasileiro.

127 Sua análise tem como ponto de partida a noção de formação econômico-social, sobre a qual Henri Lefebvre se debruçou e que, segundo o sociólogo rural brasileiro, permite alcançar o processo de desenvolvimento desigual do capital. Este processo, por sua vez, possibilita observar que as relações sociais, as forças produtivas e as superestruturas não avançam no mesmo ritmo histórico. Uma das conseqüências é que, em uma mesma formação econômico- social, podem coexistir relações sociais de idades diferentes, que estão em descompasso, em desencontro. (MARTINS, 2011a, p. 99-100).

Foi por este caminho que José de Souza Martins observou a produção capitalista de relações não capitalistas de produção e a coexistência de tempos sociais diferentes na formação social brasileira. A partir da análise de Marx sobre a renda territorial no capitalismo, ele realizou uma excepcional interpretação sobre o regime de colonato nas fazendas de produção de café na primeira metade do século XX, notando ali uma relação particular de trabalho que preservava uma forma de extração de mais-trabalho pré-capitalista, mas absorvida pelo processo do capital. Sua investigação concluiu que as determinações do capital não destruíam necessariamente relações de origem pré-capitalistas, mas também não preservavam inteiramente seu caráter pré-capitalista.

A meu ver, sua contribuição pôs fim à polêmica teórica (e política) de base dualista da década de 1950 que girava em torno do caráter da formação econômica e social do Brasil e da dúvida se havíamos saído de uma condição feudal ou não48. José de Souza Martins demonstrou ser possível (e passível) à reprodução capitalista articular formas não-capitalistas de produção no processo do próprio capital.

A persistência de formas diversas de escravidão no campo brasileiro (mas também na cidade), como, por exemplo, a peonagem (ou escravidão por dívida) revelaria, assim, uma espécie de obstáculo estrutural na expansão do modo capitalista de reprodução do capital na formação econômico-social brasileira. (MARTINS, 2011a, p. 30-31). Algo que Francisco de Oliveira chamaria de “expansão truncada”, própria de uma economia segundo a qual o “moderno” só o é em função da persistência do “atraso”. Ou seja, antes de uma dualidade,

48 Polêmica, aliás, recorrente no marxismo latino-americano das primeiras décadas do século XX, em função da

interpretação funcionalista que vinha do Komintern russo, de inspiração stalinista, e orientava os partidos comunistas da região, segundo a qual a América Latina se caracterizava por uma espécie de feudalidade homogênea, do que decorria a necessidade de um programa político democrático-burguês, a fim de desenvolver as forças produtivas como etapa essencial para o estágio seguinte, o socialismo. Para uma maior compreensão ver GUILLÉN, LANHOSO, 2012.

128 haveria uma relação dialética, imbricada, ou de “desenvolvimento mútuo”. (OLIVEIRA, 2003).

Nos termos de José de Souza Martins, o trabalho escravo, assim como outras formas não propriamente capitalistas de sujeição do trabalho no processo do capital, aparentemente irracional do ponto de vista capitalista, se insere racionalmente no processo de reprodução ampliada do capital como forma de reduzir a proporção do capital variável (que é representado pela parcela do trabalho) com relação ao capital constante, fazendo com que o capital opere como se tivesse alta composição orgânica, quando, na verdade, sua base é “atrasada”. Por essa razão, “a chamada acumulação primitiva de capital, na periferia do mundo capitalista, não é um momento precedente do capitalismo, mas é contemporânea da acumulação capitalista propriamente dita” (MARTINS, 2011a, p. 32).

Mas até que ponto as situações de “violência no campo”, a superexploração do trabalho e o avanço desmedido da fronteira agrícola ou do capital sobre os recursos ecológicos e naturais – entre outros “expedientes” da acumulação de capital de origem não capitalista - registradas hoje correspondem a um processo de acumulação primitiva inconcluso?

Com a globalização do capital que seguiu a crise estrutural deflagrada a partir da década de 1970, os países capitalistas ingressaram em uma nova fase da acumulação, marcada pela redução da margem de viabilidade produtiva do capital, que acirrou a contradição fundamental entre capital e trabalho. (MÉSZÁROS, 2009). Além disso, o grau de implicação decorrente de uma forma sistêmica de produção e reprodução social como a do capital se elevou, tornando as economias mais dependentes umas das outras, dado que o capital financeiro não reconhece as fronteiras determinadas politicamente pelo Estado. A assimetria estrutural dada pela divisão internacional do trabalho e pelo lugar que cada país ocupa na estrutura global do capital foi, assim, acentuada sobremaneira.

Simultaneamente, cada movimento ou ação particular no plano político-econômico de cada país passou a representar implicações diretas para os demais. A processualidade interna do capital, própria a cada formação histórico-social, se tornou mais afetada pelas condições globais da reprodução capitalista, aprofundando suas contradições internas.

Nesse quadro, os países da periferia do sistema, como o Brasil, que na fase de ascensão histórica do capital já apresentavam dificuldades estruturais para a viabilização da acumulação capitalista passaram a ser afetados de forma ainda mais acentuada pela lei

129 tendencial da equalização descendente da taxa de exploração diferencial evidenciada pela globalização (MÉSZÁROS, 2006, 2007, 2009), vendo-se diante da intensificação, em escala exponencial, das formas “flexíveis” de gestão da força de trabalho, e de toda a sorte dos expedientes que já são inerentes ao modo de funcionamento normal do capitalismo periférico, mas, neste momento, como “um limite absoluto do capital” (MÉSZÁROS, 2009).

Desse modo, o ingresso brasileiro na globalização do sistema do capital aprofundou os nexos da economia política da dependência, convertendo-a em servidão financeira. Neste processo, as condições truncadas da acumulação capitalista viabilizaram o atual padrão (destrutivo) de reprodução, decorrente da redução da margem de viabilização produtiva do capital, mas conferindo-lhe uma espécie de “normalidade”, dado que sua expansão capitalista historicamente se apoiou nos expedientes mais abjetos que o capital desenvolveu ou teve à disposição para submeter o trabalho e as condições elementares da reprodução social às suas necessidades da acumulação. Isto resultou na generalização acelerada de determinados expedientes da expansão do capital, indicando que o trabalho escravo, a devastação ambiental própria da abertura da fronteira agrícola, o assassínio e a subjugação dos povos, entre outros - que, no momento precedente ao ingresso do país na globalização do capital, podiam ser considerados próprios de um processo de acumulação primitiva inconclusa - pertencem hoje ao mundo do capital não mais como uma extemporaneidade necessária à sua realização, mas como método próprio de sua fase atual de desenvolvimento. O que sugere ter havido uma espécie de superposição daquilo que considerávamos como sendo formas de acumulação primitiva de capital por formas de produção destrutivas inerentes a fase de descendência histórica do capital.

O trabalho escravo, até então circunscrito a frente pioneira, hoje “...segue o rastro do agronegócio (...): na fumaça das carvoarias que sacrifica homens e matas para produzir aço; nas pegadas do gado que avança sobre a Amazônia Legal com desmatamento em grande escala...”, mas também nos setores dinâmicos e modernos do agribusiness: “...na onda da lavoura de soja que conquista os cerrados centrais; no boom do etanol que explode de norte a sul...” (PLASSAT, 2010, p. 90).

Atualmente, a pecuária continua sendo o setor da economia do agronegócio onde mais predominam as situações de trabalho escravo, sendo que, em 2009, foi responsável por 53% dos casos registrados em todo o país (contra 51%, em 2008 e 65%, em 2007). Este aspecto revela que, onde o capital encontra dificuldades para sua reprodução ampliada, pode lançar

130 mão de expedientes não propriamente capitalistas de extração de mais-trabalho. No entanto, como afirma Plassat (2010, p. 99): “...onde chega o holofote da fiscalização, aí se descobre a prática do trabalho degradante que caracteriza boa parte das lavouras brasileiras, de norte a sul”.

A partir de 2007, o setor canavieiro, por exemplo, registrou a metade do total de trabalhadores libertos da condição de escravidão ou análoga a escravidão, sendo responsável, em 2009, por 7% dos casos encontrados e 45% do total de trabalhadores libertos. (PLASSAT, 2010, p. 96). Se o número de casos registrados não é tão expressivo quanto no caso da pecuária, o número de trabalhadores encontrados em situação de escravidão ou análoga a tal, por sua vez, é gritante, indicando que aí são enormes os contingentes de trabalhadores escravizados.

Seguindo Xavier Plassat é um equívoco, no entanto, acreditar que o setor sucroalcooleiro, e a região sudeste, onde esta atividade econômica predomina, são os novos campeões do trabalho escravo. Isto porque nesta região, como são também os casos do Centro-Oeste e do Nordeste, a fiscalização ou a sistematização dos dados disponíveis foi mais intensificada. Da mesma maneira, não é correto afirmar que houve uma “descoberta” do trabalho escravo no Sul e no Sudeste.

As formas de precarização/superexploração/degradação do trabalho não estão mais circunscritas a este ou àquele momento da produção, ou a este ou aquele ramo produtivo. Ao contrário, se espalham por praticamente todo processo de produção do capital, inclusive para seus setores mais modernos e dinâmicos, através de toda sorte de flexibilizações da gestão da força de trabalho. É o que mostra o exame dos principais ramos do agronegócio que, independentemente de seu grau de modernização, tem no trabalho precário sua marca indelével.

5.2 A degradação/precarização estrutural do trabalho: o setor sucroalcooleiro, o