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Da dependência à servidão, da servidão ao padrão destrutivo do (neo)desenvolvimentismo.

AGRONEGÓCIOS.

4.3 Da dependência à servidão, da servidão ao padrão destrutivo do (neo)desenvolvimentismo.

Na viragem da década de 1960 para a década de 1970 o Brasil experimentou taxas de crescimento econômico nunca antes vistas, que produziram a crença “...numa espécie de novo círculo virtuoso de acumulação capitalista, no qual, mesmo dependentes, poderíamos, se aplicadas as políticas corretas, assistir ao desenvolvimento da periferia...” (PAULANI, 2008, p. 81). No entanto, o que parecia ser uma nova etapa de desenvolvimento, assentada no que Fernando Henrique Cardoso chamou de “tripé do desenvolvimento associado” (formado por empresas monopolistas internacionais-setor capitalista moderno local-setor público) mostrou- se num quadro histórico maior “...a emergência de uma nova configuração do próprio capital, em que a industrialização da periferia tornou necessária para a nova plataforma de valorização que começava a surgir e que, de início, necessitava da internacionalização da própria produção...” (PAULANI, 2008, p. 84).

O investimento externo direto (IED) teve importância central na gênese desse fenômeno. Entre 1960 e 1968, cerca de US$ 1 bilhão em novos recursos foi transferido dos países subdesenvolvidos somente para empresas norte-americanas. E cerca de US$ 2,5 bilhões, sob a forma de lucros e dividendos, foram remetidos às matrizes norte-americanas. Na década de 1970, o Brasil efetuou uma remessa anual média de US$ 314 milhões relativas a despesas de lucros e dividendos de investimentos diretos – números que saltaram para médias anuais de US$ 969 milhões, em 1980, US$ 2,5 milhões, em 1990, e US$ 4,4 milhões, no período de 2000 a 2004. No que se refere ao PIB, essas remessas representaram 0,14%, 0,25%, 0,36%, 0,42% e 0,85%, respectivamente, em 1960, 1970, 1980, 1990, e nos primeiros cinco anos de 2000. Depois do “... surto de industrialização periférica da internacionalização da produção calcada na empresa multinacional, o processo retoma, na década de 1990, seu

111 curso normal de concentração e centralização na aplicação dos recursos produtivos” (PAULANI, 2008, p. 86).

Deste processo, o importante a ser destacado é que a configuração político-econômica de então, mesmo e apesar da assimetria interna do capital, comportava a compatibilização entre a dependência política e o “desenvolvimento econômico” na forma de “industrialização”, o que a legitimava entre as classes sociais, dado que havia a possibilidade de ganhos mútuos. Tal como a teorizou Fernando Henrique Cardoso, a dependência continha uma negação que estava na possibilidade do elo dominado se desenvolver para além daquilo que sua capacidade permitia. Isto porque havia uma espécie de combinação entre dependência e modernidade, de uma relação hierárquica, mas com possibilidade de ascensão da parte subjugada.

A “dependência efetiva”, que implica a vontade do “dependente” em permanecer em tal condição, apareceria somente mais tarde, sob a dominância da valorização financeira, quando a periferia do sistema do capital se mostrou uma importante plataforma de valorização financeira internacional. Apenas com esta a dependência encontrou uma forma “adequada”. Para Paulani (2008, p. 92) há uma harmonia entre a dependência que nega a si mesma - à medida que contém a possibilidade da superação através do desenvolvimento - e o fato de a industrialização poder ser vista como momento inicial do desenvolvimento do regime de acumulação sob a dominância da valorização financeira.

O “desenvolvimento” produzido sob a relação de dependência teria criado, assim, as condições materiais para a transformação do país em plataforma de valorização financeira internacional. As políticas neoliberais de 1990 apenas operaram a transformação político- institucional que faltava para a completude deste processo. Mas não é somente isto.

A intensa industrialização ocorrida na década de 1970 - que significou também a modernização conservadora do campo, com a incorporação do chamado “pacote tecnológico da revolução verde” e a manutenção da estrutura altamente concentrada da propriedade da terra - produziu as bases para que nos anos de 1990 fossem criadas as condições político- institucionais para que pudesse se realizar o novo padrão de reprodução de capital baseado na especialização produtiva, ao qual os agronegócios respondem.

A ironia deste processo reside no fato de que o “desenvolvimento econômico” ou, para ser rigoroso, a industrialização ocorrida durante as décadas anteriores formou a estrutura a partir da qual o país buscou a posição de grande exportador de commodities agrícolas na nova

112 divisão internacional do trabalho, ou aquilo que Jaime Osorio vem chamando de novo padrão exportador de especialização produtiva (OSORIO, 2012) que, contraditoriamente, passou a pressionar a desindustrialização recente (no sentido da perda da participação da indústria no PIB com perda dos setores de ponta, que incorporam alta tecnologia e agregam valor à produção) e a reversão neocolonial, se concordarmos com Plínio Sampaio Jr. (2013).

De qualquer forma, o “novo padrão exportador de especialização produtiva” marcou o fim do padrão industrial.

Mais que economias dinâmicas que se orientam para o desenvolvimento (e que aproveitam as ‘janelas de oportunidades’ abertas pelas novas tecnologias, como certo discurso gosta de destacar), o que temos na América Latina são novas formas de organização reprodutiva que reeditam, sob novas condições, os velhos signos da dependência e do subdesenvolvimento como modalidades reprodutivas que tendem a caminhar de costas para as necessidades da maioria da população (OSORIO, 2012, p. 104).

O período do “desenvolvimentismo realmente existente” foi um período que abriu a possibilidade de superação da condição de “subdesenvolvimento”, ainda que sob a contraditória relação de dependência que o Brasil estabelecia com os países e capitais centrais. “Essa confluência virtuosa aconteceu, no entanto, tarde demais, pois o capitalismo já entrava na fase terminal da fórmula fordista e milagrosa dos trinta anos dourados” (PAULANI, 2008, p. 101). Ou, na chave explicativa de Mészáros, entrava na sua fase de crise estrutural.

Nesse exato sentido, essa tal “confluência virtuosa” ocorrida no passado, assim como o próprio desenvolvimentismo, não passou de uma ilusão, como afirmaria Arrighi (1998). Pois o movimento real do capital que produziu a intensa industrialização o fez em resposta à crise, já estrutural, que o sistema do capital experimentava, dados os limites para o deslocamento das contradições exigidas pelo curso “normal” da acumulação permanente de capital. E o que parecia ser um intenso “desenvolvimento” nos idos de 1960 e, principalmente 1970 (e o foi, de fato, se considerarmos o desenvolvimento como a expansão de capital produtivo, ou como sinônimo de industrialização) revelou-se, nas décadas seguintes, um movimento rumo à especialização produtiva no quadro da nova estrutura global do capital que começou a ser desenhada desde então.

O país passou de receptor líquido de capitais para exportador líquido de capitais, primeiro, pagando juros da dívida externa e, mais recentemente, como produtor de ativos

113 financeiros de alta rentabilidade. Com esta modificação nos termos da relação entre centro e periferia, não se trata mais do pagamento dos empréstimos convencionais, que pode ser resolvido com a amortização da dívida (embora isto também não seja simples!). Com o “capital fictício” esta situação mudou de figura44. A partir de 1990, o país ingressou na fase da “dependência desejada” (a expressão é de Paul Singer), “...como se servidão financeira fosse a tábua de salvação ainda capaz de produzir a inclusão do país no sistema, mesmo que no papel o mais subalterno possível” (PAULANI, 2008, p. 103).

Nesta equação econômico-produtiva-financeira, os agronegócios, que já possuíam as condições objetivas para seu máximo avanço, despontaram como uma tentativa de reequilíbrio das contas externas - ao menos desde a crise cambial de 1999. No entanto, conforme afirmou o economista Guilherme Delgado, esta “virada primário-exportadora” não foi acompanhada por uma política econômica que alterasse o livre ingresso e saída do capital estrangeiro que vêm em busca da “valorização financeira”. E nem poderia, como vimos. O custo desse capital estrangeiro triplicou o déficit na Conta de Serviços, que saltou de 23,7 no período de 1995-1999 para 70 bilhões em 2010.

A solução primário-exportadora para a crise conjuntural de 1999 tornou-se uma espécie de estratégia de ajuste estrutural, mas não resolveu sequer o problema original – o déficit acumulado na ‘Conta Corrente’ com o exterior, que provocara o ataque especulativo ao real no final de 1998 e início de 1999. O déficit externo vai ressurgir a partir de 2008 (esteve ao redor 48, bilhões de dólares o ano passado) e continua crescendo, sob o impacto de duas pressões não resolvidas – a perda de competitividade das exportações de manufaturadas e o avanço do déficit dos ‘Serviços’, atribuível à remuneração do capital estrangeiro na economia brasileira. Em resumo, a

44 “O capital que decorre, por exemplo, da transformação do valor de um ativo produtivo em ações comporta um

elemento de forte arbitrariedade, já que sua dimensão, em cada momento, não está mais vinculada a esse capital, mas ao jogo das bolsas (...). Mas essa duplicata de capital (como é chamada por Marx) reclama, como qualquer outro capital, seus direitos e ameaça, como um fantasma, sua cobrança, já que, no mundo real e concreto, a renda real produzida por seus ativos de origem pode não ser nem de longe capaz de dar conta desse recado. Por outro lado, o “capital” que decorre da emisão de títulos da dívida pública reclama seus direitos não a um capital real incapaz de atendê-los, como pode acontecer com as ações, mas a um “não-capital” (o ativo real de origem não existe). Por conseguinte, o atendimento desses “direitos” implica a extração de renda real da sociedade como um todo. Tudo se complica ainda mais quando esses papéis tornam-se objeto de cotação em bolsas, já que sua dimensão passa a fugir do controle de seus próprios produtores. Ora, num mundo tão dominado por esses capitais fictícios e pela vertigem de valorizar o valor sem a mediação da produção, nada mais interessante do que transformar economias nacionais com alguma capacidade de produção de renda real, mas sem pretensões de soberania, em prestacionistas servilmente dispostos a cumprir esse papel e lastrear ainda que parcialmente, a valorização desses capitais. Eliminados os maiores obstáculos a esse desempenho (a inflação, o descontrole dos gastos públicos, a falta de garantias dos contratos, a ilusão do desenvolvimentismo, entre os principais), essas economias estão prontas a funcionar como plataformas de valorização financeira internacional. Assegurada a seriedade no tratamento dos direitos do capital financeiro, elas podem funcionar – e, no caso do Brasil, têm funcionado – como meio seguro de obter polpudos ganhos em moeda forte” (PAULANI, 2008, p. 102).

114 ‘solução’ estrutural de ‘primarizar’ o comércio exterior mudou a natureza das nossas relações econômicas externas, mas não as resolveu de maneira consistente. Continuam crescendo as exportações de ‘básicos’, sem diminuir, mas ao contrário elevando ano a ano o déficit da Conta Corrente com o exterior (DELGADO, 2011a, p. 3).

As exportações são uma variável chave para “resolver” o problema das crises de solvência externa. Mas as altas reservas estrangeiras mantidas a altos custos (diferencial de juros internos e externos) escondem as raízes da “dependência externa”, ou, para voltar a Leda Paulani, da “servidão financeira”. Caso diminuísse ou acabasse o fluxo intenso de capital estrangeiro no Brasil as reservas seriam consumidas rapidamente. “Em síntese, o lugar do Brasil na economia mundial como [plataforma de valorização financeira e] grande produtor de commodities não é confortável...” (DELGADO, 2011a, p. 3).

Esta forma de inserção do Brasil no circuito internacional da acumulação, no quadro da nova divisão internacional do trabalho sob a ideologia do neodesenvolvimentismo, que esconde a condição de “plataforma de valorização financeira” por trás da intensa produção de

commodities para os países que gozam de posição privilegiada na estrutura global do sistema

capitalista, significou a destruição de quaisquer possibilidades de construção de bases de um “desenvolvimento endógeno” ou de crescimento econômico associado a mudanças estruturais intensas ou, ainda, de um desenvolvimento autônomo com relação ao capital que circula no país em busca de valorização rápida, se é que, depois da internacionalização da base produtiva promovida pela ditadura civil-militar, estas possibilidades de fato existiram.

Assim, as condições atuais do desenvolvimento capitalista, por seu turno, condicionadas pela crise estrutural do sistema do capital, não permitem nenhum salto para além da posição ora alcançada na divisão internacional do trabalho, mas somente o aprofundamento dos nexos da economia política da servidão financeira e econômica e das contradições associadas ao atual modelo econômico. O desenvolvimento econômico baseado na especialização produtiva tende, assim, a impor um padrão de acumulação/valorização de capital marcadamente predatório ou destrutivo, consoante as tendências contemporâneas do sistema capitalista.

Nesse sentido, o Partido dos Trabalhadores, ao dar forma política ao atual processo de acumulação capitalista, não só renunciou a possibilidade histórica de qualquer transformação ou ruptura interna do círculo vicioso da servidão financeira – ainda que a processualidade do capital a negasse -, como aprofundou as condições da heteronomia brasileira com formas não tão “criativas” de acumulação/valorização de capital, como chamaria Arrighi (1998).

115 Ao contrário, não bastasse a renúncia do Partido dos Trabalhadores por qualquer possibilidade de romper o padrão de acumulação capitalista, hoje ainda mais predatório e destrutivo que no passado, acionou o mais poderoso anteparo do processo de acumulação/valorização de capital contemporâneo, o Estado, para atender ao “...círculo vicioso do capital, ainda que isto signifique sujeitar quaisquer dimensões potenciais a restrições autoritárias extremas” (MÉSZÁROS, 2009, p. 220)

4.4 O Estado na expansão do capital (trans)nacional e o padrão de reprodução do