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DA ETERNIDADE DAS PENAS H

No documento O Homem e a Eternidade (páginas 70-73)

Acabamos de acompanhar o que a Revelação nos diz

a respeito das penas do inferno. Muitos teólogos consideram , bastante provável que só os pecadores inveterados e obsti- i nados nesta vida vão para o inferno (2). Porque o «Senhor usa de paciência para connosco» e não pune sem pesar. .

Trataremos, em primeiro lugar, de justificar a existência > das penas da outra vida, e depois a da eternidade das penas

do inferno.

Anles dc mais, a justiça divina ex^ge que os pecados

_'ão expiados nesta vida üejum punidos na outra. Como j Soberano Juiz dos vivos c dos mortos, Deus vê-se por si I mesmo obrigado a dar a cada um segundo as suas obras. j Jsso aliás afimia-se muitas vezes na Escriturai3). De mais a j mais, como Soberano Legislador, e remunerador da socie- |

(x) São Toiiiit!, u aíou esta questão em muitos lugares, sobretudo, T. JI, q. 87, a. 1, 3, 4, 5, 6, 7, III, q. 86, a. 4; Suppl. q. 99, a. 1. — C.

Gentes, III, c. 144, 145; IV, c. 95.

(2) Cfr. II P ed ro , III, 9.

(3) E c le s iá s t ic o , XVI, 15; M a t., XVI, 27; Rom., II, 6.

dade humana, Deus deve acrescentar às suas leis uma sanção eficaz.

São Tomás consegue demonstrar (I, II, q. 87, a. 1), que quem se insurge injustamente contra uma ordem justamente “síabelecida, deve ser reprimido pelo próprio princípio desta ordem que vela pela sua segurança. Estamos afinal perante a extensão à ordem moral e social da lei natural da acção e da reacção que diz: a acção prejudicial exige a repressão que repare o dano causado. Por isso, aquele que age deli­ beradamente contra a voz da consciência merece o remorso ou a reprovação desta; aquele que age contra a ordem social merece uma pena infligida pelo magistrado que vela pela ordem social; aquele que age contra a lei divina merece uma pena infligida por Deus nesta vida ou na outra. Trata-se de três ordens manifestamente subordinadas.

Platão diz mesmo, num dos seus mais belos diálogos,

Gorgias, que a maior desgraça de um criminoso é ficar

impune e que se ele conhecesse o seu verdadeiro bem, viria ‘dizer ao juiz: «fui eu que cometi este crime; dai-me a pena que mereço para que, pela aceitação voluntária desta pena, possa entrar na ordem da justiça que violei». Este aspecto sublime aplica-se, de facto, de uma maneira sobrenatural, por intermédio da graça divina, no tribunal da penitência e depois no purgatório, onde as almas estão contentes por pagarem a sua dívida à justiça divina e por expiarem intei­ ramente as suas culpas.

Aí temos a explicação das penas da outra vida. Mas, como se explica a eternidade das penas do inferno?

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Notemos, em primeiro lugar, que esta eternidade das penas dos renegados não se pode demonstrar apoditicamente. Constitui um mistério revelado, mistério de justiça que é consequência de um mistério de iniquidade: o pecado mortal

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sem arrependimento. Ora, os mistérios de iniquidade e as suas consequências são mais obscuros que os mistérios da graça, pois são obscuros não só para nós, mas também em si mesmos. Os mistérios da graça, em si mesmos, são lumi­ nosíssim os; só são obscuros para nós, por causa da fra­ queza do nosso espírito, semelhante ao olho da ave nocturna diante do sol. Os mistérios de iniquidade, pelo contrário, são obscuros em si e não só para nós; são as próprias trevas. Estamos a pensar, sobretudo, no mistério da impenitência final, que tem como consequência o inferno. E da mesma maneira que não se pode demonstrar apodlticamente nem a possibilidade, nem a existência dos mistérios da Trindade, da Incarnação redentora, da vida eterna, também não se pode demonstrar apodlticamente a eternidade das penas.

Mas podem aduzir-se razões de conveniência, argumentos prováveis, profundos, de uma profundidade sempre inesgo­ tável, embora nunca convertíveis em argumentos demons­ trativos. O mesmo acontece noutros domínios: podem tri­ plicar-se os lados do polígono inscrito na circunferência, sem que alguma vez o polígono se identifique com a própria circunferência.

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As principais razões da conveniência da eternidade das penas enumera-as São Tomás (I. II, q. 87, a. 3 e 4), a saber, que o pecado mortal sem arrependimento constitui uma desordem irreparável e, além disso, uma ofensa de inco­ mensurável gravidade.

O pecado — diz ele — merece uma pena, porque subverte uma ordem justamente estabelecida e, portanto, enquanto eSta desordem durar, o pecador merece sofrer a pena devida ao pecado. Ora, esta desordem é irreparável, se se destruiu o princípio vital da ordem violada; por exemplo, a vista não poderá ser curada, se se lesou o princípio essencial da

própria vista e nada há que cure o organismo incurável, ferido de morte. Ora, o pecado mortal afasta o homem dé Deus, fim último, e faz com que perca a graça, princípio ou germe de vida eterna. Verifica-se, portanto, uma desordem

irreparavel que, por sua natureza, dura sempre.

D e facto, por uma misericórdia especial, Deus perdoa muitas vezes ao pecador, no decorrer da sua vida terrestre mas, se este resiste no último momento e morre na impe­ nitência final, o pecado mortal permanece como uma de­ sordem habitual que dura sempre; merece, portanto, uma pena que dure sempre, também.

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Uma segunda razão da conveniência da eternidade das » penas funda-se no facto de o pecado mortal, como ofensa feita a Deus, assumir uma gravidade sem medida. Nega pràticamente a Deus a dignidade infinita de fim último ou de bem soberano, que o pecador despreza, preferindo um bem finito, amando-se a si mesmo mais que a Deus, apesar de o Altíssimo ser infinitamente melhor do que ele (J).

Com efeito, a ofensa assume tanto maior gravidade quanto a dignidade da pessoa ofendida. É mais grave in­ sultar um magistrado ou um bispo do que insultar o pri­ meiro transeunte que se encontra na rua. Ora, a dignidade do bem soberano é infinita. O pecado mortal, que nega prà- tieâfaiente a Deus esta dignidade suprema, apresenta, pois, como ofensa, uma gravidade sem limites e, para a reparar, foi necessário o acto de amor e os sofrimentos do Filho de Deus feito homem, acto teândrico de uma pessoa divina

í1) Cfr. S ã o T om ás, I, II, q. 87, ad. 4; III, q. 1, a. 2, ad 2; Suppl., q. 99 a. 1.

incarnada. Mas se, como sucede no pecado mortal sem arrependimento, se desconhece e despreza o enorme bene­ fício da incarnação redentora, então o pecador, por esta ofensa de uma gravidade infinita, merece uma pena infinita também. Trata-se da pena eterna do dano, ou da privação de D eus, bem infinito; pena que, em si mesma, é infinita quanto à duração 0 . O pecador quis afastar-se definitiva­ mente de Deus, pelo que será afastado dele eternamente. Quanto ao amor desordenado do bem finito, preferido a D eus, merece a pena dos sentidos, pena finita, enquanto privação de um bem finito, mas, segundo a Revelação, de duração também eterna porque o pecador fixou-se neste bem miserável para sempre e permanece prisioneiro do seu pecado deliberando sempre segundo a sua infeliz inclinação. É como um homem que quis lançar-se a um poço, sabendo que jamais poderia sair dele.

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A terceira razão de conveniência surge da parte de Deus. Dizíam os há pouco que Deus, com o soberano legislador, superintendente e juiz dos vivos e dos mortos, é obrigado, por si mesmo, a dar às suas leis uma\ sanção eficaz. Por outras palavras, Deus não pode ser desprezado impune­ mente pelos ímpios obstinados. Ora se as penas, do inferno não fossem eternas, o pecador obstinado poderia perseverar na sua revolta, sem que jamais sanção alguma viesse reprimir

o seu orgulho. A sua rebelião, de certo modo, triunfaria.

Verificar-se-ia o triunfo da iniquidade. M onsabré(2) cons­ tata: «Transpor para a ordem moral a negação da eterni-

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0 ) N 3o o pode ser pela intensidade, porque a criatura não a

suportaria. .

(*) Conferências de Notre-Dame, ano de 1889. Conferência 98.“..

dade das penas, equivale a obscurecer a noção do bem e do mal, só à luz deste dogma terrível apreensível por nós».

Por último, se a bem-aventurança, que constitui a re­ compensa dos justos, é eterna, convém que a pena devida aos ímpios seja eterna também. Tal a recompensa do mérito, tal o castigo da culpa. Se, sobretudo, por um lado, se mani­ festa a misericórdia eterna, manifesta-se pelo outro o esplen­ dor da sua justiça. É o que diz São Paulo (Rom., IX, 22): «Se Deus, querendo mostrar a sua ira (isto é, a justiça vin­ gadora) e tornar manifesto o seu poder, suportou (quer dizer, permitiu) com muita paciência, os vasos de ira, preparados para a perdição, a fim de mostrar as riquezas da sua glória sobre os vasos de misericórida, que preparou para a glória, (onde está a injustiça?)».

Se, quer a justiça, quer a misericórdia são infinitas, exigem uma duração infinita para se manifestar. Aí temos as principais razões de conveniência em abono deste dogma » revelado. Podem-se aprofundar cada vez mais. Diferem de um argumento provável ordinário, que pode ser falso. Estas

razões de conveniência de um mistério revelado são verda­

deiras, mas não apodíticas ou demonstrativas; tendem

sempre para a verdade e inclinam a admiti-la, mas não a demonstram. Quando se multiplicam os lados de um polí­ gono inscrito numa circunferência, tende para se identificar com a circunferência, mas jamais chega a identificar-se com ela; a graça suficiente que proporciona a força próxima para praticar um acto salutar, aproxima-se sempre da graça eficaz que leva a praticar este acto, mas nunca se identifica cofii ela; cá na terra, a certeza da esperança, «certeza de

tendência», aproxima-se sempre da certeza da salvação,

mas nunca se identifica com ela, salvo uma revelação es­ pecial neste mundo, ou a segurança dada pelo juízo parti­ cular às almas do purgatório.

Vê-se pela precisão dos termos usados nestes diversos mistérios, que a teologia constitui uma verdadeira ciência. 1 Além disso, noutras partes, ela consegue chegar a conclu-

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sões certas, mas não atinge ainda a evidência nas conclusões.

E porque não? Porque a teologia, cá na terra, não goza ainda da evidência dos princípios da teologia que são os artigos da fé (a sua ciência está subordinada à ciência de Deus e dos bem-aventurados, como a óptica está subordi­ nada à geometria — comenta São Tomás. Porém, no céu, o teólogo, vendo Deus face a face, terá a evidência dos princípios da teologia e, portanto, a evidência das conclu­ sões certas desta ciência, como aquele que até agora não conhecia senão a óptica ou a perspectiva e passa a conhecer a geometria, adquire, com essa, a evidência das conclusões da óptica, que até aí permaneciam obscuras para ele. A teo­ logia constitui uma verdadeira ciência, mas cá na terra, permanece num estado imperfeito. Só no céu atingirá o seu estado perfeito.

A ETERNIDADE DAS PENAS

No documento O Homem e a Eternidade (páginas 70-73)