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Todas as margaridas - ao longo dos encontros - identificaram o momento em que perceberam as agressões do companheiro, rompendo com a idéia naturalizada e essencializada de que elas esperam comportamentos agressivos dos mesmos por eles serem homens, e narraram com profundidade seu sofrimento diante das pressões sociais, agressões e assédios morais e psicológicos. As tentativas de resistência às primeiras agressões revelam o estranhamento , mas a recaída imediata desvela o que sustenta a hierarquia e a essencialidade de gênero.

Nesta seção, discutiremos como a submissão a uma identidade já dada institui a procura amorosa, legitima a assimetria e esvazia a ética no mundo público, consolidando a procura dos prazeres, reforçando a visão idealizada de família e privatizando o espaço íntimo. O investimento político na questão do atendimento à mulher em situação de violência é percebido quando se abre a possibilidade delas narrarem suas histórias, tornando-as aliada na produção de contra-discursos, fortalecendo-as e possibilitando-as de sair da situação. Luisa traduz o sofrimento e a necessidade de espaços de compartilhamento: é um desespero que a

gente passa. Por isso que é importante a gente falar, procurar ajuda e esta ajuda não pode se

reportar puramente ao psicológico.

Pereira (2004) nos auxilia a aprofundar esse campo propondo uma reflexão sobre o “ethos do individuo grego e o êxtase do sujeito contemporâneo”, na qual fica evidente que, na modernidade, estabelece-se um processo de desinvestimento gradual do mundo público. Em diálogo com quatro autores: Richard Sennett, Hannah Arendt, Jean Baudrillard e Foucault, a autora mostra como as linguagens e as tecnologias têm contribuído para constituir uma existência e configurar modelos de relações.

Ondina Pereira descreve como as interpretações sobre as relações sociais e interpessoais são cegadas por uma ideologia da intimidade que restringe os campos de investigação a uma linguagem puramente intra-psíquica, o que Sennett chamou de „psicologismo‟, configurado pela tirania imposta por “um sistema unidimensional de

interpretação, um padrão único para enfretamento da realidade”(p.3). A autora complementa:

Segundo a forma do psicologismo, toda realidade, seja ela social, política, cultural ou econômica, só pode ser interpretada em termos exclusivamente psicológicos, ou seja, o mundo se torna um enorme sistema psíquico. Assim, o grande problema do mundo moderno é que nele a instância da intimidade estende suas fronteiras a ponto de alcançar a esfera pública. (PEREIRA, 2004, p. 3)

A contextualização da violência conjugal vista por este prisma pode incitar outra reflexão, sem perder de vista o eixo central dessa discussão que é o de evidenciar como o político mobiliza a constituição da subjetividade. A argumentação da autora, baseada em diferentes teóricos, é de que na “individualização moderna o indivíduo se constitui pela

submissão à sua identidade [...]” transformando-os em indivíduos passivos e distanciados da

ação política, focando o interesse na pessoa, na personalidade, e não na ação coletiva para a

pode ser revisitada na questão da conjugalidade.15 O conceito de família emprega a noção de divisão de patrimônio, de partilha de bens entre duas pessoas heterossexuais. Assim, a construção de família está associada às estruturas de gênero e ao capitalismo, fortalecendo o individualismo, a leitura particularizada da responsabilidade moral da família e consolidando o campo para o psicologismo, tal como descrito por Sennett. A necessidade de viver uma vida íntima e de suportar as relações do mundo privado é um imperativo social que esvazia o público e determina o privado.

A cena moral ganha legitimidade e difusão discursiva, e as narrativas das Margaridas revelam a profundidade da marca do discurso social na permanência delas na vida conjugal, já que o mundo público não dá espaço para que sua situação conjugal seja debatida, muito ao contrário, pressiona para que retorne à privatização: Passei três meses com os meus pais, mas

nunca achei o apoio que precisava para sair da cidade. Mulher casada separada era um falatório só. Ainda tinha parentes que falavam. Uma pessoa me disse: “Deixe de besteira, volte para o seu marido”. De tanto falar acabei voltando (Shenna, 49 anos).

Outra questão igualmente importante é a privatização das relações, que ganha sua roupagem mais rígida com o afastamento do indivíduo da cena para o bem público. A „ideologia da intimidade‟, proposta por Sennett, produz o desinteresse gradual das pessoas ocidentais pela vida pública, esvaziando qualquer interesse pela ação política e consumindo cada vez mais emoção, paixão e interesse pela vida privada. O romantismo, fundamentado no mito do amor, instituiu a mensagem de que amar é sinônimo de se unir-se ao amado. Essa visão heterossexuada da afetividade consolida o discurso de que duas metades tem de se completar. Segundo Ferreira, as pessoas “não abriram mão da ilusão de que o amor é a via

para encontrar a felicidade como sinônimo de plenitude” (Ferreira, 2004, p.7).

Muitas cenas de ciúmes e controle são naturalizadas pelas mulheres no início da relação por julgarem as ações de seus companheiros como demonstração de amor (HIRIGOYEN, 2006). Shenna relata a tática deste tipo de sedução: quando a gente namorava,

ele dizia que queria me colocar numa redoma de vidro para ficar só admirando minha beleza. Na época eu pensava que isso era muito amor, tratar alguém assim, admirando. Hoje percebo que isso era possessão, porque o que queria mesmo era me ter como propriedade.

(Sheena).

15 A esse respeito, ler formulações de Patman (1993) sobre a questão do contrato sexual, que discorre sobre a

origem do direito político incluída no direito sexual , sendo este contrato social original que dividiu a sociedade em duas esferas, a privada e a pública. Para a autora, “as mulheres estão submetidas aos homens tanto na vida privada quanto na pública, de fato, o direito patriarcal dos homens é o principal suporte estrutural unindo as duas esferas” (p.167).

O processo de submissão (HIRIGOYEN,2006) que se desenvolve ao longo da relação conjugal se inicia, muitas vezes, neste período da sedução. A idealização do amor romântico abre margem para a sedução e os galanteios de “possíveis agressores” que utilizam, inclusive, o discurso do ciúme como prova de amor e cumplicidade entre o casal. Segundo Narvaz e Koller (2006), os agressores sabem escolher suas vítimas e elegem aquelas mais fragilizadas para perpetrarem situações como essas.

A suspeição permanente da infidelidade da mulher pode ser considerada a marca mais recorrente da violência conjugal e a expressão de controle mais eficaz da cultura patriarcal individualizante. Esta última é responsável por emitir uma mensagem pela “procura do amor” e da conjugalidade, que determina o corpo da mulher como objeto e propriedade do cônjuge. Todas as experiências relatadas decorreram deste tipo acusação e quase todas as agressões físicas ocorreram logo nos primeiros meses de casamento, com exceção de uma das Margaridas, que sofreu o primeiro “soco” ainda na época do namoro.

As cenas de ciúmes, muitas vezes legitimadas socialmente, são usadas tanto para táticas de sedução como para imprimir o controle, que se refere ao sentimento de posse; para provocar o isolamento, que se refere à demanda do homem em submeter a mulher para pensar unicamente nele; o assédio, no qual a mulher cede aos apelos e justificativas do companheiro ao longo dos anos; o aviltamento, cujas principais ações consistem em dirigir palavras depreciativas e observações desagradáveis, aniquilando o diferente e preparando o terreno para o próximo passo, a (des)sensibilização frente às agressões; a humilhação, que muitas vezes vem associada a um componente sexual; a intimidação, que desperta o medo e a indiferença afetiva (HIRIGOYEN, 2006).

Cláudia diz que o medo e a falta de disposição para enfrentar novas brigas com o companheiro a fez se voltar unicamente para o mundo privado: tanta coisa que ele já fez e já

falou que você fica com medo dele te agarrar na rua no meio das pessoas, outro dia foi a maior briga, porque ele ficou com ciúmes de um primo meu.

Lourdes também relata que a perseguição do ex-marido por vestígios de outros homens era o que provocava as agressões diárias: Eu não podia usar sabonete de cheiro,

perfume, roupa colada, porque ele já cortou roupa no meu corpo. Ah, tem um pouco aqui, vamos, tira!Eu saia tirando. E eu ficava no canto com mais medo ainda, ele pegava o colchão, puxava para o chão, e os filhos ficavam todo mundo com medo.

A esse respeito, diz Shenna: A mentalidade do homem é tão medíocre... Quando eu

machucava a perna ele dizia que eu tava num hotel, por isso eu tava marcada. Até imitava a posição que eu supostamente tava com um homem. Eles acham que a mulher não é nada.

As táticas do patriarcado podem ser visitadas em diferentes situações, como na relação de agressão e sedução, recorrente nos relatos de violência conjugal: Na primeira agressão ele

voou no pescoço [...] Eu continuei com ele pelo carinho. Ele me seduzia muito lavando minhas calcinhas, me dando banho... então eu gostava daquele carinho, eu não sabia que estava com uma pessoa doente e que corria risco de morte. Ele me ameaçava com faca, gostava de me morder, não deixava fechar a porta do banheiro, não me deixava nem bocejar, já ia colocando a mão na minha boca e me beijava... ele dizia que achava lindo o meu bocejo.

(Lúcia, 22 anos).

Nesta narrativa preocupante e de sério risco, Lúcia relatou que estava refém de uma promessa de amor e que se permitiu a esse confinamento da violência e amor privado por acreditar que não tinha mais ninguém no mundo para estar ao seu lado, rendendo-se, então, aos abusos e prazeres de seu ex-companheiro. No início da pesquisa, justificou a última agressão dele – que configurou uma cena de tortura, assédio e ameaça (ele a ameaçou com uma faca, a estuprou e a humilhou durante uma noite e madruga inteira) – sob a seguinte argumentação: “ele fez isso comigo porque eu não sinto prazer na cama com ele”. Segundo ela, achava que seu companheiro tinha razão em ter perdido a racionalidade pelo fato dela não sentir prazer sexual com ele. Será que se sentia fragmentada por não conseguir render tributos ao companheiro e por isso merecedora do descontrole agressivo do mesmo? A condução clínica pode corroborar com a estrutura da violência legitimando essa agressão como uma possibilidade de sentir, focando a experiência no relato dela e não no contexto, o que seria muito perigoso para mantê-la no vínculo.

A produção discursiva sobre a sexualidade e a forma como esse dispositivo provoca a exibição massiva da intimidade - convocando as pessoas a falarem sobre si - implica a idéia central de uma identidade – um nome, uma adequação de gênero, de corpo, de desejo, de classe e de subordinação as leis e regras vigentes. Qualquer subversão é categorizada como problema de relacionamento interpessoal, deficiência, doença, loucura, personalidade transgressora ou criminosa, frigidez, etc. Conclui-se, então, que os códigos psicológicos aprisionam o sujeito, atribuindo uma causalidade psíquica, individual, para todas as suas vivências. Foi assim que Lúcia começou a falar sobre o que sentia - que para ela era uma dificuldade de sentir prazer sexual com uma pessoa que a agredia e a oprimia, não a deixando sequer bocejar.

A complexa dinâmica que interpela o sujeito a falar sobre si levou as Margaridas a procurarem atendimento psicológico, buscando no “aconselhamento profissional” alguém que pudesse falar sobre elas, o que Ondina Pereira (2004) descreve como a procura obsessiva de

um saber que fale a respeito do que seriam as nossas psiques, corroborando para a afirmação de Sennett em Pereira (p.16): O eu de cada pessoa tornou-se o próprio fardo; conhecer-se a

si mesmo tornou-se antes uma finalidade do que um meio através do qual se conhece o mundo.” Muitas mulheres agredidas sentem-se culpadas pela escolha da relação ou pelo descontrole do companheiro, atribuindo ao psicólogo a solução de um problema que está na pessoa e não no contexto social, político e histórico que produzem os sintomas. No último encontro, Shenna questionou sobre a sua permanência no vínculo e ainda assim procurava encontrar um resposta interna para a sua escolha: Fico pensando que tive tantas

oportunidades, mas como não saí? Se eu tivesse ficado com outra pessoa, não tinha ficado com ele não. Não sei no que acreditei, eu não gostava dele tanto assim. Mas enquanto ele não consegue uma coisa ele não desiste. E eu achava que isso é que ele gostava de mim. Eu tentei sair e não conseguia. Por que isso? Ele me convencia. (Shenna). Meu futuro, no presente, tá prejudicado pelo meu passado. Quando se pergunta o porquê, ela pretende encontrar a

resposta em algum mecanismo interno, psíquico, ainda obscurecido, e assim, culpabiliza-se pela escolha traçando um presente penoso para se livrar do trauma. Ela se perguntava: O que

me liga a uma pessoa dessa? Será se eu gosto dele? Tenho que procurar uma maneira de sair desse relacionamento, não tem condição. Isso é gostar? Isso não pode ser gostar. Eu queria me livrar desse sentimento.

A ideologia da intimidade produz a exigência da “sanidade mental”, da adequação corporal e moral a partir do modelo hegemônico, iluminando o culto à personalidade e o foco na pessoa, que passam a ser objetos prioritários das investigações. Uma investigação científica que se propõe a estudar as características psicológicas das mulheres agredidas ou do agressor desperta grande interesse da comunidade acadêmica, mas um estudo que pretende refletir sobre as estruturas que mantêm toda essa ideologia corre o risco de ficar sempre à margem.

4.4 EXPERIÊNCIA DE GRUPO: DESLOCAMENTO DA REVELAÇÃO INDIVIDUAL