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CAPÍTULO 1 – (DES)CONSTRUÇÃO DA SEXUALIDADE E DA DIFERENÇA

2.5 Contração familiar e perda da autoridade paterna

2.5.1 Declínio da imago paterna

É então essa concepção durkheimiana da família e de sua evolução, com suas consequências morais, que Lacan retoma em “Os complexos familiares na formação do indivíduo”. Nele, o autor descreve um declínio social da imago paterna, que conduziria ao empobrecimento identificatório das famílias e à degradação do complexo de Édipo, que por sua vez não garantiria mais a harmoniosa maturação subjetiva da criança.

O valor da imago paterna está em declínio, segundo ele, devido à passagem da instituição familiar de suas formas extensas, marcadas pela soberania paterna à sua forma conjugal e reduzida, dominada por interesses matrimoniais gerados pela figura de um pai com poder e autoridade mais restritos. Ao retomar essas ideias de Durkheim, Lacan faz inclusive do casamento o último operador simbólico de produção de laços familiares (ZAFIROPOULOS, 2002).

Lacan (1938) argumenta que o declínio sócio-histórico do poder do pai teria levado a uma “crise psicológica”, que seria a razão do próprio nascimento da psicanálise no final do século XIX e da descoberta (de uma versão degradada) do complexo de Édipo por Freud, filho do patriarcado judeu em Viena. Esse declínio teria sido observado por Freud na insuficiência social dos pais de seus pacientes e a elaboração da teoria psicanalítica revelaria seu desejo de revalorizar simbolicamente o pai (ROUDINESCO e PLON, 1998).

Como veremos mais adiante, o próprio Lacan, em seu retorno a Freud na década de 50, repete esse movimento de revalorização do pai, ao reintroduzir a imagem do pai sob a forma de uma função simbólica essencial à organização da família e à estruturação subjetiva das gerações (ZAFIROPOULOS, 2002).

Zafiropoulos (2002) acredita que nesse período de influência durkheimiana Lacan diverge de Freud quanto ao entendimento da universalidade do complexo de Édipo. Em vez de universal, como propõe Freud, em Lacan nesse momento ele é socialmente determinado, relativo a uma estrutura social e familiar. Se o valor da imago paterna no Édipo é deduzido do

valor da imagem paterna na família, isso significa que ele varia conforme as condições sócio-históricas de estruturação e de funcionamento da família.

Além de determinante para as condições de organização do complexo de Édipo, o declínio do poder do pai é entendido por Lacan como causa das formas clínicas das neuroses que ele analisa nessa época. Diferente das neuroses de transferência descritas por Freud, a neurose contemporânea de que fala Lacan seria causada por um pai humilhado: “Nossa experiência nos leva a designar a sua [da neurose contemporânea] determinação principal na personalidade do pai, sempre de algum modo carente, ausente, humilhada, dividida ou postiça” (LACAN, 1938/2003, p. 67).

A fragilização da figura do pai, devido à perda de prestígio na passagem da família extensa à conjugal, implicaria na tendência ao desaparecimento do imperativo de autoridade e, assim, em uma impossibilidade de um princípio de mediação no psiquismo que permitisse a ruptura da criança com a imago materna. A imago paterna não conseguiria se contrapor à materna. As relações entre os sexos também se degradariam pela fragilização desse princípio de mediação. Diante disso, a função da psicanálise para Lacan seria fortalecer a imago paterna no sujeito, que lhe possibilitaria uma relação triangular e o lançaria no espaço social das trocas com os outros, pela mediação entre ele e o mundo (BIRMAN, 2006b).

Na opinião de Zafiropoulos (2002), inicialmente Lacan tenta valorizar a imago materna por sua participação no estádio do espelho, experiência anterior ao Édipo em que o sujeito descobre a imagem completa de seu corpo próprio a partir de uma intervenção da mãe, e que acaba com a angústia que acompanhava a percepção do corpo fragmentado. Em seguida, porém, ele reavalia o valor da imago materna e afirma a predominância da imago paterna, como o que garante a saída do Édipo pela formação do ideal de eu e do supereu. A imago do pai, contrariamente à da mãe, é, assim, a que possibilita ao sujeito se livrar da interferência de identificações primordiais, carregadas de ambivalência. Ela garante a dupla função de encarnação da autoridade e de acesso à realidade sexual (BRUNO, 2012).

Ainda segundo Zafiropoulos (2002), uma característica própria desse primeiro tempo da teoria de Lacan, que não marcará mais o próximo período, é o entendimento de que o lugar importante ocupado pela imago paterna não é livre de determinações socioculturais. É a família patriarcal que fornece o contexto mais adequado para o exercício das duas funções, unidas sob o primado da autoridade paterna. Quando isso ocorre, a fecundidade do complexo de Édipo é então máxima, permitindo ao sujeito o acesso à cultura. A autoridade paterna é responsável por uma abertura ao laço social, ao desenvolvimento subjetivo e à produção de bens culturais.

Nessa primeira versão lacaniana do Édipo, não se visa apenas a maturação subjetiva do sujeito, mas também o desenvolvimento das formações culturais, a produção das sociedades. Nesse sentido, além dos sintomas do sujeito, é o próprio futuro da cultura que depende do valor tomado pelo pai na família. O autor associa inclusive a estagnação dos povos primitivos às culturas matriarcais, enquanto a “fábrica de grandes homens” estaria ligada à história dos povos patriarcais, onde há uma boa transmissão do ideal de eu do pai ao filho.

A relatividade sócio-histórica do complexo de Édipo introduzida por Lacan, que não poderia ser encontrada em Freud, traz consigo, entretanto, certa incerteza sobre a permanência da presença paterna. Enquanto Freud convoca um pai que não se discute, Lacan fala de um pai cuja atuação edipiana varia conforme as condições sócio-históricas do exercício de sua autoridade. Ou ainda, em outras palavras, se o primeiro reconhece o lugar constante do “monumento paterno” no centro da produção subjetiva e social, o segundo discerne uma variável sempre suscetível à queda.

A consequência dessa posição lacaniana é o desencadeamento de uma idealização da família patriarcal, única vista como verdadeiramente apta a fornecer as condições sociais mais fecundas ao Édipo e à estruturação dos indivíduos e da cultura (ZAFIROPOULOS, 2002). O Édipo ganha, assim, função de normalização social e o pai, de operador dessa normalização (BIRMAN, 2006b).

No texto de 1938 Lacan está ainda distante de Freud. A partir da década de 50, sobretudo depois de 1953, o autor reformula a sua teoria, com o deslocamento de uma tópica centrada no imaginário para uma que se funda no simbólico. A família cede lugar às relações de parentesco, e a imago paterna, à função paterna, enunciada pela mediação operatória do significante Nome-do-Pai.

Pode-se dizer que há nesse momento uma “revolução estrutural” (ZAFIROPOULOS, 2014) da teoria lacaniana, quando Lacan rompe com Durkheim e encontra Lévi-Strauss. A partir daí, ele modifica radicalmente sua teoria. Nesse contexto, a questão do pai tem importância fundamental: Zafiropoulos afirma mesmo que ela é a porta de entrada dessa revolução.

A seguir, serão apresentados alguns pontos importantes da teoria que Lévi-Strauss desenvolve em “Les structures élémentaires de la parenté”. Depois, veremos como se deu então o retorno de Lacan a Freud, a partir de Lévi-Strauss, e o que surge de novo em sua teoria sobre o complexo de Édipo, a função paterna e a diferença sexual.