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A declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas: direitos e educação

4 FAZENDO ACONTECER

4.5 A declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas: direitos e educação

A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas é o instrumento jurídico mais recente e mais avançado no sentido fundamentar direitos a esses povos. Essa normatização internacional, sancionada pelo governo brasileiro, determina que os povos indígenas tenham o direito a serem ouvidos e de participar do processo de discussão nas decisões a respeito de questões que lhes digam respeito.

No artigo 19 lê-se que “os estados celebrarão consultas e cooperarão de boa fé com os povos indígenas interessados, por meio de suas instituições representativas antes de adotar e

aplicar medidas legislativas ou administrativas que os afetem, a fim, de obter seu consentimento livre, prévio e informado”27.

Comentando sobre o fazer político no âmbito das escolas indígenas a partir da experiência, junto aos Guarani e Kaiowá, a professora Adir Casaro Nascimento lembra que:

Hoje, no Brasil, o índio é um cidadão legalmente constituído, que tem direito à voz e representação (tem mesmo?28), muitas vezes portador de diferenças entre seus pares, em face das condições e da história das várias etnias; porém, em sua essência, no fio condutor de suas reivindicações, possui o discernimento de não aceitar a conduta autoritária dos órgãos que devem, por obrigação constitucional, colocar à sua disposição um serviço de qualidade e de acordo com suas necessidades e peculiaridades (NASCIMENTO, 2004, p. 81).

Lembra ainda que:

O estado, mediante suas políticas públicas, sempre foi, por definição, homogeneizador e, por conseqüência, impositivo, autoritário e enrijecedor. Ao aceitar alterar juridicamente suas relações com os povos indígenas, tem demonstrado, por intermédio de suas ações, ter se apropriado concretamente do conhecimento acumulado pelos movimentos indígenas e suas assessorias. Sutilmente invoca uma forma de inclusão às avessas, legitimando experiências autônomas naquilo que elas têm de mais abstrato e universal, “despolitizando”, de certa forma, as reivindicações.

Considerando ser essa a aceitação de uma sociedade poliétnica inserida no contexto de uma sociedade mercantil cujos grupos dominantes têm amplos poderes sobre o sistema estatal, não é de se estranhar as “sutilezas” usadas limitando a alteridade a espaços mais restritos à socialização primária: religião e relações domésticas com maior evidência. (NASCIMENTO, 2004, p. 130/131)

As duas últimas autoras citadas, Batista (2005) e Nascimento (2004), estão envolvidas com a educação escolar indígena, nos âmbitos de gestão municipal e assessoria aos projetos educativos. Atuam, também, na formação de professores Guarani e Kaiowá.

27 Em espanhol, no original: “Los Estados celebrarán consultas y cooperarán de buena fe con los pueblos

indígenas interesados por medio de sus instituciones representativas antes de adoptar y aplicar medidas legislativas o administrativas que los afecten, a fin de obtener su consentimiento libre, previo e informado.” Disponível em:

<http://www.campanhaguarani.org.br/pub/publicacoes/manual_declaracion_nnuu_derechos_de_los_pueblos_ind igenas..pdf >. Acesso 30 dez. 2010.

É importante refletir sobre o significado do conceito de cidadania expresso no trecho acima, quando a autora inclui uma dúvida a respeito do que afirma. Para isso, me apoiarei na noção de civilidade, utilizada por Caccia-Bava (2004), quando menciona que:

implica [...] na superação das incertezas, da sensação de abandono, da exclusão social, da desfiguração dos padrões culturais de relacionamento entre grupos diferenciados e entre pessoas dentro de cada grupo. Seja por suas idades, suas condições de existência material, sua característica étnica, suas convicções religiosas, políticas e filosóficas. (CACCIA-BAVA, 2004, p. 71).

No caso do índio, há que se desvincular a noção de direitos da noção de cidadania. A concepção de direitos do índio deve ser aquela relacionada aos povos, enquanto sujeitos coletivos. A noção de povos aparece como belicosa para o poder público, quando aplicada aos indígenas, porque questiona o processo homogeneizador que se formula no bojo do estado nação. Em síntese, o temor é o de questionamento da soberania, a partir da existência de muitos povos no interior do território nacional. Neste sentido, a noção de civilidade, como apresentada acima, parece ter maior vigor analítico, para compreender a abrangência com que os direitos humanos são considerados na relação entre estado e povos indígenas:

Do lado oriental e para além do ocidentalismo, pouco estudamos como os direitos humanos foram assimilados no contexto da civilização africana, da civilização asiática, da civilização islâmica e persa, da civilização árabe, da civilização milenar dos povos indígenas da América. Essas civilizações não possuem o mesmo Leste ou Oeste ocidentais. Tampouco se congregam em estados-nações, da mesma maneira que fizeram os povos europeus e americanos ocidentais, em torno do projeto de construção dos paradigmas da sociedade civil organizada. Para essas outras sociedades, seus povos e crenças são o que de maior valor possuem em sua existência, na suas dimensões subjetivas da memória e da cultura que produzem e na dimensão objetiva da história, a partir dos territórios que ocupam. Suas religiões são marcos estruturadores do que concebem como civilidade. (CACCIA- BAVA, 2004, p.54).

Fazer essa distinção é importante para compreender a relação entre sociedade hegemônica e povos indígenas nos contextos pós-colonialistas. Se a subjugação e extermínio desses povos aconteceram em contextos coloniais, eles não deixaram de existir a partir da formulação de constituições ditas democráticas.

A educação tem sido o veículo preferencial de integração daqueles povos que resistiram à sociedade hegemônica. Então, para pensar a formulação de direitos que atendam

às especificidades dos povos indígenas é necessário pensar em uma pedagogia pós-colonial, que rompa com os princípios da educação voltada para o mercado, que transforma sujeitos possuidores de direitos em consumidores. (MATOS, 2005; MCLAREN, 2000).

A Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas estabelece que tenham direito a estabelecer e controlar sistemas próprios de educação, a partir dos idiomas próprios, em consonância com seus métodos próprios de ensino aprendizagem29.

Embora este princípio também esteja presente na Constituição brasileira, este é outro aspecto que choca com interesses locais onde as escolas indígenas estão situadas. Ainda que existam escolas nas aldeias, a maioria não se constitui em escolas criadas a partir da categoria de escolas indígenas. Neste sentido, elas são extensões das escolas da cidade, não são dirigidas por indígenas e apresentam pedagogias e materiais didáticos não específicos.

A educação é um elemento fundamental em toda cultura humana e tem se apresentado com um dos instrumentos principais de dominação, assimilação e, inclusive, de extermínio das identidades indígenas, em seus vários aspectos. Foi procurando preservar os povos indígenas dessa trajetória que aquela Declaração estabeleceu o princípio da autonomia para as instituições de educação indígenas, que também está em consonância com o estabelecido na legislação brasileira.

A ausência de autonomia na condução dos processos próprios de aprendizagem representa uma violação deste direito. Entretanto, muitos municípios, em Mato Grosso do Sul, continuam impedindo a gestão indígena alegando que os índios não estão preparados para assumirem suas escolas. É significativo, também, o que revela Batista (2005) no que se refere à subordinação dos interesses da comunidade indígena aos princípios educativos da sociedade hegemônica.

Essa fórmula demonstra a eficácia dessa hegemonia, onde, segundo Matos (2005): “...O pensamento único é o do mundo da uniformidade, da unanimidade, para o qual quem pensa opõe resistência, devendo ser tratado como traidor”. (MATOS, 2005, p. 31).

29 Em espanhol, no original: Artículo 14. “1. Los pueblos indígenas tienen derecho a establecer y controlar sus

sistemas e instituciones docentes que impartan educación en sus propios idiomas, en consonancia con sus métodos culturales de enseñanza y aprendizaje. 2. Los indígenas, en particular los niños, tienen derecho a todos los niveles y formas de educación del Estado sin discriminación. 3. Los Estados adoptarán medidas eficaces, conjuntamente con los pueblos indígenas, para que las personas indígenas, en particular los niños, incluídos los que viven fuera de sus comunidades, tengan acceso, cuando sea posible, a la educación en su propia cultura y en su propio idioma.” Manual básico sobre La Declaracion de las Naciones Unidas de los derechos de los pueblos indígenas. Disponível em:

http://www.campanhaguarani.org.br/pub/publicacoes/manual_declaracion_nnuu_derechos_de_los_pueblos_indi genas.pdf> Acesso 30 dez. 2010.

Freitag (1986) nos ajuda a pensar a respeito do conceito gramsciano de hegemonia e sua relação com a educação. Para compreender o conceito de hegemonia é necessário relacioná-lo ao conceito de sociedade civil, que Gramsci distingue de Estado. Enquanto, para Marx, o estado detinha o monopólio da violência, Gramsci propõe sua divisão em duas esferas. Elas compreendem a sociedade política, espaço do poder repressivo, e a sociedade civil, constituída pelas associações privadas, como a escola, igreja, os sindicatos. É no âmbito da sociedade civil que a sociedade política busca obter o consentimento para seguir governando, e o faz através de processos ideológicos. (FREITAG, 1986, p. 37).

Na sociedade civil se expressa o momento de persuasão, que juntamente com elementos de repressão e violência presentes na sociedade política, reforçam a manutenção do poder estatal. Segundo a autora citada, os conceitos de hegemonia e de sociedade civil permitem pensar em uma pedagogia que supere a educação enquanto instrumento de dominação.

Em relação a esse aspecto, quero introduzir a concepção de Mészáros (2005), sobre a possibilidade de uma educação para além do mercado. Para o autor, a educação se relaciona aos processos sociais mais amplos e está, portanto, estritamente ligada ao capital. No caso da educação formal, uma das suas principais finalidade é a de produzir tanta conformidade quanto possível à lógica capitalista. Nesse âmbito, reformas são preconizadas somente em caráter superficial. A tarefa de educar para além do mercado requer superar a alienação e promover a junção entre saber e fazer, enquanto processo de autoeducação de iguais.

Ao pensar a elaboração de Gramsci de que toda relação de hegemonia é

necessariamente uma relação pedagógica, podemos compreender o processo pelo qual os

grupos dominantes transformam sua ideologia em conteúdos pedagógicos que, realizados historicamente, se transformam em senso comum. (FREITAG, 1986, p. 34).

Para a autora:

O controle do sistema educacional constitui um momento decisivo na luta de classes. [...] Numa formação social historicamente realizada, esse controle sempre é exercido pela classe dominante, mas, dependendo da sociedade e da conjuntura histórica específica, o Estado pode intercalar-se como mediador, como é o caso do capitalismo moderno. Sob a aparência de defender uma concepção de mundo universal, justa e neutra em relação a todos os membros da sociedade, o Estado capitalista introduz ao nível da sociedade política e civil a concepção de mundo hegemônica, da burguesia, usando a escola como um dos elementos de sua divulgação, inculcação e penetração. (FREITAG, 1986, p. 40).

Esse é um processo importante para se pensar como se realiza a concepção de senso comum, presente nas aldeias, que nega o direito à educação escolar indígena diferenciada. A equação por traz dessa idéia é que o diferente é “menos”, já que enquanto diferentes sempre tiveram acesso a “menos” e assim foram considerados.

Ainda que a contribuição da autora citada tenha sido elaborada há quase vinte e cinco anos, ela se revela importante quando relacionada à concepção de que “a educação escolar indígena em Mato Grosso do Sul se apresenta como luta de classes”, manifestada por um funcionário público estadual, atuando na educação escolar indígena.30 Instigou-me, também, a refletir sobre a possibilidade de uma educação escolar indígena que se apresente para além do capital, nos termos de Mészáros (2005).

Chegando ao dilema do nível de compreensão apresentado em relação à afirmação sobre a educação escolar indígena enquanto luta de classes, é necessário dar a ela o seu devido peso. O conceito de luta de classes estava sendo utilizado como formulado na teoria marxista, com a devida compreensão a respeito das relações históricas de produção? Ou apenas mencionando as disputas por postos de trabalho, presentes no campo da educação escolar indígena?

Pode ser, ainda, que o funcionário, ao utilizar esta expressão, estivesse se filiando à corrente historiográfica mencionada por Thompson (1982), que faz uso do conceito de classe “de maneira deliberada e não por uma ‘inocência’ teórica”, mas como não tem formação de historiador isso é pouco provável. (THOMPSON, 1982, p. 188).

Talvez estivesse mencionando, de forma clara e simples, a compreensão de que a educação escolar indígena é uma modalidade oferecida pelo Estado e, nessa medida, expressa e reproduz a condição histórica de subalternidade dos povos indígenas frente à sociedade hegemônica. Ou, ainda, conhecedor da minha condição de socióloga, e dialogando a partir dela, expressava uma compreensão das disputas presentes nas relações de produção, que se estendem ao processo educativo.

De fato, a educação escolar indígena se constitui em espaço de poder e campo de luta política, por alguns motivos:

x Na prática, está filiada aos sistemas de ensino em geral e estes se constituem em espaços de luta por hegemonia, onde uma classe reforça sua hegemonia sobre a outra;

30 Diário de Campo. Com essa frase, iniciou-se uma narrativa sobre a reivindicação, por parte de uma etnia, de

que o cargo de gestão da educação escolar no Estado deveria ser ocupado por um representante indígena. Como a situação não era de entrevista, não julguei procedente interromper e perguntar o que estava pretendo dizer com isso. Esperei compreender o significado de sua frase no desenrolar dos acontecimentos.

x No que tange aos povos indígenas, podemos nos referir à hegemonia de um povo sobre o outro. Consequentemente, nesse campo, as lutas que visam à superação das condições históricas de usurpação presentes para os Guarani e Kaiowá são expressões de compreensões históricas distintas.

x Essas compreensões históricas distintas estão ligadas à economia de mercado, no caso da sociedade hegemônica, e da economia de reciprocidade no caso dos Guarani e Kaiowá.

x Os Guarani e Kaiowá se inserem de forma marginal na economia de mercado e vivem a ambiguidade de ser e ter no mundo contemporâneo, que é orientado pelo karai reko (modo de vida do branco). Neste contexto, as disputas por postos de trabalho nas escolas indígenas são uma representação da luta por hegemonia política.

Neste cenário, destaca-se a experiência de luta do Movimento de Professores Guarani e Kaiowá.

4.6 O Movimento de Professores Guarani e Kaiowá: a atuação onde o direito