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MIGRAÇÃO CONTEMPORÂNEA: DESLOCAMENTOS E FORMAS DE MOBILIDADE

1.1 Comércio do sexo: sistemas jurídicos da prostituição

1.1.2 Definições normativas: tráfico internacional de seres humanos

A discussão atual sobre migração internacional evoca dois conceitos jurídicos: o tráfico de pessoas e o tráfico de migrantes, ou contrabando (smuggling) de migrantes147. Tais conceitos são de referência internacional e fruto da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional148, que entrou em vigor em 2003, cujo intuito é promover a

cooperação entre os países no combate à criminalidade internacional. Em seu artigo 37, a convenção estabelece que poderá ser completada por intermédio de protocolos adicionais, e já foram elaborados três: o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças149, conhecido como Protocolo de Palermo, que trata especificamente do tráfico de pessoas; o protocolo que trata do contrabando de migrantes (Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado e Transnacional, Relativo ao Combate ao Tráfico de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea); e o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra a Fabricação Ilegal de Armas de Fogo, Inclusive Peças, Acessórios e Munições150. Nesta tese são abordados os dois primeiros151.

A mais abrangente convenção internacional sobre o tráfico pessoas é o Protocolo de Palermo. Formulado em 2000 pela ONU, entrou em vigor internacionalmente em 2003. Assinado e ratificado por diversos países membros dessa organização, é um dos instrumentos jurídicos de referência mundial, e traz, em seu artigo 3, a definição de tráfico de pessoas:

A expressão “tráfico de pessoas” significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano,

147 Aqui será utilizada, com mais frequência, a expressão “contrabando de migrantes” para fazer referência ao

“tráfico de migrantes” — esta última, a expressão utilizada no protocolo adicional da ONU relativo a esse tráfico (Protocolo adicional à convenção das Nações Unidas contra o crime organizado e transnacional, relativo ao combate ao tráfico de migrantes por via terrestre, marítima e aérea. Nova York, 15 de novembro de 2000).

148 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção das Nações Unidas contra o crime organizado transnacional. Nova York, 15 de novembro de 2000.

149 Idem. Protocolo adicional à convenção das Nações Unidas contra o crime organizado transnacional relativo à prevenção, repressão e punição do tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças. Nova York, 15 de

novembro de 2000.

150 Idem. Protocolo adicional à convenção das Nações Unidas contra o crime organizado e transnacional, contra a fabricação e o tráfico ilícito de armas de fogo, suas peças e componentes e munições. Nova York, 15 de

novembro de 2000.

151 Não é intenção, aqui, esgotar o tema, mas apontar algumas diferenças entre os dois conceitos (tráfico de pessoas

e tráfico de migrantes), pois embora se tratem de migrações internacionais, juridicamente são ilícitos diferentes que por vezes são tratados dentro da mesma lógica.

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ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. [...]152.

O Protocolo de Palermo preconiza que nos casos que envolvem crianças e adolescentes (menores de 18 anos), o consentimento é irrelevante para ser considerado como tráfico de pessoas, ou seja, sendo menor de idade não importa se houve consentimento ou não153; e define “exploração”, que está ligada não apenas à prostituição, mas é constantemente evocada no debate sobre os mercados do sexo: “A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos” (artigo 3).

Os termos empregados para definir o tráfico de pessoas causam algumas dificuldades de interpretação, em razão das definições contraditórias dadas a esse crime154, o que, segundo

Wendy Chapkis, revela a fragilidade de sua conceituação155; e Adriana Piscitelli e Marcia Vasconcelos afirmam que “as ambiguidades presentes em vários dos seus termos possibilitam interpretações divergentes”156. Além disso, as respostas legislativas para combatê-lo variam de

acordo com cada país, seja por razões políticas, seja por razões econômicas, sociais ou culturais157 — e não se pode desconsiderar que “muitos países nomeiam a prostituição exercida por estrangeiras como ‘tráfico’, independentemente das condições reais do trabalho, da vontade das mulheres envolvidas, ou se a prostituição é permitida às cidadãs”158.

Políticas de controle de fronteira e disputas de interesse em torno da questão do tráfico de pessoas têm dado o tom dos discursos normativos a respeito deste último. Assim, é necessária atenção redobrada, pois é preciso compreender inicialmente o conceito jurídico que baliza esse crime, uma vez que o Protocolo de Palermo, embora tenha sido assinado e ratificado

152 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Protocolo adicional à convenção das Nações Unidas contra o crime organizado transnacional relativo à prevenção, repressão e punição do tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças, op. cit., artigo 3.

153 Conforme as letras “c” e “d” do artigo 3: “c) O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o

acolhimento de uma criança para fins de exploração serão considerados ‘tráfico de pessoas’, mesmo que não envolvam nenhum dos meios referidos da alínea ‘a’ do presente Artigo; d) O termo ‘criança’ significa qualquer pessoa com idade inferior a dezoito anos”.

154 Ver SILVA e BLANCHETTE, op. cit.

155 CHAPKIS, Wendy. Trafficking, migration and the law: protecting innocents, punishing immigrants. Gender and Society, v.16, n.6, p.923-937, 2003.

156 PISCITELLI, Adriana; VASCONCELOS, Marcia. Apresentação. Cadernos Pagu - Dossiê Gênero no Tráfico

de Pessoas, n.31, p.9-28, 2008 (p.14).

157 FILIPE, Anabela Ferreira. Tráfico de seres humanos: análise de uma escravatura contemporânea. 240p.

Dissertação (Mestrado em Comportamentos Desviantes e Ciências Criminais) - Universidade de Lisboa, Lisboa, 2008.

158 GRUPO DAVIDA. Prostitutas, “traficadas” e pânicos morais: uma análise da produção de fatos em pesquisas

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por vários países e sirva de referência no combate a ele, não dá conta da diversidade de compreensão e de enquadramento jurídico de cada país, os quais legislam sobre o tráfico de pessoas de acordo com seus dispositivos normativos — ou seja, as convenções criadas até então servem como conteúdo de referência sobre o tráfico de pessoas, e muitos países as têm tomado como base para a formulação e a reformulação de seu ordenamento jurídico referente a esse crime. Nesse contexto, o tráfico de pessoas como delito de natureza transnacional é de difícil criminalização, devido à sua complexidade, sobretudo porque de uma fronteira para outra o ilegal pode se tornar legal, e vice-versa, dependendo da legislação de cada país.

1.1.3

Mobilidade

internacional:

contrabando/tráfico

de

migrante

(smuggling)

A mobilidade de milhares de pessoas, sobretudo das regiões Norte e Nordeste do Brasil, em direção à Guiana Francesa, irregularmente, em busca de trabalho, é expressiva desde meados da década de 1960159, e elas saem principalmente dos estados do Pará, Amapá e Maranhão. Os primeiros grandes fluxos migratórios iniciaram-se impulsionados pela construção do Centre Spatial Guyanais (CSG), uma base de lançamento de satélites em Kourou, segundo município mais populoso desse departamento francês. Com contratos de trabalho de seis meses, a maioria dos homens brasileiros que trabalhavam no empreendimento estava regularizada e geralmente ia para lá sem a família, mas ao longo do tempo a obra acabou atraindo trabalhadores irregulares160. Nas décadas de 1970 e 1980, o ciclo migratório se manteve em razão da exploração do ouro, e se dava sobretudo pela fronteira do Amapá. No final da década de 1980 e início da de 1990, a extração mineral no Amapá intensificou-se, bem como a repressão do governo brasileiro aos garimpos, e os garimpeiros do país entraram na rota migratória em direção à Guiana Francesa e ao Suriname161, a partir desse estado — em relação

159 PINTO, Manoel de Jesus de Souza. Por uma “sociologia da clandestinidade” no estudo da presença de

brasileiros na Guiana Francesa. In: ARAGÓN, Luis E. (Org.). Migração internacional na Pan-Amazônia. Belém: Naea/UFPA, 2009. p.237-253.

160 AROUCK, Ronaldo de Camargo. Brasileiros na Guiana Francesa: fronteiras e construção de alteridades.

Belém: UFPA/Naea, 2002.

161 OLIVEIRA, Rafael da Silva. Mobilidades transgressoras, geografias ignoradas: itinerários e emaranhamentos envolvendo territorialidades de garimpeiros no Suriname. 400p. Tese (Doutorado em Geografia Humana) -

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à Guiana Francesa, o caminho que tem início na cidade de Oiapoque, tornou-se a rota oficial de entrada de brasileiros clandestinos que vão por via terrestre162.

Embora não seja possível apresentar o número real de brasileiros presentes na Guiana Francesa, sobretudo pela invisibilidade dos irregulares, pelos dados da associação DAAC Guyane (sediada em Caiena) o número de garimpeiros indocumentados, em 2011, poderia chegar a dez mil; de acordo com o Consulado do Brasil na Guiana Francesa, naquele ano havia 6.752 imigrantes brasileiros legalizados163. No final da década de 1990 se intensificaram a

fiscalização, a repressão e a deportação de migrantes brasileiros irregulares164, o que influenciou

e influencia diretamente na circulação constante deles nos garimpos ilegais desse território, pois se deslocam conforme a fiscalização. Além disso, o rigor desta última fortalece os serviços oferecidos por contrabandistas ou traficantes de migrantes, que ganham financeiramente pela travessia e pela chegada deles não só à Guiana Francesa, mas também ao Suriname.

O protocolo relativo ao tráfico de migrantes conceitua o tráfico de migrantes na letra “a” do artigo 3:

a) A expressão “tráfico de migrantes” significa a promoção, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, um benefício financeiro ou outro benefício material, da entrada ilegal de uma pessoa num Estado Parte do qual essa pessoa não seja nacional ou residente permanente165.

Assim, o contrabando de migrantes se refere à entrada ilegal em um país através de pagamento ou benefício material a quem providencia a travessia da fronteira, quando normalmente se encerra o contato entre o migrante e a pessoa que o ajudou a entrar ilegalmente (conhecidos como coiotes, atravessadores, traficantes), e ocorre no âmbito internacional. Nesse caso, a vítima é o Estado, e os transgressores (o atravessador e o migrante) estão sujeitos à legislação do país de destino. Dependendo dos meios utilizados para atravessar a fronteira

162 PINTO, Manoel de Jesus de Souza. O fetiche do emprego: um estudo sobre relações de trabalho de brasileiros na Guiana Francesa. 273p. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Sustentável dos Trópicos Úmidos) -

Universidade Federal do Pará, Belém, 2007.

163 MARTINS, Carmentilla das Chagas. A migração internacional nos quadros da cooperação transfronteiriça

franco-brasileira. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 36. Anais... Águas de Lindoia, 21 a 25 de outubro de 2012. São Paulo: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, 2012. p.1-30.

164 Ibidem.

165 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, Protocolo adicional à convenção das Nações Unidas contra o crime organizado e transnacional, relativo ao combate ao tráfico de migrantes por via terrestre, marítima e aérea,

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(falsificação de documentos, etc.), os envolvidos podem responder por outros crimes166. De modo geral, o contrabando de migrante se configura como uma espécie de “prestação de serviço”, a qual é finalizada no destino combinado e cujo pagamento é, na maior parte das vezes, antecipado. Segundo o protocolo da ONU que trata do contrabando de migrante, esta é uma transação ilícita.

Como dito, o estado do Amapá é a rota oficial de entrada de brasileiros clandestinos que vão por via terrestre para a Guiana Francesa: a cidade fronteiriça de Oiapoque é lugar de espera e travessia; nela os migrantes chegam e se demoram apenas o tempo necessário para conseguir um atravessador que providencie a viagem. Em se tratando de migração clandestina, as pessoas entrevistadas nesta pesquisa diziam que fizeram varação167 — mas nem sempre o objetivo dos migrantes é permanecer na Guiana Francesa, o destino pode ser o Suriname, um percurso antigo e retoricamente masculino para esse país, geralmente narrado pelos homens a caminho do garimpo como uma “grande aventura”, e com menos frequência e menos glamour pelas mulheres168 — e as que se aventuram pela varação geralmente são do Maranhão.

Emily169, 25 anos, dona de casa, mãe de dois filhos (nascidos no Suriname), 2º ano do ensino médio170, nasceu no interior do Maranhão. Em 2005, aos 18 anos, ela e a irmã foram enviadas ao Suriname pela mãe — que já morara nesse país —, para encontrar uma tia que estava trabalhando lá. Como a irmã, na época com 17 anos, não podia sair do Brasil sem a documentação que permite a menores de 18 anos viajar desacompanhados dos pais, elas foram

166 RODRIGUES, Francilene dos Santos. “Garimpando” a sociedade roraimense: uma análise da conjuntura sócio-política. 133p. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido) - Universidade

Federal do Pará, Belém, 1996; ILLES, Paulo; TIMÓTEO, Gabrielle Louise Soares; PEREIRA, Elaine da Silva. Tráfico de pessoas para fins de exploração do trabalho na cidade de São Paulo. Cadernos Pagu - Dossiê Gênero no Tráfico de Pessoas, v.31, p.199-217, 2008.

167 Termo utilizado pelos brasileiros, que significa que a pessoa atravessou a fronteira sem utilizar percurso ou

meio de transporte convencionais. Também utilizam “varação” (a ação de atravessar o percurso) e “varador” (lugar ou caminho que se atravessa).

168 São poucas as mulheres que utilizam a varação para entrar no Suriname, em geral o destino é à Guiana Francesa. 169 Entrevistada em 2012 no Suriname; tinha permanência no país renovável a cada dois anos.

170 O sistema educacional regular do Brasil é regulamentado pelo Governo Federal através do Ministério da

Educação. Em 2006, foi sancionada a Lei nº 11.274, que regulamenta o ensino fundamental, alterando a sua duração mínima, que era de oito, para nove anos, com matricula obrigatória aos 6 anos de idade. No texto será utilizada a nomenclatura de quando durava oito anos, uma vez que era o regime adotado na época de escolarização dos entrevistados. A atual estrutura está dividida em dois níveis: educação básica (educação infantil, ensino fundamental – antigo 1º grau, que ia da 1ª à 8ª série, iniciando-se aos 7 anos de idade) e ensino médio (antigo 2º grau, com 1º, 2º e 3º ano), e educação superior (graduação e pós-graduação). Ambas são oferecidas gratuitamente pelo Estado brasileiro para todos os cidadãos, mas a rede privada também está presente e tem crescido bastante em todo o país. Em se tratando dos ensinos fundamental e médio, pesquisas apontam que em geral a rede privada o oferece com nível de qualidade melhor que o da rede pública. A educação infantil (primeira etapa da educação básica) atende crianças de 3 a 5 anos, em creche e na pré-escola. O ensino fundamental, obrigatório para as crianças entre 6 e 14 anos, está dividido em duas fases: ensino fundamental I (1º ao 5º ano) e ensino fundamental II (6º ao 9º ano). Depois vem o ensino médio, que, embora gratuito, não é obrigatório. Os alunos que não conseguiram concluir o ensino fundamental na idade adequada podem frequentar a educação de jovens e adultos, normalmente no período noturno, e a idade mínima para ingresso é 15 anos.

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de barco, saindo de Macapá — também sem autorização legal —, até Oiapoque. Nessa cidade se hospedaram em uma pensão enquanto aguardavam o momento mais propício para seguir viagem por terra varando pelas florestas da Guiana Francesa, para chegar ao Suriname. Além da falta de passaporte, em determinado momento da viagem ficaram sem os outros documentos e sem a bagagem, em consequência da fiscalização da Gendarmerie, e concluíram a viagem apenas com as roupas que usavam:

– Eu vim direto pra cá, só que eu vim clandestina a primeira vez. [...] vim mais minha irmã; eu tinha 18 anos e minha irmã tinha 17 [...]. Eu desci no Oiapoque, aí a mãe deu um pouco de dinheiro; ela inteirou a passagem da gente, que era 800 [...]. No dia que era pra nós ir viajar tinha polícia, voltei. Esse dinheiro que a gente tinha dado já se foi, era cento e sessenta euros, por causa dos quartos. Aí fiquemos na sexta, no sábado, e aí, no domingo, peguei uma canoa, aquelas sessenta pessoas.

– Lá do Oiapoque?

– Do Oiapoque até o varador. Chegou no varador, aí tinha um francês lá, que ia ser mandado [...]. Aí, peguemo, andemo até umas seis horas. Começou a escurecer, peguemo o charque [carne salgada], daquele jeito que tira do pacote, acendemo o fogo, e comemos charque com farinha. Aí foi ver se tinha polícia, e não tinha. Esperamo anoitecer, andemo. Quando dizia “lá vem carro”, você se jogava pro mato. [...] nós se jogava no mato, no escuro, sem lanterna, sem isqueiro, sem nada, toda vez. [...]. Aí nós peguemo um carro — era onze pessoas num Fiat — e aí: “Quem vai pra Saint-Laurent?”, “Quem vai pra Caiena?”, “Quem vai pra floresta?”. [...] Quando o cara via a lanterna da polícia, que é bem forte, daquela grandona, ele: “Desce!, desce! Desce todo mundo!”. A minha irmã caiu nas corredeiras, e nós fomo pro outro lado. Na hora que nós corremo pro outro lado, nós fomo bater dentro da casa de um francês. Um francês lá, com um facão deste tamanho! — ainda bem que tinha um lá que tava com a gente e falava bem francês. [...]. Tiremo um cochilo, peguemo o carro de novo...[...] Aí, que nós estava vindo pra cá, pro Suriname, o pneu furou; desce todo mundo, vai trocar o pneu. Aí, ele foi querer passar na frente de um carro; nisso que ele foi passar na frente do carro nós demos em cima da polícia. Ele falou: “Eu vou desacelerar um pouco o carro, pra só dar tempo de vocês pular”. Aí, quando nós pulemo, eu fui pra dentro do mato. Depois eles foram embora, levaram o carro com a roupa, com todo documento da gente, com tudo, fiquemo só com a roupa do corpo, e eu ainda fiquei sem sandália. Aí eu gritei, chamei, chamei a minha irmã, aí minha irmã apareceu e perguntou: “levaram tudo?”. Aí nós fiquemo na estrada chorando. Eu dizia assim: “Eu vou me entregar pra polícia. Eu quero minhas coisas”.

Emily e a irmã ficaram seis meses no Suriname trabalhando em garimpo, e retornaram ao Brasil. “Aí, passei seis meses [no Brasil] e fui de novo [para o Suriname]. Quando eu fui [ao Brasil], eu já tirei meus documentos, tirei passaporte, bonitinho, aí já vim legal. É ruim demais a pessoa andar clandestina.” Dessa vez ela conheceu o marido, um surinamês, e nunca mais voltou ao Brasil.

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Em sua narrativa vê-se a dificuldade para chegar ao seu destino: recorreu ao serviço de atravessadores, numa situação de contrabando de migrante, para chegar ao Suriname, percorrendo um caminho normalmente seguido pelos homens e que nem sempre termina como planejado (e, muitas vezes, com aumento do valor estabelecido inicialmente pelos atravessadores):

– Entraram no carro vocês duas e mais dois homens?

– Não, tinha onze pessoas. Todo mundo desceu do carro. Perdemo tudo. Aí, como nós ia se entregar, esse pessoal aqui de Belém disse: “Se vocês se entregar nós vamos com vocês, não vamos deixar vocês duas, não”. Aí, nisso eu comecei a chorar mais a minha irmã. [...] Aí nós dormimo no mato. [...] Isso já era umas dez, onze horas, quando teve esse acontecimento. Só tava com a roupa do corpo, não tinha mais comida, nada. [...] No outro dia, amanheceu, comecemo a andar, passou um brasileiro com um carro, Sandro, aí ele pegou e botou nós. Ele disse: “Ah, eu conheço pra cá, eu conheço Kourou. [...]. Eu conheço aqui; eu ando pro meio do mato”. Ele disse assim: “Quem foi, com quem vocês vieram?”. “Foi Fulano de Tal.” Aí ele voltou: “Rapaz, eu não encontrei o homem, não; não posso fazer nada por vocês”. Eu comecei a chorar, e disse: “Ô, moço, pelo amor de Deus, moço, leva nós pra Suriname, que minha tia tá lá, esperando a gente chegar. Lá, ela vai pagar”. E ele: “Tá bom”. [...] Nesse tempo que nós viemo, tava passando América171.

Aí, minha mãe viu o sofrimento da Deborah Secco na novela, imaginava nós na vida real, o que eu tava passando. No que a Deborah Secco tava passando na novela, eu tava passando na vida real. Aí, quando ela assistia a novela é que ela ficava mais doida [...]. Fiquemo na casa desse Sandro, no Kourou. – E o resto do povo?

– O resto do povo eu não sei pra onde foi. E os dois homens que tavam com a gente não largou a gente, não, ficou nós quatro. Aí, segunda-feira eu liguei pra mãe, eu disse: “Mãe, nós perdemo tudo, estamos só com a roupa do corpo. Estamos na casa de um homem brasileiro, mas nós estamos bem, a senhora não se preocupa, não”. [...] Nesse tempo que nós viemos, um brasileiro tinha matado um francês, aí tava pior. [...] Na terça-feira era pra nós viajar, e não deu: choveu muito, o cara não veio. Ele mandou a navette passar pra pegar a gente lá, a navette não veio. Aí, na quinta ele disse: “Rapaz, quer saber de uma coisa? Eu vou dar um jeito de levar essa menina”. [...] Nós estava em Kouru na segunda, terça, quarta, quinta; aí, na quinta-feira nós saímos de lá pra chegar aqui; quinta-feira nós chegamos aqui no Suriname. [...] Sei que foi muito triste. [...] Pois é, é triste. Aí, passou seis meses e eu fui de novo [voltou ao Brasil]. Nós queria ir de avião, mas como é que viajava [...]? Tivemos que voltar [varando], mas esse aí foi uma maravilha. Aí eu disse: “Eu não venho mais clandestino”. Tirei meus documentos, que eu tinha perdido na Guiana Francesa; tirei meus documentos tudinho, tirei meu passaporte, tirei meu título