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O deslocamento do discurso de tráfico de “escravas brancas” para o discurso de tráfico de seres humanos

MIGRAÇÃO CONTEMPORÂNEA: DESLOCAMENTOS E FORMAS DE MOBILIDADE

1.1 Comércio do sexo: sistemas jurídicos da prostituição

1.1.1 O deslocamento do discurso de tráfico de “escravas brancas” para o discurso de tráfico de seres humanos

Qualificado por muitos como escravidão moderna, o tráfico de pessoas é tema de conferências, tratados e convenções em todo o mundo, e o tráfico de mulheres, “em geral ligado a idéias sobre mulheres no comércio do sexo”, já se configura como “um problema internacional desde meados do século dezenove”133. No início do século XX surgiram os

primeiros acordos internacionais para coibir o tráfico de pessoas, impulsionados pela discussão sobre o tráfico de “escravas brancas” para prostituição134, discussão que teve início depois de

130 CHAUMONT, Jean Michel. Le mythe de la traite des blanches. Enquête sur la fabrication d’un fléau. Paris:

La Découverte, 2009.

131 KEMPADOO, op. cit.

132 FONDATION SCELLES, op. cit. 133 KEMPADOO, op. cit., p.57.

134 DE VRIES, Petras. ‘White slaves’ in a Colonial Nation: the Dutch Campaign against the Traffic in Women in

the Early Twentieth Century. Social & Legal Studies, v.14, n.1, p.39-60, 2005; DOEZEMA, Jo. Loose women or lost women? The re-emergence of the myth of 'white slavery' in contemporary discourses of ‘trafficking in women’. Gender Issues, v.18, n.1, p.23-50, 2000.

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1880, em razão de denúncias de militantes que apontavam a existência daquele, que chegou a ser visto como pior que o tráfico de negros135. Tal discurso deu caráter moral ao combate à escravidão das mulheres, legitimando a luta contra a regulamentação da prostituição136.

Uma das primeiras referências públicas do tráfico de “escravas brancas” foi divulgada em 1881, na Inglaterra: jovens inglesas com menos de 21 anos recrutadas para a prostituição na Bélgica137 — o que despertou a indignação da população daquele país. Uma campanha contra esse “tráfico” ganhou espaço em diversos países em 1885, com o discurso de que a regulamentação de casas de prostituição contribuía para o tráfico internacional de mulheres para prostituição.

Em 1904, em Paris, foi criado o primeiro instrumento normativo internacional que tratava do tráfico de mulheres: o Tratado Internacional para Eliminação do Tráfico de Escravas Brancas138. A pressão do movimento de combate a tal tráfico ganhou espaço nas discussões das autoridades, e em 1910, também em Paris, foi adotada a Convenção Internacional para Repressão do Tráfico de Escravas Brancas139, da Sociedade das Nações (SDN), quando ele deixou de ser considerado rumor para ser reconhecido como problema. Os debates e as pressões do movimento contra o tráfico recrudesceram no período da Primeira Guerra Mundial (1914- 1918), mas, quando esta acabou, o movimento retomou sua pauta de discussão140, e entre 1924 e 1927 um comitê de especialistas foi montado para supervisionar uma pesquisa internacional sobre o tráfico de mulheres e crianças, sob a responsabilidade da SDN. O relatório do comitê sobre a pesquisa — realizada em 28 países, entre eles o Brasil (considerado na época, sobretudo o Rio de Janeiro, destino de prostitutas estrangeiras) — demonstrou a existência do tráfico de mulheres estrangeiras e apontou que a causa do problema era a regulamentação da prostituição em vários países da Europa desde o início do século XIX, e induziu, em 1949, já sob a chancela da Organização das Nações Unidas (ONU), a uma nova redação daquela convenção, agora

135 Uma comparação equivocada, pois não se trata de medir qual escravidão merece o título de pior ou “menos

pior”, ambas ocorreram em épocas e contextos diferentes; contudo, tanto a de negros pelos colonizadores como o dito tráfico “de escravas brancas” configuram graves violações de direitos humanos.

136 CHAUMONT, op. cit. Ver, também, MATHIEU, La fin du tapin. Sociologie de la croisade pour l’abolition de la prostitution, op. cit.

137 Uma grande campanha na imprensa, liderada por Josephine Butler, denunciava que 34 inglesas haviam sido

recrutadas para trabalhar em bordéis de Bruxelas entre 1878 e 1880, e nove eram menores de idade. Tais dados, mesmo negados pelas autoridades, revelavam a existência de corrupção policial na entrada de menores para trabalhar em bordéis (CHAUMONT, op. cit.).

138 RICHARD, Jérôme. L’émergence d’une politique criminelle européenne autour de la prostitution: un outil

bruyant pour la résonance d’un ordre publique continental. In: DANET, Jean; GUIENNE, Véronique. (Dirs.).

Action publique et prostitution. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2006. p.65-77.

139 Essa convenção criminalizava o recrutamento, para prostituição, de mulheres adultas coagidas e mulheres

menores de 20 anos (RICHARD, op. cit.).

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intitulada Convenção das Nações Unidas sobre a Supressão do Tráfico de Pessoas e a Exploração da Prostituição de Outrem. Desde então, o problema é definido como tráfico de seres humanos141.

Na década de 2000, Jean-Michel Chaumont analisou os arquivos daquele comitê e demonstrou que ele realizou inúmeras manobras para fabricar a existência de uma catástrofe relacionada ao tráfico de mulheres e crianças para prostituição, e que houve manipulação dos dados: foram ocultadas informações dos casos de mulheres adultas que migraram para prostituição “livre” e acentuada a gravidade dos casos das mulheres que poderiam ser consideradas vítimas de tráfico142.

O movimento dos novos abolicionistas, que contribuiu para a construção do discurso do tráfico de “escravas brancas”, apresentava a figura da jovem branca inocente raptada e obrigada a se prostituir no estrangeiro, transformando-se em “escrava sexual”. Atualmente, o discurso sobre o tráfico de “escravas brancas” aparece como “fantasma”143 ou “mito”144 em alguns

estudos, mas ainda é o discurso dominante: eliminou-se a expressão “escrava branca”, mas a imagem da jovem inocente transformada em “escrava sexual” prevalece quando se tratam de estrangeiras atuando no mercado do sexo.

Os fundadores do movimento abolicionista do século XIX lutavam pelo fim da regulamentação da prostituição; os seus adeptos do século XXI lutam pela abolição da prostituição145. Segundo Jérôme Richard, estudos realizados em 2002 e 2004 na Áustria, na Espanha, na França e na Itália apontaram que em torno da questão do tráfico de pessoas existe tanto mito como realidade146 — o que exige atenção redobrada ao se abordar essa questão.

141 CHAUMONT, op. cit. 142 Ibidem.

143 MATHIEU, La fin du tapin. Sociologie de la croisade pour l’abolition de la prostitution, op. cit. 144 CHAUMONT, op. cit.

145 MATHIEU, La fin du tapin. Sociologie de la croisade pour l’abolition de la prostitution, op. cit. 146 RICHARD, op. cit.

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