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Desvio Inovador: desproporção entre fins culturais e meios institucionais

CAPÍTULO II – UM APORTE CRIMINOLÓGICO NA COMPREENSÃO DA

2.4 A Virada Sociológica da Criminologia: o começo do fim da ideologia da defesa

2.4.1 Teorias Estrutural-funcionalistas: a anomia como causa do comportamento

2.4.1.2 Desvio Inovador: desproporção entre fins culturais e meios institucionais

Nos Estados Unidos, essa teoria encontrou na sociologia criminal de Robert Merton uma reelaboração, tornando-a adequada à explicação mais precisa das causas da criminalidade. Para Merton a anomia não é apenas decorrente de um desmoronamento moral, ocasionado por situações sociais de grandes mudanças ou de desenvolvimento avassalador. Ela seria o sintoma de uma discordância entre as expectativas culturais existentes e os caminhos oferecidos socialmente para satisfação dessas expectativas.

Assim, o desvio é reportado para uma possível contradição entre a estrutura

social e a cultura.157 Explique-se. A cultura, entendida como o conjunto de valores

compartilhados pela sociedade, estabelece metas a serem perseguidas por todos os indivíduos para alcançar o bem-estar. Já a estrutura social, estabelecida em relações sociais desiguais, coloca os indivíduos em situações desiguais, não oferecendo os mesmos caminhos e as mesmas oportunidades para realização dessas metas culturais estabelecidas para todos. Assim, aqueles a quem a sociedade desfavorece, não dando as mesmas condições legais de realização das

155 Cf. DURKHEIM, Émile. O suicídio. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 425.

156 GARCIA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. GOMES, Luiz Flávio. Criminologia: uma introdução aos seus fundamentos teóricos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 263.

157 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 63.

metas culturais seriam pressionados ao cometimento de condutas ilegais para

ascender e alcançar as metas cobiçadas.158 No entanto, a desigualdade de

oportunidades não seria determinante, mas estimulante para a criminalidade, tendo em vista que, diante dela, identificam-se comportamentos desviantes ou

inovadores,159 mas também conformistas.

Logo, é da incompatibilidade ou desproporção entre os fins culturais e os meios institucionais de concretização desses fins que surgiria o comportamento delitivo. Merton, embora se utilize da ideia da anomia, opõe-se a Durkheim porque considera o papel da estrutura social não apenas repressivo, mas também

estimulante do comportamento desviado.160

A teoria mertoniana tem grande influência do contexto em que foi construída, sendo baseada na crítica do sonho americano, ou no american dream, pelo qual os Estados Unidos seriam a sociedade do bem-estar social e da igualdade de

oportunidades.161

Apesar de se manter persistente em enfocar os estratos sociais inferiores e a delinquência inovadora, Merton abre-se às pesquisas sobre a criminalidade de colarinho branco e às teorias da subculturas criminais, consideradas por ele como

integradoras ou complementadoras de sua formulação teórica.162

Em verdade, as análises das cifras negras realizadas por Edwin H. Sutherland no ensaio intitulado White-Collar Criminality, publicado em 1940 na American

Sociological Review, puseram em questão a teoria funcionalista de Merton, pois a

base de sua teoria: discrepância entre fins culturais e meios institucionais, era de imediato relativizada pela exposição acerca da criminalidade praticada por pessoas ocupantes de posições sociais de prestígio, em tese, não sujeitas à tensão

158 Cf. GARCIA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. GOMES, Luiz Flávio. Criminologia: uma introdução aos seus fundamentos teóricos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 263.

159 Na tensão entre os fins culturais e os meios institucionais, Merton identifica cinco modelos de comportamento individual: conformistas, que respondem positivamente a tensão, equilibrando-se entre os fins culturais e os meios institucionais, sendo a maioria; inovadores, que aderem aos fins culturais, mas não respeitam os meios institucionais, caracterizando o comportamento criminoso típico; ritualistas, que respeitam formalmente os meios institucionais, mas não perseguem os fins culturais; apáticos, que negam tanto os fins culturais, como os meios institucionais; rebeldes, que não apenas negam os fins culturais, mas defendem alternativas a eles e aos meios institucionais. Cf BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 64.

160 Cf. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 62. 161 GARCIA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. GOMES, Luiz Flávio. Criminologia: uma introdução aos seus fundamentos teóricos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 263.

162 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 65.

resultante da mencionada discrepância. No entanto, Merton harmonizou essas análises da criminalidade econômica com a sua teoria, afirmando serem tais análises um reforço a tese do desvio inovador. Na ótica dele, os homens de negócio que praticavam a criminalidade econômica apresentavam o mesmo comportamento inovador dos das pessoas oriundas dos estratos menos abastados, pois haviam aderido ao fim cultural do sucesso econômico, próprio da sociedade americana, mas

não respeitavam os limites dos meios legais para alcançarem esse fim.163

Essa harmonização realizada por Merton, certamente, não foi e não é suficiente para blindar sua teoria, que foi questionada, entre outras razões, por não explicar o porquê de, havendo a pressão anômica da desviação nas classes mais desfavorecidas, somente alguns poucos reagirem com o comportamento inovador ou desviante, permanecendo a maioria na conformação, quando se esperaria o

inverso.164 Essa crítica certamente abre espaço para a complementação, indicada

por alguns, da teoria funcionalista pelas teorias das subculturas, tratadas na próxima seção.

Para Baratta, ou mesmo para a criminologia crítica, a teoria mertoniana apresenta duas evidentes fragilidades. A primeira decorre da mencionada tentativa de integrar a criminalidade de colarinho branco ao desvio inovador, pois, ao fazer isso, Merton não expõe a importância da estrutura capitalista, na qual uma parte do sistema produtivo legal se alimentaria de lucros de atividade delituosa, antes acentua o elemento subjetivo, ou seja, a falta da internalização das normas pelo indivíduo, sem perceber o nexo funcional objetivo: a estrutura própria da circulação de capital. A segunda decorrente da primeira reside no fato de que Merton não teria conseguindo integrar a criminalidade de colarinho branco ao seu modelo explicativo, restando, pois, sua teoria limitada à explicação da criminalidade das camadas mais

baixas.165

Decerto, o viés do marxista não está presente na teoria da anomia, daí a causa de, ideologicamente, ser considerada uma teoria estabilizadora pela criminologia crítica, pois apenas reforçaria a ideia de que o comportamento

163 Cf. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 66. 164 MUÑOZ CONDE, Francisco. HASSEMER, Winfried. Introdução à criminología. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 78.

165 Cf. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 66- 67.

criminoso é próprio das classes pobres, legitimando cientificamente o recrutamento

dos criminosos nessas classes.166 Não se pode mesmo negar que essa teoria possa

ser usada para legitimar a seletividade dos processos de criminalização, sobretudo, na criminalização secundária, sobre os quais se fala adiante. Porém, é necessário destacar a sua grande contribuição à superação dos limites dos modelos explicativos de fundamentação bioantropológicas e de socialização. A partir dessas teorias estrutural-funcionalistas, a compreensão do comportamento delitivo deixa de se focar no indivíduo por si só ou nas pessoas diretamente responsáveis pela sua

socialização, o que caracterizaria uma microcriminologia,167 passando a focar as

estruturas socioculturais de que o delinquente ou desviante é produto, caminhando

assim para uma macrocriminologia.168 Logo, dentre todas as teorias sociológicas

aqui abordadas, essa é a que mais se distancia do modelo positivista de explicação

do crime.169

O valor dessas teorias estrutural-funcionalistas, compreendidas no conjunto como teoria da anomia, é reconhecido, em menor ou maior grau, por toda criminologia contemporânea, sendo considerada uma das mais prestigiadas teorias

explicativas, tanto no domínio da criminologia como da sociologia.170

Entre as teorias estruturais funcionalistas, alguns autores englobam ainda a teoria da desigualdade de oportunidades de Richard A. Cloward e a tese da resignação social de Hyman e Mirzuchi, as quais se deixa aqui de abordar por duas razões: primeiro porque se excederia aos limites propostos para o trabalho; segundo, e principalmente, porque com essas teorias pouco se acrescenta às reflexões mertonianas. Em verdade, mais a complementam, corrigindo-a, por exemplo, para atender a crítica ao fato de Merton não explicar o maior comportamento conformista entre os pressionados pela desproporção entre fins culturais e meios institucionais. Não há dúvidas de que, em todas as suas vertentes norte-americanas, a teoria da anomia centra-se no desajuste entre metas culturais e

166 Cf. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 67. 167 Muñoz Conde e Hassemer usam as expressões microcriminologia e macrocriminologia para designarem, respectivamente: os estudos da criminalidade focados no autor, quer individualmente, quer socialmente; os estudos da criminalidade com ênfase nos aspectos estruturais da sociedade. 168 Cf. MUÑOZ CONDE, Francisco. HASSEMER, Winfried. Introdução à criminología. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 75.

169 DIAS, Jorge de Figueiredo. ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 315.

170 DIAS, Jorge de Figueiredo. ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 313.

os meios legítimos de realizá-las,171 numa evidente demonstração da influência do modelo socioeconômico nos modelos teóricos, o que justifica ainda mais a opção de não tratar diretamente de todos eles.

2.4.2 Teoria das Subculturas Criminais: o desvio como resultado da