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3. Deveres de conduta decorrentes da boa-fé objetiva

3.3 Deveres de lealdade e cooperação

Sob a nomenclatura de deveres de lealdade, entende António Manuel MENEZES CORDEIRO que as partes devem “absterem-se de comportamentos que possam falsear o objectivo do negócio ou desequilibrar o jogo das prestações por elas consignado”.304 Para o autor, tais deveres não se circunscrevem, no entanto, apenas a uma atuação negativa, embora a maioria dos exemplos retirados da casuística sejam assim classificáveis: deveres de não concorrência, de não celebração de contratos incompatíveis com o primeiro e de sigilo.305

Outra é a visão de Fernando NORONHA, para quem só estariam incluídos na categoria ora analisada os deveres negativos, sob pena de confundir-se os deveres de lealdade com o geral dever de agir de acordo com a boa-fé objetiva.306 Tomando em conta apenas aqueles de caráter negativo, enxerga o autor amplo campo de aplicação seriam nos contratos interempresariais.307

Quando vistos pela ótica do dever de cooperação, que também preside o tráfego jurídico, mostram-se os deveres aqui tratados também condizentes com uma atuação positiva: “como o de colaborar para o correto adimplemento da prestação principal, ao qual se liga, pela negativa, o de não dificultar o pagamento, por parte do devedor”.308 A abstenção, portanto, só pode ser entendida compreendendo tanto atos comissivos, quanto por atos omissos.

Assim é, também, a lição de Jorge Cesa FERREIRA DA SILVA, para quem “os deveres de lealdade são aqueles que adstringem as partes a não praticar atos, comissivos ou omissivos, anteriormente à conclusão do contrato,

304 MENEZES CORDEIRO, António Manuel. Da boa fé..., p. 606.

305 Exemplos retirados também de MENEZES CORDEIRO, António Manuel. Da boa fé..., p.

607.

306 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações..., p. 85.

307 Idem, p. 86. Sobre tal campo de aplicação vale citar Judith MARTINS-COSTA, ao afirmar que “na vida societária a boa-fé atua na concretização da confiança no tráfego negocial, então tutelando ‘situações de confiança’ como ocorre, exemplificativamente, no período de preparação a uma oferte pública, por ocasião da alienação de controle de uma sociedade. A probidade, associada no Código Civil à boa-fé leva ao dever de sigilo a que estão adstritos os administradores, bem como todos aqueles que, intervindo direta ou indiretamente na preparação dos negócios societários sejam detentores de informações privilegiadas”

(MARTINS-COSTA, Judith. Um aspecto..., p. 34).

308 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé..., p. 439.

durante a vigência dele ou até após a sua extinção”.309 Estão ligados, na visão de Judith MARTINS-COSTA, ao princípio da probidade exposto no art. 422 do Código Civil, juntamente com a boa-fé objetiva, sendo um de seus sentidos.310

Enquanto típicos deveres de conduta, decorrem da boa-fé objetiva e não do contrato em si.311 É certo que certos contratos, especialmente aqueles do meio empresarial, podem ter tais deveres enquanto essência do próprio dever principal. Assim, em um contrato de know-how, a obrigação de sigilo e de manutenção do segredo não pode ser vista enquanto dever lateral, mas antes como fundamento da prestação principal.312

Do seu reconhecimento enquanto albergados na ampla categoria dos deveres de proteção (em contraposição àqueles chamados de deveres de prestação), novamente diga-se que sua observância não está adstrita à prévia existência do contrato, alastrando-se inclusive para o período pós-contratual.

Assim, quebra o dever de lealdade o ex-empregado que, beneficiado de informações durante a relação de trabalho, as torna pública com o rompimento do vínculo. O mesmo se poderia dizer no caso de empregado em relação de fidúcia, como o doméstico, que após o término da relação relata detalhes da intimidade da residência onde laborou. A proteção recai, portanto, na esfera global de interesses dos partícipes, não apenas no plano patrimonial.

Na ordem das coisas aqui expostas, o adimplemento não é apenas dever do devedor, mas igualmente seu direito, afinal, através do cumprimento da obrigação, libera-se ele de pleno direito. Daí que, também à luz do dever de lealdade, fundamenta-se o dever de cooperação do devedor com o adimplemento ou cumprimento da obrigação. Estão, ambas as partes, adstritas a “colaborar para a realização do programa contratual a que se comprometeram ou que pretendem formalizar”.313

O credor que cria obstáculos ao pagamento ofende o princípio da boa-fé, por quebra do dever de lealdade e de cooperação que, dele, se espera.

Ainda que decidindo com base na teoria do adimplemento substancial, faz-se,

309 FERREIRA DA SILVA, Jorge Cesa. op.cit, p. 112.

310 MARTINS-COSTA, Judith. Um aspecto..., p. 33.

311 Esta é a lição de António Manuel MENEZES CORDEIRO, senão veja-se: “estes deveres hão-de imputar-se à boa fé e não ao próprio contrato em si, quando não resultem apenas da mera interpretação contratual, mas antes das exigências do sistema, face ao contrato considerado”. (MENEZES CORDEIRO, António Manuel. Da boa fé..., p. 607).

312 Assim afirma FERREIRA DA SILVA, Jorge Cesa. op.cit, p. 113.

313 MARTINS-COSTA, Judith. Parecer..., p. 244.

novamente, menção a decisão de lavra de Ruy Rosado de Aguiar Junior, na qual o vendedor de imóvel buscou a resolução do contrato por não pagamento da última prestação, apesar do pontual e correto pagamento de todas as anteriores. Segundo o voto do então desembargador, promoveram os compradores ação de consignação em pagamento da última prestação, exatamente porque a vendedora “retirou as duas últimas notas promissórias que se encontravam no Banco para cobrança, criando artificialmente obstáculo quase insuperável para que o devedor efetuasse amigavelmente o pagamento daquelas prestações”.314

O pedido de resolução foi julgado improcedente, tendo em vista ter havido em espécie adimplemento substancial do contrato, considerando, o relator, imoral a tutela buscada pela vendedora pelo simples atraso da última parcela. Mais a fundo, no entanto, poder-se-ia dizer que a infração do contrato, em fato, ocorreu por parte da vendedora, ao quebrar a lealdade e cooperação que dela se esperava, criando obstáculos ao pagamento das prestações a ela devidas.

O Superior Tribunal de Justiça já decidiu também com base direta no dever de cooperação e lealdade. Trata-se de Recurso Especial em ação de indenização por danos morais decorrentes de protesto por falta de pagamento de título já pago em que, a julgadora, ministra Nancy Andrighi considerou ter o réu violado o dever de cooperação, também chamado de lealdade por: (i) ter limitado o lapso temporal para pagamento em atraso via boleto bancário; (ii) ter facultado ou permitido o pagamento, por meio de depósito bancário, sem possuir controle eficiente dos valores ali depositados; (iii) ter, não obstante tal inexistente ou frágil controle, enviado o título a protesto. Na conclusão do voto, neste ponto, entendeu a relatora que “se facultou, ou ainda, consentiu que o pagamento fosse realizado por depósito bancário não especificado, era sua obrigação contratual anexa produzir os mecanismos necessários a aferição e respectiva quitação dos pagamentos realizados”.315

Da lealdade integrante do conceito de boa-fé pode-se, igualmente, embasar a proibição de comportamento contraditório (venire contra factum

314 Trata-se de Apelação Cível, 588012666, 5ª CC. Relator Ruy Rosado de Aguiar Junior.

Julgamento em 12 de abril de 1988, citado por MARTINS-COSTA, Judith. Princípio..., pp. 210 e sg. 315 STJ, Resp 595.631-SC. Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgamento em 08/06/2004.

proprium), sem prejuízo da sua obtenção a partir da função limitadora do princípio.316 Neste sentido, muito bem se encaixa a jurisprudência comentada por Judith MARTINS-COSTA, de cuja ementa extrai-se que

“o princípio da boa-fé impõe deveres anexos, de acordo com a natureza do negócio e a finalidade pretendida pelas partes. Entre eles encontra-se a obrigação da vendedora de pequena loja de vestuário não cancelar pedidos já feitos, com o que inviabilizaria o negócio e frustraria a justa expectativa do comprador”.317

Tratava-se da venda de estabelecimento comercial, uma pequena loja de roupas, em que a compradora sustenta ter sido acordado que usaria o CNPJ da vendedora até competente regularização de sua situação e que, sem motivo razoável, veio esta a cancelar todos os pedidos ainda não recebidos, causando prejuízo à atividade empresarial.

Considerou o relator, então Desembargador Ruy Rosado de Aguiar Júnior, que, em que pese não haver cláusula a respeito no contrato firmado entre as partes, a questão deveria ser analisada à luz do princípio da boa-fé e sua aptidão de criar deveres especiais de conduta. Assim que, no presente caso:

“(...) esses deveres especiais, acessórios ou anexos, consistiam em impor à vendedora da pequena loja o dever de abster-se de assumir comportamento inviabilizador da normal continuidade do negócio adquirido pelo ora autor, dependente, como é sabido, do recebimento de mercadoria adequada para cada estação, previamente encomendada, pois a época da comercialização pelas indústrias é bem anterior à da venda no varejo”.

Para a conclusão da decisão, levou em consideração os usos e costumes do tráfego, sendo praxe no comércio que o comprador utilize o CNPJ do vendedor até regularização de sua condição, conjugado com a regra geral de conduta conforme a boa-fé (e note-se, antes mesmo da existência da cláusula geral do Código Civil de 2002), aos usos e costumes do tráfego e do lugar da celebração do contrato (art. 113 do atual Código). A acolhida da proibição de comportamento contraditório repousa no fato de que “por força da lealdade a que as partes reciprocamente estão coligadas, não se permite que o

316 NEGREIROS, Teresa. Teoria..., p. 148-149.

317 MARTINS-COSTA, Judith. Princípio..., p. 207. Trata-se de Apelação Cível n.º 589073956 do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Julgado em 19/12/1989.

comportamento prévio de uma delas, gerador de justificada expectativa, seja contrariado posteriormente, em prejuízo da outra”.318

Também pesou sob outra decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul o necessário comportamento leal, considerando-se desrespeito a este dever a instituição de servidão de uso de poço artesiano em imóvel objeto de promessa de compra e venda. Neste sentido, consta da ementa da decisão que “fere o dever da lealdade e da boa-fé instituir gravames ao imóvel pretendido vender sem a anuência do promitente comprador”.319 A frustração da expectativa do promitente-comprador de imóvel livre e desembaraçado de quaisquer ônus, se dá pela atitude lesiva à lealdade que se espera do partícipe contratual. No voto, sustenta o relator que:

“para preservação do interesse social que é qualificado pela segurança das relações jurídicas, condutas pautadas pela honradez, lealdade e confiança recíprocas. Tais condutas impõem aos contratantes um comportamento de cooperação para a concretização do contrato. Trata-se de um padrão comportamental que deve Trata-ser Trata-seguido, impedindo o exercício abusivo do direito por parte de um dos contratantes.”

Com base em tais argumentos, decidiu o Poder Judiciário que o gravame não pode ser oposto ao promitente comprador do imóvel. O fundamento repousa no comportamento probo e leal que se espera em uma relação obrigacional.

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