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3. JORNALISMO LITERÁRIO NO CINEMA

3.1. Diálogos

O que é isso, companheiro? é um livro muito centrado no próprio narrador. Gabeira (2009) escreve em primeira pessoa e o enredo se desenrola como em um brainstorm, seguindo seu fluxo de consciência. No entanto, o recurso do diálogo é usado em momentos-chave na narrativa, notadamente para enfatizar características do próprio narrador.

Para exemplificar sua inocência, um elemento essencial na construção do narrador-personagem, Gabeira usa uma cena com diálogo. Ele conta de uma assembleia estudantil de quando tinha 17 anos e não conseguia convencer os pais dos alunos a entrar em greve geral, quando um senhor se levanta e faz um discurso inflamado dizendo que, como pais, eles todos deveriam acatar a palavra de ordem da greve. Tempos depois encontra o mesmo senhor em um bar, bebendo. Conversando com ele, descobre que o senhor não tinha filhos.

Anos depois, voltei a Juiz de Fora e encontrei o velho bebendo num botequim, também frequentado pelos intelectuais da terra. Ele me vê, me convida para sentar na sua mesa e pergunta:

"Como é, já entrou para o Partido Comunista?" "Eu não, e seus garotos?"

"Seus filhos."

"Que filhos? Não tenho filhos."

"Como, se você é o pai que virou a assembleia, o pai da nossa greve?" "Olha, o negócio é o seguinte: não sou pai de ninguém. Os pais que iam à assembleia ficaram doentes e o partido acabou determinando que eu fosse fazer o papel de pai. Tinha cabelo branco, sabia falar. Agora já acabei com isso. Acho muito chato."

"O que é que você está tomando?” perguntei ainda meio surpreso com aquela história.

"Caipirinha. Tá boa. Pede uma também." (GABEIRA, 2009, p. 27)

A cena do encontro de Gabeira com o senhor poderia ser narrada com discursos indiretos e resumidos à ideia principal. Mas, ao utilizar o recurso do diálogo, o narrador deixa para o leitor parte da construção do personagem, que poderá interpretar perfis pelas maneiras de dizer, pela linguagem etc.

Em outro momento da narrativa, relembrando os movimentos estudantis e as passeatas de protesto contra a ditadura, o narrador conta de quando teve que avisar inúmeros familiares sobre a prisão de companheiros.

Lembro-me, um pouco mais tarde, de uma queda em massa ocorrida em Botafogo, dentro do estádio. Deram-me listas enormes de pessoas presas e passei o fim da tarde e quase toda a noite telefonando para as famílias. Era tanta gente que não tínhamos tempo para sutilezas, preparar os corações e essas coisas que são necessárias.

"Minha senhora, seu filho foi preso..."

"Como? Meu Deus, que é que vão fazer com o Arnaldo?" "Minha senhora, seu filho foi preso..."

"O que é que o senhor está dizendo? Onde, como? Quem prendeu?" "Minha senhora, seu filho foi preso."

"Como? Hã-Hã. Tá bem, vou avisar o advogado." "Minha senhora, seu filho foi preso..."

Pausa.

"Minha senhora, seu filho foi preso, ouviu bem?" Pausa. Voz bastante firme:

Neste caso, os trechos de diálogos registrados pelo narrador são muito significativos porque também ajudam o leitor a traçar, por conta própria, os perfis dos familiares. Trazer uma narrativa explicativa de como eram as reações dos familiares limitaria as produções de sentido possíveis com o registro do diálogo.

Destacam-se, também, outros elementos que produzem significados e que aproximam o texto do filme, como as indicações de pausa e de tipo de voz. Essas marcações evidenciam sentimentos que no produto audiovisual serão preenchidos pela interpretação dos atores.

A passagem desse recurso para o audiovisual depende muito, portanto, da performance dos atores e da direção. No filme de Bruno Barreto (1997), os diálogos são largamente utilizados também como formas de construir personagens. Uma das melhores cenas do filme é justamente um diálogo entre Fernando e Artur, um antigo amigo que trabalha como ator. Esta cena, que já foi discutida no capítulo 2 desta tese, não existe no livro, mas ficou brilhante no filme.

O grupo de Fernando Gabeira já havia sequestrado o embaixador e estavam todos na casa usada como cativeiro, aguardando a resposta do governo sobre as exigências feitas para libertação de Charles Elbrick. Fernando é, então, escolhido para sair e comprar pizzas para o jantar. No caminho para a casa, ele encontra o antigo amigo em frente ao Teatro Carlos Gomes. Artur está vestido de um personagem do século XIX, de uma peça de Ibsen (Casa de Bonecas). Outro diálogo interessante que compõe o longa-metragem é uma conversa entre Júlio e Jonas. Eles conversam sobre as decisões que o grupo MR-8 está tomando sobre os nomes dos companheiros que serão libertos em troca do embaixador e o que deveriam fazer caso os militares não aceitassem as demandas.

Nesta rápida conversa, o personagem Jonas, que é largamente explorado por Barreto como um homem grosseiro e ranzinza, irá externar essas características.

[Júlio] Olha, eu votei no Oswaldo porque ele era um amigo, eu vi ele ser ferido.

[Jonas] Não se preocupe com isso, companheiro. Mas você votou errado. O companheiro vacilou, não teve coragem de atirar no guarda. Pelo menos foi o que me disseram.

[Jonas] É o que eu digo: companheiros muito mais corajosos foram deixados para trás, por causa de uma camaradagem pequeno-burguesa.

[Júlio] É, eu sei, mas, quando eu votei nele, ele já estava eleito.

[Jonas] Isso não importa. Sua posição deve ser sempre sua posição. Não se deve votar para ficar bem com os outros. (O QUE É ISSO, COMPANHEIRO? 1997)

Os conteúdos das falas neste diálogo não são tão reveladores dos posicionamentos ou sentimentos dos personagens. No entanto, a interpretação dos atores, aliada aos enquadramentos que alternavam de contra plano para primeiro plano, mostravam-se muito significativos da postura de Jonas e da maneira como ele tratava seus companheiros.

No documento Uma análise de O que é isso, companheiro? (páginas 92-95)

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