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Inicialmente faz-se necessário tecer algumas considerações a respeito de outro termo comumente usado nas questões de urbanização: segregação socioespacial. Percebeu-se que esse termo não seria o mais adequado para ser trabalhado nesta pesquisa. Entende-se que o conceito de segregação implica em um rompimento, uma separação espacial entre a região segregada e o restante do espaço urbano. Inclusive, é oportuno observar desde logo que os locais, objetos de estudo desta pesquisa, apresentam características de diferenciação, porém espacialmente, não seria possível afirmar que os mesmos classificam-se como segregados, tal como será demonstrado no capítulo 4.

O’Neill (1983) faz uma reflexão acerca da diferenciação socioespacial, apresentando elementos que podem servir de guia para a elaboração dos critérios de análise desta pesquisa, qual seja a possibilidade de explicar as diferenças existentes no espaço urbano.

Pode-se afirmar que a atuação das forças que diferenciam as classes sociais reforça uma maior diferenciação do espaço residencial via acesso diferenciado ao mercado habitacional que, leva cada classe social ou fração de classes a resolver diferentemente o problema de como e onde morar. Neste contexto a residência é um bem com características bastante específicas quanto à qualidade (conforto, duração, tipo de construção), à forma (individual, coletiva, integrada ou não ao conjunto das outras habitações e ao bairro, e estilo arquitetônico) e ao “estatuto institucional” (sem título, de aluguel, em propriedade, em co-propriedade). Caracteriza-se por ser uma mercadoria de produção lenta, cara e artesanal.

Para construção da habitação depende, ela ainda, da terra urbana, base de sua edificação, também mercadoria em nossa sociedade e, portanto, sujeita às mesmas leis de mercado. A destinação dos terrenos (seus diferentes usos) articula-se à complexidade da estrutura do setor imobiliário e à articulação, também complexa,

entre as formas de apropriação da propriedade da terra urbana e a produção da habitação. A habitação e sua localização definem o tipo de seus habitantes seja num contexto espontâneo, seja planejado. (O’Neill, 1983, p. 31-32).

Percebe-se desta forma que as regiões intraurbanas das cidades diferenciam-se entre si em relação à divisão do espaço, tanto no aspecto econômico quanto no social. A instalação em áreas urbanas de núcleos empresariais, condomínios fechados ou assentamentos informais, demonstram as diferenciações econômicas, enquanto que as características de infraestrutura, familiares, étnico-raciais, entre outras, demonstram as diferenciações sociais do espaço urbano. (IBGE, 2017). Desta forma,

em uma perspectiva urbanística a diferenciação no espaço urbano pode ser verificada a partir das formas dos objetos que o compõem e o definem. A organização/disposição de lotes, com as vias e logradouros que os articulam e os delimitam, resulta em texturas, tecidos e padrões dos mais diversos: malhas ortogonais e traçados orgânicos, sobreposições e dispersões, ambientes projetados ou improvisados, numa relação dialógica com a própria natureza. Sua forma, volumetria, aparência, uso, produção e sua relação com o terreno e com entorno imediato tanto podem reforçar a noção de conjunto quanto diluí-la ou rompê-la. [...] a diferenciação do espaço urbano é fruto, principalmente, de processos de construção/ formação de lugares, identidades, bairros, recintos, ambientes, trechos, partes que adquirem configurações morfológicas distintas numa relação complexa com os conteúdos sociais, econômicos e culturais: são mosaicos de diferentes padrões que se espalham pelo relevo, que ora se altera pela urbanização e ora a delimita. (IBGE, 2017, p.12)

Estudos recentes do IBGE (2017), sobre tipologias intraurbanas em 65 centros urbanos do Brasil, confirmam a periferização das classes mais baixas, caracterizados por meio de uma série de critérios a partir das informações do Censo de 2010, conforme figura 7.

Figura 7 - Termos utilizados para descrever a análise dos perfis de distribuição populacional segundo os tipos intraurbanos

Os mapeamentos das manchas urbanizadas a seguir apresentadas foram elaborados em conjunto com os tipos intraurbanos acima mencionados, de forma a possibilitar uma visão mais clara sobre os elementos de centralidade das concentrações urbanas. Assim sendo, selecionou-se alguns mapeamentos elaborados pelo IBGE, para ilustrar, a partir dos tipos intraurbanos, a distribuição socioespacial da população urbana no Brasil, conforme se observa na figura 8.

Figura 8 - Tipos intraurbanos

Conce ntração U rbana radi al C oncentraç ão Urbana lit orânea

Conc entração U rbana co ndicionada

por m assa d’ág ua Concentraç ão Urbana condicionadapelo relevo

Concenração Ur bana zonal

Concentração U rbana alinhada

Fonte: IBGE, Diretoria de Geociências, coordenação de Geografia. Adaptado pelo autor.

Observa-se que nestes tipos intraurbanos é comum que junto à mancha urbanizada central tenham-se outras manchas de urbanização em seu entorno. Há então duas características para esta distribuição: concentrações urbanas nas quais se verificam somente a mancha urbanizada principal e concentrações urbanas que se verificam outras pequenas manchas menores em seu entorno. É importante frisar, ainda, que alguns municípios brasileiros podem assumir mais de um tipo intraurbano, além de que, conforme figura 9, podem agregar ao tipo urbano a característica de contígua ou espalhada.

Figura 9 - Características dos tipos intraurbanos

Concentração Urbana contígua Concentração Urbana espalhada

Fonte: IBGE, Diretoria de Geociências, coordenação de Geografia. Adaptado pelo autor.

Tais mapeamentos possibilitam verificar a questão da hierarquização socioeconômica do espaço urbano, caracterizada pela periferização e diferenciação socioespacial presente nas cidades brasileiras. Percebe-se, de forma geral, um efeito centro-periferia, considerando o centro como local de melhores condições de vida, observando-se que muitas vezes “o centro localiza-se em áreas litorâneas da concentração, em outras é efetivamente a área mais central, e em outras, ainda, segue uma lógica de defesa ou de articulação das atividades econômicas.” (IBGE, 2017, p.33).

Em seu estudo acerca dos Conjuntos Habitacionais de Interesse Social (CHIS) no Rio de Janeiro, Netto (2017) observa que dos 274 casos estudados 215 mostraram-se que faixas de renda menor (faixa 1 do PMCMV) são mais segregadas espacialmente ou distante do pólo de emprego, reforçando a hierarquização socioeconômica do espaço urbano. Considerou-se também que quanto maior a renda, menor a importância de proximidade entre moradias, a correlação entre renda e mobilidade é positiva. Moradores com rendas mais altas tendem a produzir relacionamentos menos locais, em escalas espaciais mais amplas, com atores que compartilham seu grau de mobilidade, aumentando o contato de suas redes pessoais.

Neste aspecto Marques (2017) aduz que os vínculos sociais e as redes são considerados centrais para a redução do isolamento produzido pela diferenciação socioespacial urbana.

Alguns mecanismos diferenciam as redes dos pobres e as da classe média, enquanto outros produzem heterogeneidade entre os pobres, bem como influenciam a

reprodução das desigualdades. Esses mecanismos envolvem diferentes dinâmicas de acesso ao aprendizado, especialmente no nível universitário; formas de fazer face aos custos de produzir e manter vínculos; a iniciação profissional; a transformação dos tipos de vínculos; as dimensões espaciais da migração dentro da cidade; e combinações entre tipos de sociabilidade e segregação. (p. 197-198).

Seus estudos apontam no sentido de que muitos destes mecanismos são cíclicos e cumulativos em reproduzir pobreza entre os indivíduos, já outros, criam oportunidades ou viabilizam estratégias que possibilitam escapar desse círculo vicioso, como o caso da grande variabilidade da sociabilidade entre certos indivíduos ou a contínua transformação dos tipos de vínculos. (MARQUES, 2017).

Neste sentido, outro aspecto que marca a discussão a respeito, é o fechamento dos condomínios com grandes extensões de muros, bem como de residências e demais edificações urbanas, eis que causam o empobrecimento do espaço público circundante criando pouca ou nenhuma atratividade para circulação de pedestres ou da própria população.

Conforme Vivian e Saboya (2017), os tipos arquitetônicos que vem se formando nas cidades também estão na contramão de uma maior visibilidade entre a edificação e o espaço público. Cada vez mais se observam um distanciamento privado do público, muros e fachadas cegas, garagens nas partes frontais de pavimentos térreos para criar um maior isolamento, muitas vezes impulsionadas pela lógica dos condomínios fechados horizontais ou verticais, sendo cada vez mais comuns em lotes convencionais do tecido urbano os fechamentos com muros cegos. Os autores, em seus estudos sobre espaço urbano, também abordam a questão da criminalidade e concluem que relações de visibilidade entre os espaços edificados e os espaços públicos apresentam correlações positivas com a distribuição da ocorrência de crimes. Tais relações se dão pelas aberturas nas edificações que possibilitem visão para o espaço público como janelas, portas ou varandas, exatamente o oposto das fachadas cegas ou muros altos e cegos.

Ainda quanto à questão da criminalidade urbana, Monteiro e Cavalcanti (2017) observam que

o medo urbano é sentido por todos, a sensação é de que qualquer pessoa pode ser alvo de um assalto em qualquer lugar. A primeira reação na procura de proteção é de se fechar no espaço privado, buscar o refúgio nos carros blindados com ar condicionado e só freqüentar lugares públicos controlados como shopping centers. Sente-se hostilidade do espaço ao andar nas ruas cercadas por muros altos, espaços desertos, que inibem o andar a pé. (p. 137).

Há de se reconhecer o desafio para os arquitetos e urbanistas em projetar espaços urbanos e tipologias que impliquem em maior segurança privada e pública sem seguir o tradicional enclausuramento. “As pretensas medidas de segurança adotadas individualmente, como os muros altos fechados, portarias fortificadas e câmeras de segurança, consolidam um espaço público de pouca vitalidade e sem vigilância natural.” (MONTEIRO, CAVALCANTI, 2017, p.138).

A respeito das formas urbanas tradicionais e lugares públicos, Queiroga (2017) afirma que

no período atual da urbanização, a maior parte dos tecidos das cidades e metrópoles brasileiras ainda é constituída pela estrutura tradicional de ruas, quadras e lotes, por mais que se estabeleça o avanço dos grandes empreendimentos de acesso restrito – loteamentos fechados, condomínios fechados, centros empresariais, etc. Os logradouros públicos e seu entorno, bem como os bairros e áreas centrais por eles formados, ainda se constituem nos lugares públicos mais freqüentes das cidades brasileiras. (p. 120).

Queiroga (2017) conceitua lugar público como “todo aquele em que se estabelece a esfera pública – geral ou estrita, independentemente de se tratar de propriedade pública(s) ou privada(s).” (p.119). A esfera pública é entendida como toda a vida em público, de maneira ampla, mesmo aquelas manifestações em espaços privados, mas que tenham visibilidade pública.

Para Queiroga (2017) os logradouros públicos, ruas praças, largos e avenidas que constituem o tecido urbano tradicional e são bens de uso comum do povo, quando se encontram em forte relação com os espaços lindeiros podem constituir-se em lugar público. Para que isso seja potencializado, o autor identifica alguns fatores urbanísticos que potencializam a possibilidade de logradouro e entorno como lugar público. Elenca a multifuncionalidade que possibilita uma variedade de pessoas com interesses diversos circulando nas ruas, tornando-as mais seguras e ricas em convivência; o número de acessos diretos entre o logradouro e as edificações do entorno, como elemento, potencializa a interação pública; e, as relações morfológicas que podem criar sensações de aproximação e envolvimento entre os espaços livres públicos e os espaços edificados.

Quanto às áreas centrais, observa-se que “o centro é o lugar público por natureza, espaço de convivência cotidiana dos diferentes, todos (em tese) têm o direito de ali estar, são espaços de alta acessibilidade.” Desta forma, “as áreas centrais não são apenas espaços de trabalho e

consumo, mas de encontro, trocas comunicacionais, manifestações culturais e políticas, lugares de festas, de protestos e conflitos.” (QUEIROGA, 2017, p. 123).

A urbanização brasileira se realiza de maneira complexa, sobrepondo processos ‘tradicionais’ com ações que ampliam a fragmentação do espaço urbano com consequências para a esfera pública, como loteamentos fechados, condomínios horizontais residenciais, industriais, centros empresariais e espaços de múltiplas funções com fortes restrições de acessos. (QUEIROGA, 2017, p.125).

O favorecimento do capital imobiliário, em possibilitar que empreendimentos assim se concretizem nas cidades, de forma a fragmentar o espaço urbano, propicia o transporte por automóveis e onera o estado e os moradores que dependem de transporte público. Este padrão, geralmente observado em condomínios fechados e propagado nas cidades brasileiras aumenta os deslocamentos diários em tempo e distância; os custos das infraestruturas urbanas; poluição emitida pelo aumento de circulação de veículos automotores; e aumentam ainda a valorização da vida privada, fechada, em detrimento da vida pública e da sociabilidade entre classes distintas. (QUEIROGA, 2017).

A produção de habitação de interesse social promovida pelo estado é em muitas cidades brasileiras, com freqüência, a de conjunto habitacional periférico, com pouca integração com a malha do restante da cidade. Estes, podem ser formados por conjuntos de edifícios multifamiliares ou residências unifamiliares formadas sobre pequenos lotes, quadras longas e desenhos de ruas que propiciam a circulação por automóveis em detrimento do andar à pé. (QUEIROGA, 2017).

Segundo Queiroga (2017) “a condição periférica não se estabelece geometricamente a partir do(s) centro(s), mas pelo diferencial de oportunidades e serviços urbanos a alcance das populações.” (p. 132). O autor observa que a ilegalidade na produção e na apropriação dos espaços periféricos, não está à margem do sistema; pelo contrário, o torna viável para quem ganha baixos salários e conclui que

na contemporaneidade urbana brasileira, não faltam ideologias e ações contrárias à cidade enquanto espaço de convivência e sistema de lugares públicos. São inúmeras as ações urbanísticas, paisagísticas e arquitetônicas que privilegiam a vida privada, a fragmentação, o isolamento, a valorização da ‘natureza’, alienando e segregando classes sociais. (p. 133).

é necessário que a cidade potencialize a cidadania, que haja espaços de expressão pública, de produção cultural para todos. Há muito a ser feito, incluindo qualificar os espaços para a esfera pública (do cotidiano às manifestações de maior escala), das calçadas e ciclovias aos parques e praças, aos novos espaços de encontro público, estejam onde estiverem – lugares públicos. (p. 134).

A respeito dos espaços públicos Carvalho (2017) observa que

“enquanto espaço singular tem, na liberdade escolha e na gratuidade do acesso, suas duas principais condições de atração e agregação. Sua existência uma vez atendida essas condições, responderia a necessidades humanas básicas de espaços de convívio e de usos variados, para livre expressão criativa, para valorização e reconhecimento da identidade coletiva positiva e prestigiosa” (p. 112).

Quanto ao desenvolvimento dos condomínios fechados nas cidades, a autora observa que esta realidade representa uma nova maneira de morar na cidade e ao mesmo tempo fora dela, através de seu fechamento, circunscritos e espacialmente desligado do mundo circundante sob regulação privada é estranha ao âmbito público ao qual pertence.

Com o atual cenário de desenvolvimento urbano e da diferenciação socioespacial, pode-se dizer que ainda há um longo caminho de discussões a respeito do aperfeiçoado dos instrumentos que regulam o uso e ocupação do solo urbano, sendo “urgente, portanto, uma revisão destes instrumentos na direção de dispositivos mais sensíveis a aspectos relevantes da forma arquitetônica e menos baseados em aspectos exclusivamente quantitativos.” (VIVIAN, SABOYA, 2017, p. 181).

Diagnosticados os aspectos pertinentes ao desenvolvimento urbano, necessário também compreender as questões legais e as políticas públicas que regulam o parcelamento e uso do solo urbano, o que justifica o próximo capítulo.

3 POLÍTICAS PÚBLICAS DE PARCELAMENTO E USO DO SOLO URBANO

Os estudos sobre políticas públicas no Brasil são recentes e têm ênfase na análise das estruturas e instituições ou na caracterização dos processos de negociação das políticas setoriais específicas. Ampliou-se o campo de discussão a partir de transformações ocorridas no país, entre os anos 1980 e 1990, como o processo de redemocratização e a descentralização do poder, além do reconhecimento dos municípios como entes federativos, após a CF/88.

Para fins deste estudo vai se tratar das políticas públicas assim entendidas, como sendo

um conjunto de ações e programas desenvolvidos pelo Estado, através dos seus governos, para garantir e colocar em prática, direitos que são previstos na Constituição Federal. Além desses direitos, outros que não estejam na lei podem vir a ser garantidos através de uma política pública. Isso pode acontecer com direitos que, com o passar do tempo, sejam identificados como uma necessidade da sociedade. As políticas públicas existem em todas as esferas de governo, ou seja, há ações em nível federal, estadual e municipal. E podem estar presentes em todas as áreas, como saúde, educação, segurança, moradia, transportes, trabalho, assistência social e meio ambiente. (LENZI, 2017, p.1).

Em razão deste cenário a legislação brasileira estabelece normas específicas de políticas públicas que visam tornar mais efetivo o direito social constitucional à moradia, bem como a sua regularização. Neste sentido, diversos são os dispositivos constitucionais que dispõem sobre o direito à moradia, em seu art. 6º estabelece que "São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição". Em seu art. 23, inciso IX, por sua vez, estabelece a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para "promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico".

A CF/88 nos artigos 182 e 183, privilegiou a função social da propriedade e previu figuras como o plano diretor municipal, o parcelamento e a edificação compulsórios, a redução de tempo para a usucapião de área urbana de até 250m², e a impossibilidade de usucapir imóveis públicos, dentre outros exemplos de políticas públicas a serem introduzidas no Brasil.

A partir da atual Carta Magna, pode-se dizer que as políticas públicas começaram a ser descentralizadas, no plano local e regional, principalmente as chamadas políticas sociais de base, em especial àqueles referentes à habitação e planejamento urbano.

3.1 A REGULAÇÃO DO PARCELAMENTO E USO DO SOLO URBANO E OS PLANOS

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