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a.2 Dinamites no porão: a Guerra Fria como um jogo

I. O futuro desinformado: aprendendo a lutar guerras inexistentes

I.2. a.2 Dinamites no porão: a Guerra Fria como um jogo

Outra fonte de incertezas que o Kahn e Mann apresentam era acerca da ação e reação do inimigo. Ela seria uma mistura de incertezas estatísticas – as quais já vimos – com incertezas reais – as quais ainda veremos. Pensando o contexto de uma guerra com dois participantes, o inimigo considerado é sempre a URSS. O que causava esse tipo de incerteza eram as assimetrias entre ataque e defesa ou entre as nações, o que alteraria os critérios de constituição da defesa e do ataque. Por exemplo, os autores acreditavam que os EUA estavam cinco anos à frente da URSS na questão de perícia tecnológica, contudo, não se devia confiar que essa superioridade existia em todos os campos. Todavia, onde ela existisse, deveria ser aproveitada. E isso valeria no sentido contrário também, ou seja, os adversários também poderiam se aproveitar de uma vantagem. Outros fatores que poderiam causar essa assimetria seriam a habilidade militar, a postura dos aliados, a geografia, os recursos e a inteligência.85

Uma questão fulcral para o planejamento em relação à incerteza sobre o inimigo, conforme Kahn e Mann, passava pela diferenciação das funções dentro do planejamento. De um lado estava o policy maker, do outro, o planejador. O policy maker desejaria construir sua defesa sob a crença de que o inimigo não é qualificado. Já o planejador faria planos de longo prazo e não contaria com o inimigo despreparado ou néscio. Assim, cabia ao planejador dar a dimensão das possibilidades do inimigo para os policy maker. Uma das formas encontradas para lidar com essa incerteza, para pensar as reações possíveis do inimigo e expor isso aos responsáveis pelas decisões e pelas políticas era analisar o conflito como jogos.86

São dois os relatórios que tratam dos jogos, o Game Theory e o War Gaming87. Mann e Kahn atribuem importância à teoria dos jogos na análise do planejamento militar dos EUA não somente pelos resultados numéricos que poderiam ser obtidos, mas por essa análise funcionar como “uma abstração altamente idealizada da vida real”88. Essa compreensão significava também uma maneira de obter exemplos e analisá-los, por um lado, para esclarecer sobre a natureza das situações de conflito e, por outro, se não aplicado diretamente, acabariam servindo como um guia para a intuição. Portanto, é uma utilização parafrásica dos

85 KAHN, H., On thermonuclear war, 1969, p. 636; KAHN, H. e MANN, I. Techniques of systems analysis,

1957, p. 115-117.

86 Ibid., p. 116.

87 Aqui, abordaremos os dois em conjunto. Isso pode significar a perda da especificidade de cada um, porém,

dar-nos-á uma visão mais ampla da proposta dos autores, o que cabe melhor na nossa análise.

88 KAHN, H. e MANN, I. Game theory, 1957, p.1 “a highly idealized abstraction of real life” (tradução nossa,

jogos, que serve para recolher exemplos e pensar relações e comparações, tal como com os resultados obtidos pelo Monte Carlo.89

Para além dessa obtenção de paráfrases para a vida real, o elemento de abstração da teoria dos jogos serviria ainda para Kahn e Mann interpretarem a situação de um conflito, tal como a Guerra Fria, como um jogo. Nesse sentido que eles criaram a analogia das casas, dos porões e das dinamites e chamaram-na de jogo, no caso, deterrence game. Essa transformação de conflitos reais em jogos ocorria também porque, para os autores, a teoria dos jogos não trata somente do estudo de jogos, mas do estudo de qualquer situação de conflito, ou qualquer situação em que dois ou mais participantes possuem objetivos distintos. Com isso, jogo pode ser definido como qualquer disputa que se origina do conflito de interesses entre os participantes, que nasce da preferência de cada um por um dos resultados possíveis do jogo. O jogo também se caracteriza pela existência de regras, as quais dão a sua dimensão e permite que cada jogador tenha algum controle sobre o resultado do jogo, uma vez que as regras determinam as alternativas de cada participante. A teoria dos jogos delinearia os princípios que norteariam a ação inteligente nessas situações de conflito. Em resumo, portanto, o problema central da teoria dos jogos é encontrar a melhor estratégia para se vencer uma disputa.90

O jogo consiste nas escolhas dos jogadores por estratégias. Cada escolha dessas é uma jogada. A Guerra Fria como o jogo de deterrence pode ser entendida, seguindo os critérios de definição de jogos propostos pelos autores, como um jogo com dois participantes que têm algum conhecimento sobre o que já aconteceu e o que está envolvido, apesar de não ser total – há incertezas sobre o inimigo e suas capacidades. Apesar de parecer infinito em suas possibilidades de jogada, há uma tentativa de lhe dar alguma finitude em relação às opções em cada jogada. Sua duração não é, provavelmente, infinita, porém, desconhece-se sua finitude. As jogadas podem ou não ser simultâneas – os dois poderiam apertar o botão ao mesmo tempo, dependendo das provocações. É um jogo de estratégia mista, já que cabe a ponderação de probabilidades a cada uma das possibilidades em cada jogada. Os objetivos atingidos a cada fim de jogada não necessariamente serão iguais, ou seja, o que um ganhou não é necessariamente o que outro perdeu.91

Essa transformação do conflito da Guerra Fria em um jogo tem, em partes, influência de uma das quatro formas de jogos de guerra que os autores apresentam no relatório War

89 Ibid, p. 1-2.

90 Ibid, p. 1, 21, 24-25.

Gaming. No jogo chamado de Rule Game, o analista tenta deduzir do mundo real um conjunto de regras que são expostas de forma que qualquer um possa jogar. Esse jogo, muitas vezes, tem a finalidade de ensinar princípios que normalmente são difíceis de serem expostos. Com isso, criar-se-ia uma pseudo-experiência que substituiria a exposição e teria um caráter didático. Uma vez que os jogadores estão inclinados a aceitar as suposições que estão nas regras, eles com frequência são forçados a aceitar as conclusões fruto delas. Os autores não viam, por isso, o Rule Game bem adaptado à pesquisa empírica. Raramente esse jogo traria conclusões válidas para o mundo real, pois os resultados eram sempre condicionados pelas regras. Dessa forma, uma vez que as regras estão definidas, há pouco a se fazer, já que jogar acrescentaria pouca informação. Nesse sentido, esses jogos são mais ferramentas pedagógicas do que uma ferramenta de pesquisa. Esse é um dos sentidos em transformar a Guerra Fria em uma metáfora de jogo: esclarecer suas regras e mostrar seus resultados conforme as decisões de jogadas. Em suma, tornar o conflito jogável e vencível, pois esse era um jogo em que as perdas de um não necessariamente seriam compensadas pelo ganho do outro. Poderia ser um jogo no qual os dois perderiam e não alcançariam seus objetivos, ou que a derrota – ou a vitória – de um seria menor que a do outro.92

A característica de várias possibilidades de jogadas que o jogo de dissuasão possuiria dificultaria previsões acerca do comportamento dos jogadores. Contra isso, os autores defendem que seria importante conhecer a personalidade e a história de cada um dos participantes, o que demandava princípios de economia, política, sociologia, psicologia e história. Um recurso retirado do War Gaming, chamado Informal Game, também ajudaria a pensar como o inimigo poderia reagir. Ele consiste na tentativa de considerar as reações inimigas a partir de cogitações simples, sem muito cuidado técnico ou teórico, que poderiam ser feitas individualmente ou em grupo. É basicamente pensar o que o inimigo poderia estar pensando.93.

Outro elemento de dificuldade para mensurar as jogadas é que a satisfação com os resultados não seria somente numérica. De forma geral, só se chegaria a uma solução ou por negociação, pela qual os jogadores saíssem satisfeitos, ou se houvesse alguma forma de intermediar a relação deles, dando limites e direitos, e que fornecesse alguma noção mensurável. Todavia, essas considerações sobre o inimigo só seriam possíveis se fosse

92 KAHN, H. e MANN, I. War Gaming, 1957, p. 4-6; KAHN, H. e MANN, I. Techniques of systems analysis,

1957, p. 159.

cumprido um princípio elementar da teoria dos jogos, a saber, jogar contra participantes racionais, uma vez que os irracionais poderiam ter atitudes desmedidas e imensuráveis.94

O contexto do jogo de deterrence poderia ficar ainda mais complicado se houvesse outros “vizinhos” ou participantes envolvidos. No caso, os dois vizinhos mais fortes, com os porões protegidos e com acesso a dinamites, poderiam explodir qualquer um dos outros vizinhos, enquanto que os vizinhos neutros não teriam botões, nem dinamites. Nesse contexto, um porão bem protegido permitiria dar ultimatos – ou pelo menos dar força a eles, já que o porão daria credibilidade à possibilidade de a família estar protegida. Isso dissuadiria certos tipos de comportamentos provocativos tanto dos neutros, quanto das potências. O que seria evitado com esse tipo de bravata, conforme os autores, era uma ação ofensiva contra a paz na vizinhança, a qual poderia resultar em uma resposta irracional: alguém apertar o botão. Os autores também pensam a possibilidade de alianças entre os jogadores. Por exemplo, dois mais fracos – que têm menos chance de alcançar seus objetivos – se unirem para eliminar o mais forte, o que poderia ser possível dependendo da ordem das jogadas.95

Com tal situação delineada, outros fatores ganhariam importância. A ação educada com o vizinho, por exemplo, reduziria a necessidade de um porão forte. Contudo, uma relação conturbada necessitaria que o porão fosse mais bem defendido. Outro fator essencial era que as ações menores não deveriam ser alvo de ameaça de explosão, tal como um filho ou amigo dele roubando maçãs na árvore do vizinho ou o cachorro latindo. Ou seja, sabe-se tanto que o garoto, quanto o cachorro, terão atitudes que parecerão provocação, logo, essas atitudes deveriam ser retiradas do conjunto das ações que poderiam levar ao acionamento das dinamites.96

Chegamos, portanto, primeiramente, à elaboração de Kahn e Mann sobre como trabalhar com as incertezas estatísticas e de ação e reação do inimigo. Por outro lado, a construção das formas para lidar com essas incertezas também funciona com uma finalidade didática de exposição sobre a Guerra Fria, que serve para justificar e mostrar onde se encaixa a atividade de RnD. A situação das dinamites ameaçando o porão levaria a uma condição de pesquisa e de desenvolvimento da defesa e do ataque e de como a capacidade de ataque se tornava elemento de defesa. O trabalho probabilístico e com jogos era, assim, parte dessa prática de pesquisa e desenvolvimento feito para a defesa militar dos EUA. Os métodos probabilísticos ajudariam a vencer as incertezas estatísticas, aquelas frutos de questões sobre

94 KAHN, H. e MANN, I. Game theory, 1957, p. 37-38, 52-58. 95 Ibid., p. 47-52, 61-63.

qual a melhor distribuição dos recursos para se atingir determinados objetivos. Já os jogos, esclareceriam o entendimento e a explicação do conflito que os EUA participavam. Os dois, em conjunto, davam a dimensão pretensamente racional de compreensão e ação dentro desse contexto, vencendo, parcialmente, o desafio do futuro incerto.

Contudo, havia uma diferença contextual entre a OR da II Guerra e a atividade de pesquisa e desenvolvimento após a II Guerra. O principal elemento dessa diferença foi a Systems Analysis, uma forma de trabalho que continuou e superou a OR no planejamento dos anos iniciais da Guerra Fria. Para Kahn, no período da Guerra Fria, a batalha tecnológica estava sendo lutada mais intensamente do que fora durante a II Guerra. A diferença era, agora, que não havia batalhas. Um dos efeitos disso era não ter experiência com os artefatos que eram criados. O trabalho dos institutos e cientistas tentava suprir essa ausência de experiência com estudos hipotéticos e testes, os quais, no entanto, conforme Kahn, podiam possuir um descompasso com a realidade.97

Nesse sentido, a OR não era tão útil, já que, durante a guerra, ela foi empregada para decidir como usar um equipamento, concreto e presente, da melhor maneira possível e dentro de um ambiente precisamente definido. A amplidão maior, tanto de espaço, quanto de tempo, fruto de um horizonte aberto e indefinido militar e politicamente, criou a necessidade de um método ou técnica mais adequada a atender os EUA em seu projeto de uma nação voltada para o mundo. Portanto, estavam presentes as incertezas decorrentes de um futuro aberto, incerto e sem um objetivo urgente, típico de uma guerra real. Contra isso, foi delineada uma técnica que possuía semelhanças com a OR, como, por exemplo, o trabalho comparativo e a avaliação dos equipamentos e do meio em que eles se inserem. As inovações estavam na abordagem de forma mais ampla e no fornecimento de mais detalhes, já que tinha que lidar com um horizonte aberto, sem um objetivo e um contexto fixos. Ela trabalharia, ainda, com um campo mais amplo de incertezas, uma vez que analisava períodos mais longos, tentando delinear um sistema capaz de encontrar contingências que surgiriam entre cinco e, no máximo, quinze anos no futuro. Essa nova técnica foi chamada de Systems Analysis.98