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Dirce Cristina de Christo Mestre em Desenvolvimento Rural e Graduanda em Ciências Sociais (UFRGS)

O coração pulsando forte no peito é a lembrança que te- nho do primeiro dia como edu- cadora no Curso Pré-vestibular Popular Liberato, que faz par- te do Programa Por Dentro da UFRGS. O coração vibrando ao fim da aula, acreditando na po- tência da Educação. Uma hora quase não foi tempo suficiente para que cerca de cinquenta estudantes pudessem, cada uma e cada um, dizer de si, colocar no mundo sua palavra, como propunha Paulo Freire (1994). Enquanto pedia que formassem o círculo para que pudéssemos nos conhecer, sentia que minha voz era insu-

ficiente, questionei-me se teria timbre para ser professora, eu, que já na infância era acusa- da de falar alto demais. Um primeiro dia de aula é palco de muitas reflexões na cabeça de quem se inicia nas artes da Educação.

Olhando em perspectiva, vejo que não havia nada mes- mo que pudesse ser mais efe- tivo do que um círculo em que toda a turma falasse: era a pri- meira semana de aula, a ânsia por mostrar um pouco de si e saber um tanto dos outros era generalizada. Por isso, minha voz parecia fraca, porque era

momento de ouvir, de saber com quem o trabalho educati- vo seria construído. Com o pas- sar das semanas, minha voz se fez suficiente, a turma foi centrando a atenção, mas não sem termos a experiência de olhar olho no olho, em horizon- talidade, no momento inicial.

E esse caminho de escuta, de falar e também ouvir, não ficou reduzido a um rito iniciá- tico. Minha prática em sala de aula tem se feito de um ir e vir, de conciliar momentos em que consigo aplicar metodologias mais participativas com outros em que é necessária uma aula mais expositiva em função das necessidades em termos de conteúdo – afinal, as provas do ENEM e do Vestibular da UFRGS exigem conhecimentos específicos que precisam ser contemplados em nosso plano de ensino.

Entretanto, as reflexões sobre educação popular que acompanhei na obra de Paulo Freire evocam a inescapável construção de subjetividades que acontece em sala de aula. E é preciso atenção para tra- çar caminhos na busca de um equilíbrio – sempre provisó- rio – entre o que precisa ser

Roda de conversa na primeira semana de aula. Abril de 2019

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transmitido e o que urge ser construído.

Minha concepção sobre a forma como pode se dar o pro- cesso educativo está apoiada também na leitura de feminis- tas negras, que dão centralida- de à experiência biográfica na construção do conhecimento (HOOKS, 2004).

Um importante momento em que retornamos ao círculo e à construção coletiva foi a aula de Sociologia sobre gê- nero e sexualidade. A temática era próxima demais da realida- de concreta de cada estudan- te, o que a meu ver tornava pouco indicada uma aula sim- plesmente conceitual apoiada em exemplos hipotéticos – era momento de falarmos de nós, de nos construirmos enquanto arquitetávamos nossa com- preensão sobre o tema.

E foi uma aula extrema- mente potente. Muito além de ilustrar os conceitos que eu trouxe, as estudantes, espe- cialmente as meninas, trouxe- ram para o debate elementos que transcendiam o meu pla- nejamento – que estavam no escopo do imaginado, do algo a mais que eu supunha que vi-

ria, mas que ainda não sabia o que seria. Uma das alunas pre- sentes expôs sua experiência de transgênero, explicando as diferenças entre este termo e a definição de transexual. Em linhas gerais, a distinção entre os termos remete ao momento em que acontece a transição – no seu caso, foi na infância, o que configura a nomenclatura transgênero. Sua sexualidade, portanto, é construída já no gênero para o qual fez a tran- sição.

Eu não dispunha do apro- fundamento conceitual que a estudante trouxe, e a aula foi momento de aprendizado tam- bém para mim, que estava ali como educadora, mas também como educanda. E é este pro- cesso dialógico de construção do conhecimento que a educa- ção popular objetiva alcançar: que a educadora seja também educanda e que as educan- das sejam também educado- ras, como aposta Paulo Freire (1994) com a pedagogia do oprimido.

Entendo ainda que há mais uma compreensão que se cons- trói nesse processo. Olhando a questão a partir da análise de Michel Foucault (2008), pode-

Referências:

FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fon- tes, 2008.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

HOOKS, Bell. Mujeres negras. Dar forma a la teoría feminista. In: Otras inapropiables. Traficantes de Sueños: Madrid, 2004.

mos ver a prática como enun- ciadora de discurso. Ou seja, não só o que dizemos carrega mensagens aos estudantes, mas também as nossas práti- cas, nossas ações em sala de aula. Nesse sentido, entendo que a postura de educadora que se deixa conduzir pelo sa- ber trazido por uma estudante, que se coloca abertamente na condição de aprendiz perante a turma, também ensina algo. A prática educativa de validação dos saberes de uma educanda enuncia algo para quem está compartilhando o momento em sala de aula. Fala de uma postura diante do conhecimen- to e diante dos sujeitos com os quais nos relacionamos. Essa prática fala de possibilidades outras de educação e de rela- ção. E também disso trata a educação popular: de trans- formar nossa relação com o conhecimento, de reconhecer todas e todos como fontes le- gítimas de diferentes conheci- mentos relacionados às trajetó- rias individuais. Neste sentido, minha experiência com o Pré- -Vestibular Popular Liberato tem sido campo de prática da educação popular, de pesquisa e ação sobre as possibilidades da transformação a partir da experiência educativa.

Impacto da vivência extensionista

na formação cidadã

CURSO PRÉ-VESTIBULAR POPULAR LIBERATO E