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2. Direitos de Personalidade

2.4. Direito à privacidade

Toda a pessoa, o ser humano, parece ter dois interesses fundamentais a defender: um, a sua existência em liberdade; o outro, o livre desenvolvimento da sua vida relativamente aos demais, sendo que o direito à privacidade se relaciona com estes dois interesses, no sentido de ser um direito fundamental decorrente da dignidade humana, interligado com outros direitos162, mormente direitos de personalidade.

O objetivo do direito à privacidade ou direito à intimidade da vida privada consiste em amparar e proteger a vida íntima da pessoa face a intromissões alheias, determinando a natureza e o alcance dessa proteção. Evoca-se a ideia de que a vida íntima apenas diz respeito à própria pessoa, e esta tem o direito a protegê-la de interferências dos demais.

Na verdade, na vertente da dignidade da pessoa deve-lhe ser reconhecido um espaço de privacidade próprio, abrigado da curiosidade de outrem (seja ele quem for, desde que não autorizado, salvo situações previstas na lei).

Deste modo se tutela ou protege a intimidade pessoal, compreendendo o que de mais secreto existe na vida do indivíduo – num contexto mais restrito (por exemplo: proteger a nudez, a sexualidade, a afetividade); já num contexto mais amplo, o direito à reserva da vida privada inclui aspetos da vida pessoal que podem estar fora da sua intimidade, cujo acesso apenas é permitido a quem o indivíduo eleja, por princípio, dentro do círculo das suas

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De referir ainda que os maiores de dezasseis anos, nos termos de uma eventual relação laboral, ou outra, não são responsabilizados civilmente e criminalmente, salvo algumas situações, por exemplo, aquelas em que o menor seja emancipado ou haja consentimento expresso dos seus progenitores ou tutores, isto é, dos seus representantes legais, para efetivação de negócios jurídicos, como é o caso do contrato de trabalho. Neste sentido, veja-se ainda a Lei n.º105/2009, de 14-09.

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Neste sentido, deve observar-se o art.º 487.º do CC. quanto a danos praticados por omissões.

161 Veja-se art.ºs 158.º e 160.º do CC. – aquisição da personalidade e capacidade. 162

MOREIRA, Teresa Alexandra Coelho – A Privacidade dos Trabalhadores e as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação: contributo para um estudo dos limites do poder de controlo eletrónico do empregador, in Teses. Coimbra: Almedina, Maio, 2010, 893 p.. ISBN 978-972-40-4208-4, p.106.

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relações pessoais. Neste contexto, o cidadão tem necessidade de guardar para si certos aspetos ou modos de ser da sua vida, para que não cheguem ao conhecimento de outrem não autorizado pelo próprio.

Neste sentido, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem refere que “qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência”, e ainda que “não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício desse direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem- estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção de infrações de âmbito penal, a proteção da saúde ou da moral, ou a proteção dos direitos e liberdades de terceiros163.

Dissemos que, no âmbito da relação laboral, a tutela dos direitos humanos se reveste de forma especial, porque em causa relações jurídicas desiguais, em que uma das partes, necessariamente, se encontra desfavorecida face à parte contrária, nos termos de uma relação subordinada, tendo especial ênfase, por um lado, a necessidade de proteção da privacidade do trabalhador como um bem pessoalíssimo. Mas, por outro lado, existem diversas possibilidades fácticas da livre decisão de uma das partes contraentes poder dispor de certos direitos relativamente à outra parte, o que equivale a dizer que há a vantagem do contraente, aqui, mais forte (empregador), que pode afetar eventualmente, de forma significativa, os direitos de personalidade do trabalhador.

Ora, em forma de complementaridade com o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada (cf.art.80.º do CC) como um dos direitos de personalidade, temos, ao abrigo do art.26.º da CRP, o direito à reserva da intimidade da vida privada como um dos bens protegido pelos direitos fundamentais (que nos remete para o n.º4 do art.35.º da Constituição, em termos da proibição do acesso a dados pessoais por terceiros), cujo exercício é contratualmente limitado, não estando assim de todo à disposição do seu titular. Ou, se estiver, pelo seu conteúdo pessoal, seja especialmente sensível relativamente a uma vinculação jurídica.

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Tendo em consideração que “As normas e os princípios de Direito Internacional” fazem parte e vinculam o Direito Português, bem como as convenções internacionais que vigoram na ordem jurídica portuguesa, desde que os respetivos tratados assim o estabeleçam – n.º1 e 2 do art.º8 da CRP.

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Todavia, ao abrigo do artigo 81.º do Código Civil, pode existir limitação voluntária aos direitos de personalidade, nos termos da lei, e também pode haver restrição legal, desde que os direitos “ contrariem os princípios da ordem pública”164.

No âmbito das relações laborais, o Código de Trabalho regula (como já referido), nos seus artigos 14.º a 22.º, os direitos de personalidade, reconhecendo sobretudo a reserva da intimidade da vida privada, bem como a proteção de dados pessoais e o direito à confidencialidade de mensagens e de acesso a informação, limitando o empregador no seu direito de propriedade, devendo considerar-se aqui o princípio da proporcionalidade na utilização destes direitos (evitando-se os excessos de um direito sobre o outro - havendo cedências na medida do possível e razoável para a realização de uns e outros direitos). Não raras vezes, o direito à intimidade do trabalhador é violado em decorrência do exercício abusivo do direito de propriedade e poder de direção do empregador.

O empregador, apesar de legitimado pelo poder diretivo e disciplinar, não pode invadir a esfera privada e/ou íntima do seu trabalhador, inclusive com o objetivo, por exemplo, de aumentar a produtividade deste.

Assim, tendo em conta as desigualdades nas relações laborais (empregador/trabalhador), concebe-se um maior interesse a conferir à defesa dos direitos de personalidade, pela existência do confronto dos interesses das partes envolvidas: a entidade empregadora, na sua esfera jurídica, tem em conta a salvaguarda dos interesses da empresa (que podem ser os seus), e para isso recorre a instrumentos de gestão e fiscalização adequados à atividade em causa; o prestador de trabalho, na sua esfera jurídica, eleva o desiderato fundamental dos seus interesses pessoais e patrimoniais, como a garantia salarial, a segurança no emprego (não recear o despedimento – artigo 53.º da CRP), e a conciliação entre a sua vida profissional e a sua vida familiar e/ou privada.

Na verdade, na sociedade laboral hodierna, o exercício dos poderes do empregador é mais sofisticado, uma vez que a entidade empregadora, para o efetivo exercício dos seus poderes, lança mão das evoluções verificadas na ciência e na tecnologia, tornando-as para efeitos de controlo e gestão da unidade produtiva. Nestes termos, há maiores probabilidades de atingir a esfera privada e íntima dos trabalhadores, e assim a sua dignidade.

De facto, na atualidade, fruto do uso generalizado da informática, seja a nível pessoal, seja ao nível empresarial, as questões relacionadas com o direito à privacidade são postas em

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causa pelos riscos que esta comporta, apesar da sua relevante vantagem. No entanto, praticamente, o quotidiano de qualquer cidadão é inimaginável sem o tratamento informático de dados pessoais e de comunicação/informação através de mensagens por correio eletrónico. Logo, nos dias de hoje existe a possibilidade séria de seguir “as pegadas eletrónicas do cidadão digital”165

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Por isso, transpondo a situação da privacidade do trabalhador para o contexto laboral, entende-se que, em caso de conflito entre o interesse material da entidade empregadora e o direito do empregador aos seus meios de comunicação, por si, fornecidos ao trabalhador, e o direito daquele à confidencialidade de mensagens e de acesso a informação, os direitos de personalidade devem prevalecer sobre os direitos de propriedade166. Neste âmbito, o legislador, ao aplicar a lei, deve ter também em conta a especial sensibilidade do lesado e o grau de lesão167.

Neste ensejo, é de sublinhar que, tipificados que estão alguns direitos de personalidade, é fundamental para o trabalhador o direito à reserva sobre a intimidade da sua vida privada , o que inclui o direito à privacidade168.

Porém, as previsões dos artigos 70.º e seguintes do Código Civil - direitos de personalidade - são apenas válidas nas relações paritárias entre os particulares ou entre estes e o Estado, vendo-se este desprovido de ius imperii, e “são tuteladas através de mecanismos coercivos juscivilísticos” (como sucede, por exemplo, em matéria de responsabilidade civil e das providências especiais preventivas ou reparadoras – n.º2, do artigo 70.º, e artigo 483.º, ambos do CC, e artigo1474.º e seguintes do CPC). De forma diferente, as previsões constitucionais já analisadas, relativas aos direitos fundamentais, pressupõem relações juspublicísticas, “de poder, que são oponíveis ao próprio Estado, no exercício do seu próprio

165 CASTRO, Catarina Sarmento- Direito de Informática, Privacidade e Dados Pessoais.

Edição/reimpressão:2005.Almedina, 374 p. ISBN: 9789724024240, [em linha]- [consulta em 10/10/2012],em

www.woock.pt/product/id/37449.

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Tendo em conta a existência de casos de diferente natureza e em que se pode verificar o contrário, e podemos dar como exemplo uma unidade fabril com vários trabalhadores, implementada há vários anos em determinada localidade, em que certo indivíduo resolve construir e habitar nas proximidades da fábrica, o que pode, eventualmente, colidir com o seu direito ao repouso. Aqui existe, claramente, na nossa opinião, a sobreposição do direito de propriedade sobre o direito de personalidade.

167 NETO, Abílio- Código Civil Anotado. 17.ª ed., revista e atualizada. Lisboa: Ediforum. Distribuição Coimbra

Editora, Abril 2010, 1695p. ISBN 978-972-8035-98-3, p.57

168 DRAY, Guilherme Machado – Direitos de Personalidade, Anotações ao Código Civil e ao Código de

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ius imperii”, considerando que também são produtoras de efeitos nas relações entre os

particulares (n.º1, do art.º18.º, da CRP)169.

Ora, o direito à privacidade assenta na dignidade da pessoa humana como fator essencial do ser-se pessoa; consequentemente, é atribuído pelo ordenamento jurídico a todas as pessoas físicas, sejam elas quem forem.

Partindo da norma constitucional170, importa verificar que limitações àquele direito serão legalmente admissíveis numa relação de trabalho, onde podem emergir conflitos de direitos e/ou interesses constitucional e civilmente garantidos. Por isso, interessa compreender a relação de vinculação das entidades empregadoras aos direitos fundamentais dos trabalhadores, em particular na sua vertente privada, isto é, no direito à privacidade do trabalhador no local de trabalho.

Assim, considerando o art.26.º, n.º1, da Constituição da República Portuguesa, à luz do qual se garante o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar, por um lado, e o art.34.º, da lei Fundamental, por outro, existe a garantia da inviolabilidade do domicílio, da correspondência e de todos os meios de comunicação privada, ocupando-se também o acima citado artigo 35.º dos limites e regras de utilização da informática, determinando que ela “não pode ser utilizada para tratamento de dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica, salvo mediante consentimento expresso do titular, autorização prevista por lei com garantias de não discriminação ou para processamento de dados estatísticos não individualmente identificáveis”171

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Ainda no artigo 80.º do Código Civil, recorde-se que “todos devem guardar reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem”, bem como os artigos 76.ºe 77.º deste mesmo diploma, que se ocupam da reserva de cartas-missivas confidenciais, das memórias familiares e pessoais e de outros escritos de carácter confidencial ou que sejam referentes à intimidade da vida privada indivíduo, onde se inclui, naturalmente, o trabalhador.

Na verdade, como se referencia ao longo deste trabalho, foram adotadas medidas que dizem respeito à proteção da intimidade da vida privada, nomeadamente, foi a Lei n.º3/73, de

169 SOUSA, Rabindranath V.A. Capelo de- O Direito Geral de Personalidade. 1.ª ed. Lisboa: Coimbra Editora,

grupo Wolters Kluwer, Jan.2011 (reimpressão). 703 p. ISBN 972-32-0677-3. Depósito Legal n.º 86 0144/95, p.584

170 Artigo 26º da Constituição da República Portuguesa.

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PRATA, Ana – Dicionário Jurídico, in Coleção Dicionários Jurídicos, 5.ª edição, atualizada e aumentada, Coimbra: Almedina, Jan. 2008, pp. 799 a 801).

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5 de abril que, inicialmente, adotou essas medidas, instituindo penas para quem devassasse a intimidade da vida privada de alguém, entre outras situações do foro íntimo de uma pessoa (como, por exemplo, se alguém “fornecesse elementos a um ficheiro, base ou banco de dados, gerido por ordenador ou por outro equipamento fundado nos princípios da cibernética” ou ainda utilizasse esses elementos com finalidades ilícitas, como também importunar alguém por telefone ou por mensagens).

Posteriormente, a Lei n.º10/91, de 29 de abril, alterada pela Lei n.º28/94, de 29 de agosto (Lei da Proteção de Dados Pessoais face à Informática) estabeleceu também um conjunto de regras relativas ao uso da informática, determinando que esta deveria “processar- se de forma transparente e no estrito respeito pela reserva da vida privada e familiar e pelos direitos, liberdades e garantias fundamentais do cidadão” (artigo 1.º).

A Lei de Proteção de Dados Pessoais – Lei n.º67/98, de 26 de outubro, retificada pela Declaração de retificação n.º22/98, de 28 de novembro (também já referenciada), veio ocupar- se, de forma abrangente, da proteção das pessoas relativamente ao tratamento dos seus dados, aqui incluindo a então emergente “videovigilância e outras formas de captação, tratamento de sons e imagens que permitissem identificar pessoas”, no âmbito de tutela da privacidade dos cidadãos172.