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CAPÍTULO 3: O CONHECIMENTO CIENTÍFICO CONTEMPORÂNEO:

3.4 A Constituição e a Consolidação do Campo Científico

3.5.1 Fundamentos da Epistemologia Interdisciplinar

3.5.1.2 Disciplina, Disciplinarização e Integração Disciplinar

A epistemologia interdisciplinar tem como fundamento três processos que compõem a história do progresso do conhecimento científico: a constituição das disciplinas, o processo de disciplinarização do conhecimento e as práticas de integração disciplinar. Esses três processos se desenvolvem no interior dos campos científicos, mas são constitutivos de processo mais amplo de produção e desenvolvimento do conhecimento científico.

A constituição de disciplinas científicas se apresenta, nesse domínio amplo de produção de conhecimento, como um dos seus principais fundamentos. Primeiro, em uma vertente mais epistêmica, a disciplina corresponde ao espaço científico dedicado à exploração e construção de um sistema de conhecimentos especializados. Ela assume necessariamente a noção de delimitação e de controle, contudo, como esclarece Lenoir (2004), esse controle não tem necessariamente conotações repressivas ou externas, mas meios de internalização de padrões de discursos, de estruturas de conhecimento e de modos de práticas. A ideia de disciplina torna-se, então, central na micropolítica da produção de conhecimento.

Nesse contexto, Japiassu (1976) destaca seis critérios necessários à conformação de uma disciplina: domínio material, domínio de estudo, nível de integração teórica, métodos próprios, instrumentos de análise e aplicações e contingências históricas. Embora interligados, esses critérios podem ser reagrupados em três grandes domínios, conforme as suas finalidades específicas: constituição do campo disciplinar, construções teórico-metodológicas e contextos de desenvolvimento e aplicações.

Os dois primeiros elementos estão afetos à constituição do domínio do campo disciplinar. Segundo Japiassu (1976), o domínio material das disciplinas compreende o conjunto de objetos pelos quais se interessam e dos quais se ocupam os seus respectivos pesquisadores. O domínio de estudo corresponde, por sua vez, ao espaço delimitado daquele domínio a partir da definição de um ângulo específico. É oportuno esclarecer que o domínio de estudo pode ser comum a várias disciplinas.

No que se refere às construções teórico-metodológicas, torna-se necessária a cooperação entre integração teórica, definição de métodos próprios e elaboração de instrumentos de análise. Segundo o autor, na composição de uma disciplina, faz-se necessária a integração de conceitos fundamentais e unificadores que possibilitem, ao mesmo tempo, construção das condições do domínio de estudo e, por conseguinte, a explicação e a previsão dos fenômenos a que esse domínio se refere. Essas condições decorrem, em grande medida,

da existência de métodos próprios dedicados à apreensão e à transformação dos fenômenos estudados. Para tanto, torna-se imprescindível a concordância entre a aplicação dos métodos e as leis gerais do nível de integração teórica. Além disso, tornam-se necessários instrumentos de análise de acordo com os fundamentos teórico-conceituais e as definições metodológicas. A definição desses instrumentos tem por base as estratégias lógicas, os raciocínios e os modelos utilizados no processo de análise (JAPIASSU, 1976).

As aplicações e as contingências históricas se referem aos aspectos mais amplos da organização disciplinar. As aplicações definem o desenho da disciplina na medida em que quanto mais for orientada à aplicação profissional, mais eclética em sua conformação disciplinar ela se torna, necessitando, então, de programas pluridisciplinares. Além disso, as disciplinas se encontram, em cada fase, em um momento de transição sempre em contato com forças e influências internas e externas ao seu campo científico (JAPIASSU, 1976).

Segundo Lenoir (2004), as disciplinas correspondem também a espaços em que se dão relações entre conhecimento e poder, no sentido mais amplo de poder econômico. Esse poder deve ser considerado tanto no interior das disciplinas quanto na relação entre estas na constituição do campo amplo do conhecimento. Nesse conjunto disciplinar, existem aproximações e distanciamentos em determinados campos e cada um desses se comporta de forma diferenciada tanto no seu interior quanto nas relações que estabelece com os demais campos científicos. Com efeito, cada campo disciplinar apresenta uma lógica, de acordo com seus capitais econômicos e culturais específicos, mas cada um desses é homólogo à rede de relações de poder em geral. Nenhum campo científico está completamente fora desses circuitos de poder.

Há, de acordo com Lenoir (2004), duas formas de conceber e aceitar a disciplina: como opressão ou como geração e organização de competências. Ela passa a ser opressão quando se desenvolve a prática do entrincheiramento no jogo das relações de força e no contato com outros conteúdos ou disciplinas. Nesse espaço opressor, a disciplina funciona, pelo menos, a partir de duas operações: pela prática negativa de corte e definição de comportamentos no seu interior, e/ou pela exclusão de possibilidades de acesso à sua conformação disciplinar. Assim, ela pode desenvolver, ao mesmo tempo, barreiras na atuação de seus pesquisadores e no ingresso de novos pesquisadores ou de outros elementos que promovam a dinâmica dos conteúdos que a compõem. Na outra perspectiva, contudo, ela pode ser compreendida e praticada como processo dinâmico que promove organização e competências. A diferença se encontra no fato de esta forma possibilitar o desenvolvimento de competências capazes de evitar coerções. Os pesquisadores nesse domínio são sujeitos-

disciplinados que apresentam capacidade de inovação dentro de seus parâmetros, ou seja, apresentam condições de identificar e explorar as brechas do campo científico.

A concepção e a prática da disciplina na segunda perspectiva se fundamentam, ao mesmo tempo, no princípio da desunificação da ciência e no princípio da autonomia relativa dos campos científicos. É esse processo que efetivamente requer e, concomitante, alimenta a prática da epistemologia interdisciplinar. A disciplina como espaço organizador se constitui no princípio fundador da dinâmica da constituição e do desenvolvimento dos campos científicos. Em contraposição, a prática disciplinar opressiva promove a crescente disciplinarização do conhecimento. Ela se caracteriza, essencialmente, pelo processo crescente de hiperespecialização do conhecimento e a correlata compartimentalização dos campos científicos.

A disciplinarização do conhecimento corresponde, portanto, ao processo crescente de especialização resultante da prática científica no âmbito da disciplinaridade, que “[...] significa a exploração científica especializada de determinado domínio homogêneo de estudo, isto é, o conjunto sistemático e organizado de conhecimentos que apresentam características próprias nos planos de ensino, de formação dos métodos e das matérias; esta exploração consiste em fazer surgir novos conhecimentos que se substituem aos antigos” (JAPIASSU, 1976, p. 72).

Esse cenário é, pois, resultado de uma necessária especialização do conhecimento fortemente fundamentada nas propostas de ciência galileana e cartesiana. Essa filosofia analítica se assenta no axioma “o todo é igual à soma das partes”. Assim, a partir dessa visão atomista, a proposta metodológica é chegar à unidade mínima de um objeto de estudo a partir de quebras sucessivas, em busca de uma análise mais precisa. Realizado esse procedimento, em um processo inverso, o objeto é reconstituído por intermédio da soma dos elementos constituintes resultantes daquelas análises.

Essa epistemologia lógica do pensamento cartesiano, que tem como principais defensores os empiristas lógicos, refere-se a uma corrente bastante explorada e rica, mas, nas palavras de Japiassu (1976), dedica-se demais aos esclarecimentos da atividade científica a partir de uma descrição dos métodos, dos resultados e, principalmente, da linguagem científica, em detrimento do exame crítico da atividade científica próprio das propostas epistemológicas contemporâneas.

A perspectiva epistemológica interdisciplinar de constituição do conhecimento científico se coaduna, em que pesem as indefinições e os equívocos que pairam sobre ela, conforme se discute mais abaixo, com as definições dos contornos amplos de uma

epistemologia contemporânea, na qual ser faz presente o reconhecimento da necessidade da dispersão epistemológica bachelardiana. E, nesse sentido, duas questões fundamentam a dinâmica dessa confluência teórico-metodológica: a superação do estado crítico da disciplinarização e a ruptura com a antinomia presente na relação filosofia realista versus filosofia racionalista tão presentes na constituição da ciência moderna.

Para Bachelard (1978a, p. 4), “a ciência, soma de provas e de experiências, soma de regras e de leis, soma de evidências e de fatos, tem, pois, necessidade de uma filosofia com dois polos. Mais exatamente, ela tem necessidade de um desenvolvimento dialético, porque cada noção se esclarece de uma forma complementar segundo dois pontos de vista filosóficos diferentes”. Essa polaridade epistemológica entre o empirismo e o racionalismo está para além de um simples dualismo, constituindo-se em complementos efetivos.

De acordo com Pombo (2003), o estado resultante das práticas do modelo analítico de fazer ciência, em fins do século XX e início do século XXI, mostrou-se insuficiente para abordar a multiplicidade e a complexidade dos objetos encontrada por intermédio do aprofundamento das práticas especializadas. Trata-se da necessidade de um deslocamento do modo de fazer ciência:

Aquilo que se pensava simples, sem partes, “atômico”, veio a revelar-se como um universo abissal de multiplicidade, de complexidades ilimitadas. Quanto mais fina é a análise, maior é a complexidade. Afinal, não tínhamos chegado a nenhum ponto atômico, a nenhum ponto último de análise a partir do qual fosse possível recomeçar o trabalho da reconstrução sintética (POMBO, 2003, p. 7-8, grifo da autora).

Apesar de sua importância, no projeto de uma ciência contemporânea, a construção epistemológica da interdisciplinaridade se apresenta atualmente complexa por uma série de fatores que vão desde os seus aspectos conceituais às práticas científicas mais consolidadas, nos diversos campos de conhecimento. É preciso considerar que, mesmo no aspecto conceitual, essa complexidade pode se fazer presente não apenas no que se refere às questões terminológicas, mas quando este se apresenta como conceito-obstáculo.

A epistemologia interdisciplinar, muito esquecida pela prática científica positivista, vem, portanto, procurando estabelecer não somente o seu significado, mas um complexo formado por uma teia conceitual, as razões que a justificam e seus escopos de atuação na reordenação do horizonte epistemológico contemporâneo. Para tanto, considera a interdisciplinaridade, de forma ampla, como a convergência de várias disciplinas com vistas à resolução de algum problema. Contudo, diferente do que se pode pensar, como destacaram Domingues (2004a), Japiassu (1976) e Pombo (2003), a interdisciplinaridade é muito

conhecida, porém, pouco compreendida, apresentando dificuldade de precisão das démarches que a sustentam.