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DISCURSO E SISTEMA JURÍDICO

No documento Alexy, Robert - Teoria Discursiva Do Direito (páginas 121-126)

Teoria do discurso e sistema jurídico*

2.3. DISCURSO E SISTEMA JURÍDICO

Agora eu gostaria de interromper as reflexões que realizei sobre o problema da utilidade da estrutura do discurso prático e dedicar-me à questão posta inicialmente sobre a conexão entre a teoria do discurso e os sistemas jurídicos.

Como já observado, constitui o esqueleto das minhas reflexões um modelo procedimental de quatro níveis,9que eu quero primeiramente ap-

resentar e então explicar. No primeiro nível encontra-se o procedimento do discurso prático, que de agora em diante será denominado, como delimit- ação em relação a outras formas de discurso, “discurso prático geral” (Pp).

No segundo nível está colocado o procedimento de produção estatal do direito (Pr), no terceiro o procedimento da argumentação jurídica ou do dis-

curso jurídico (Pj), e no quarto o procedimento do processo judicial (Pg).

No segundo e no quarto procedimentos, os da produção estatal do direito e do processo judicial, trata-se de procedimentos institucionalizados, en- quanto o primeiro e o terceiro níveis, do discurso prático geral e do dis- curso jurídico, podem, ao contrário, ser denominados não-institucionaliza-

dos, sendo que a expressão institucionalização significa a regulamentação

do procedimento através de normas jurídicas.

A passagem do discurso prático geral (Pp) à produção estatal do direito (Pr) fundamenta-se no amplo espaço daquilo que é, de acordo com

o procedimento do discurso, discursivamente possível. Se o discursiva- mente possível implicasse a validade jurídica, inúmeros conflitos sociais teriam que ser resolvidos com base em regras contraditórias entre si. As fronteiras da determinação do resultado do procedimento do discurso fun- damentam assim a necessidade de estipulações no âmbito do discursiva- mente possível através de outro procedimento. Esse procedimento é o

procedimento da produção estatal do direito. Esse argumento cognitivo de- ve, como ocorre em Kant,10 ser conectado ao argumento da coerção.

Mesmo se houvesse apenas resultados discursivamente necessários ou im- possíveis, sua transformação em normas jurídicas seria necessária, pois a concordância de todos no discurso sobre uma regra não tem necessaria- mente como consequência a sua observância por parte de todos. No caso de inúmeras normas, quando é possível que algumas pessoas simplesmente deixem de segui-las, não se pode exigir mais de ninguém a sua observância.

A passagem do procedimento do discurso ao procedimento da produção estatal do direito não significa, por vários motivos, o abandono do princípio do discurso. O procedimento da produção estatal do direito pode ser objeto do discurso. Quem defende o princípio do discurso exigirá que o procedimento da produção estatal do direito a ele corresponda na máxima medida possível. A institucionalização do processo legislativo par- lamentar baseado no direito geral de voto deve ser entendida como uma tentativa de realização do princípio do discurso no âmbito da produção da legislação estatal. Não pode haver dúvida de que existem processos legis- lativos que podem corresponder em medida menor ao princípio do discurso que o processo parlamentar. Se há ou não nas relações atuais um processo que corresponde a ele em maior medida pode ficar em aberto. Aqui é im- portante apenas que, no que diz respeito a essa questão, trata-se do prob- lema da otimização do princípio do discurso em vista das relações dadas. Isso deixa claro que o princípio do discurso pode ser empregado tanto para a legitimação quanto para a crítica do parlamentarismo, e que a decisão de- pende da avaliação das possibilidades fáticas.

Os direitos fundamentais levam a uma segunda conexão entre a teoria do discurso e a legislação. Em relação ao legislador ordinário os direitos fundamentais são normas negativas de competência.11 Eles estipulam

aquilo que o legislador não pode estabelecer. Aquele que cria um processo legislativo orientado pelo princípio do discurso assegurará através de direit- os fundamentais a possibilidade de discursos na maior medida possível. Assim, ele estipulará direitos fundamentais sobre a liberdade de opinião,

passará pelos direitos fundamentais de liberdade de reunião e associação e chegará à proteção contra a prisão arbitrária.

Uma terceira conexão consiste no fato de que no contexto do processo legislativo pode ocorrer pelo menos uma discussão racional. Se ela for sub- stituída por um jogo entre grupos de interesses e retórica televisiva, pode a crítica dirigida contra isso orientar-se pelo princípio do discurso. Essa crít- ica pode se dirigir tanto ao tipo de desenvolvimento do procedimento legis- lativo quanto a seus resultados. A possibilidade dessa crítica é garantida, em uma constituição discursivamente capaz de justificação, através dos direitos fundamentais.

Assim pode-se dizer que a introdução de um processo legislativo e com isso de uma constituição e de um sistema jurídico na verdade inclui, necessariamente, por um lado, restrições ao caráter ilimitado do discurso. Por esse preço que se paga recebe-se, por outro lado, a possibilidade de se realizar o princípio do discurso na medida em que ele é realizável.

A necessidade do terceiro procedimento, o do discurso jurídico (Pj),

resulta do fato de que, como mostram tanto considerações históricas quanto considerações sistemáticas, não é possível um procedimento legislativo que o mais tardar no momento do surgimento de toda questão jurídica coloque à disposição, ao lado de premissas empíricas, normas a partir das quais se siga logicamente ou a partir das quais se possa forçosamente fundamentar, com a ajuda de regras não duvidosas da metodologia jurídica, aquilo que em um caso isolado é juridicamente comandado. Dentre os motivos que são responsáveis por isso sejam mencionados apenas dois: a vagueza da linguagem do direito e a possibilidade de que uma questão não tenha sido regulamentada pelo legislador. Se porém em todos os casos deve ser dada uma resposta racionalmente fundamentada à pergunta sobre o que é juridic- amente comandado, proibido ou permitido, esse vácuo de racionalidade de- ve ser preenchido. O discurso jurídico aponta para isso.

O discurso jurídico se distingue do discurso prático geral através de seus vínculos. Nele não se pergunta qual é a solução absolutamente mais racional, mas qual é a solução mais racional no sistema jurídico. Eu gostar- ia de renunciar aqui a analisar mais de perto o conceito de solução mais ra- cional no sistema jurídico e simplesmente dizer que ela é aquela que pode

ser fundamentada da melhor maneira possível considerando-se o vínculo com as normas jurídicas válidas, os precedentes e a dogmática elaborada pela ciência do direito. Esses três fatores vinculantes, a lei, os precedentes e a dogmática, na verdade estipulam muito, mas também deixam muitas coisas em aberto, o que constitui uma das várias explicações para o enorme número de questões jurídicas polêmicas. Nesses casos trata-se sempre, no final das contas, daquilo que é comandado, proibido ou permitido, ou seja, de questões práticas. Quando não se pode encontrar uma resposta para es- sas questões somente com a ajuda do instrumentário especificamente jurídico, resta somente o retorno ao discurso prático geral. Isso significa porém que o procedimento do discurso jurídico, se em seu caso se deve tratar de soluções racionais, deve ser definido através de dois sistemas de regras: por um lado através de regras específicas do discurso jurídico, que expressem a vinculação com a lei, com os precedentes e com a dogmática, e, por outro lado, através das regras do discurso prático que levem em con- sideração a pretensão de que os julgamentos jurídicos sejam fundamentá- veis racionalmente no contexto do ordenamento jurídico. Isso constitui uma razão a favor da tese de que o discurso jurídico é um caso especial12

do discurso prático geral, caracterizado por determinadas vinculações. A fundamentação da vinculação à lei emerge da fundamentação da necessid- ade do segundo procedimento. Renunciar-se-á aqui à fundamentação da exigência de consideração do precedente e da dogmática.

Em virtude de suas vinculações, a insegurança de resultados do dis- curso jurídico é consideravelmente menor que a do discurso prático geral. A tese do caso especial implica porém que, apesar dessas vinculações, não se pode alcançar um ponto de segurança geral de resultados. Isso constitui uma razão essencial para a necessidade do quarto procedimento, o do pro-

cesso judicial (Pg). O processo judicial é, assim como o procedimento le-

gislativo, um procedimento institucionalizado. Suas regras são feitas de tal modo que depois da conclusão do procedimento há sempre somente uma possibilidade. Não só argumenta-se; além disso decide-se. A decisão não implica porém um abandono da razão. Tanto as regras do processo judicial quanto sua execução e seus resultados podem ser justificados e criticados racionalmente à luz dos três procedimentos prévios.

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* Traduzido a partir do original em alemão Diskurstheorie und Rechtssystem, publicado originalmente em Synthesis Philosoph- ica, 5, 1988, p. 299-310.

1 J. Habermas, Diskursethik – Notizen zu einem Begründungs- programm, in: J. Habermas, Moralbewußtsein und Kommunikat- ives Handeln, Frankfurt/M., 1983, p. 108.

2 Cf. R. Alexy, Die Idee einer prozeduralen Theorie der jur- istischen Argumentation, in: Rechtstheorie, Beiheft 2, 1981, p. 178 ss.

3 R. Firth, Ethical Absolutism and the Ideal Observer, in: Philo- sophy and Phenomenological Research, 12, 1952, p. 320 ss. 4 J. Rawls, A Theory of Justice, Cambridge/Ma., 1971, p. 121. 5 J. Rawls (nota 4), A Theory of Justice, p. 139.

6 R. Alexy, Theorie der juristischen Argumentation, Frankfurt/M., 1978, p. 234 ss.

7 Cf. R. Dworkin, A Matter of Principle, Cambridge/Ma.-London, 1985, p. 119 ss. A concepção de Dworkin inclui elementos da primeira, da segunda e da terceira teses aqui descritas. 8 Cf. R. Alexy (nota 6), Theorie der juristischen Argumentation,

p. 165 ss.

9 Cf. R. Alexy (nota 2), Die Idee einer prozeduralen Theorie der juristischen Argumentation, p. 185 ss.

10 I. Kant, Metaphysik der Sitten, in: Kants gesammelte Schriften, Königlich Preußischen Akademie der Wissenschaften, Bd. VI, Berlin, 1907/14, p. 312.

11 R. Alexy, Theorie der Grundrechte, Frankfurt/M., 1986, p. 223 s.

12 Sobre a tese do caso especial cf. R. Alexy (nota 6), Theorie der juristischen Argumentation, p. 263 ss.; N. MacCormick, Legal Reasoning and Legal Theory, Oxford, 1978, p. 272 ss.; M. Kri- ele, Recht und praktische Vernunft, Göttingen, 1979, p. 34; J. Habermas, Theorie des kommunikativen Handelns, Bd. 1, Frankfurt/M., 1981, p. 61 ss.

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