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Discussões políticas sobre o aborto

O aborto como tabu se apresenta como uma explicação ontológica, anterior a qualquer explicação humana. A condenação do aborto é algo que vem de Deus e não há quem vá contra Ele. No entanto, o que a Igreja Católica não revela para seus fieis é que nem sempre o aborto foi visto como um pecado repudiável como é nos dias atuais. Analisando documentos da hierarquia da Igreja sobre o assunto, Rosado (2012, p. 27 nos revela que:

Finalmente, em 1869, o Papa Pio IX adota explicitamente a teoria da personalização imediata, condenando qualquer aborto e em qualquer estágio da gravidez, determinando pena de excomunhão a quem quer que o praticasse. Essa condenação absoluta do aborto, historicamente muito recente, mantém-se como posição oficial da Igreja até os dias atuais.

A mesma autora afirma que ainda que, embora seja um tema polêmico, o aborto “não pode e não deve ser tratado como um dogma ou tabu”. Paixão (2006, p. 192) afirma que no século XIX “a prática da proibição do aborto expandiu-se por razões econômicas, já que sua prática nas classes populares podia representar uma diminuição da oferta de mão-de-obra, de suma importância para o bom êxito da Revolução Industrial”.

Ao colocar a discussão em termos de dogma religioso e tabu, os grupos pró-vida – que são formados por pessoas de outras denominações religiosas como evangélicos e espíritas, além de católicos – retiram qualquer possibilidade de mudança. Aquilo que Bakhtin (2006, p. 46) chama de “dialética interna do signo”, que faz com que haja disputa de significação sobre um termo, é descartado e os grupos pró-escolha – como as feministas – que buscam realizar esse debate são tratados com “desprezo condescendente” (CHAUÍ, 2000).

Um dos entraves para a discussão da legalização do aborto na sociedade tem uma raiz cultural. A relação maternidade-mulher traz consequências para a vida das mulheres, pois

uma parece ser indissociável da outra. A sacralização da maternidade e o mito do amor materno carregam consigo a impossibilidade de as mulheres de terem uma vida plena longe desses estereótipos.

A maternidade é entendida como a experiência-fim das mulheres, como se toda a sua vida estivesse voltada para o momento em que serão mães. Assim, o aborto representa a negação total de uma representação construída e que não condiz com a realidade. A relação mulher-mãe está naturalizada na sociedade ocidental, defendida pela Igreja Católica e representada ideologicamente nos meios de comunicação.

Sobre o mito da maternidade, Santos (2003, p. 256) afirma que “nossa cultura destaca gravidez, parto, amamentação, vínculo mãe-filho como momentos privilegiados da trajetória feminina em detrimento de outros e, em contrapartida, a experiência da maternidade ainda é percebida como meta precípua e inevitável para todas as mulheres”.

No Brasil, o aborto não só é proibido como é considerado crime. A discussão do aborto está associada à legislação sobre planejamento familiar, que tem como principal referência a Constituição de 1988, sendo tratado pelo Código Penal (CP). De acordo com o CP, que data de 1940, o aborto só pode ser realizado em dois casos: no caso de risco de morte da mãe e em caso de estupro. Depois do julgamento do Superior Tribunal Federal, em abril de 2012, o aborto em caso de fetos anencéfalos, passou a ser permitido.

Leis que visam retroceder o Código Penal de 1940 são uma constante no Congresso Nacional, colocando feministas e igrejas em campos opostos nesse debate. Levantamento feito por Rocha (2005) aponta que entre os anos de 1999 e 2004 foram apresentadas 11 propostas de leis de parlamentares ligados a setores religiosos com esse intuito, inclusive projetos que querem evitar o abortamento de mulheres e meninas vítimas de estupro.

Está posto que homens e mulheres não desfrutam dos mesmos direitos e que o artigo 5º da Constituição de 1988 que garante que “homens e mulheres são iguais, nos termos desta Constituição” não é praticado. Um dos motivos é a supremacia masculina no legislativo brasileiro, que implica em elaborações de leis que pouco ou de nenhum modo promovem a igualdade entre homens e mulheres. Num país machista, as desigualdades entre homens e mulheres são vistas como naturais.

Então, num cenário político que tem uma maioria de homens ocupando as cadeiras do Congresso Nacional – do total de 513 deputados, 45 são mulheres e das 81 vagas no Senado, apenas 12 são ocupadas pelo sexo feminino – e que não é percebido como problemático por quem detém o poder, o aborto não figura como direito, mas da ordem do pessoal. Com tamanha desigualdade de gênero entre os que ocupam o poder político, a

elaboração de leis androcêntricas é uma constante. E o aborto não é uma preocupação política, pois esse é um problema “que gera um impacto desproporcional sobre as mulheres, já que as afeta com intensidade incomparavelmente maior do que aos homens” (SARMENTO, 2006, p. 162).

A negação ao aborto não é só uma violência contra quem decide fazê-lo, mas um ultraje a todas as mulheres. Para Ardaillon (2005, p. 276), entender as discussões, argumentos e divergências dos variados atores sociais sobre o aborto ajuda a entender a democracia brasileira, pois expressam “os parâmetros sociais que as promovem”. Para a autora, os argumentos utilizados “revelam, sobretudo, a maneira pela qual o gênero (a construção social da desigualdade entre os sexos) cunha diferentemente a cidadania de homens e mulheres e, por isso mesmo, que tipo de modernidade e que grau de democracia a sociedade brasileira aceita”.

Da década de 1960 até o final da década de 1990 a preocupação dos legisladores esteve voltada para as discussões sobre o controle de natalidade. Durante esses 30 anos, o debate sobre a esterilização de mulheres foi o principal, dividindo-se entre aqueles que defendiam o controle de natalidade e os que se posicionavam contra. No entanto, esse foi um dos raros momentos em que feministas e Igreja estiveram no mesmo campo de atuação, embora se utilizassem de argumentos distintos. Enquanto os grupos pró-escolha defendiam a soberania da mulher e denunciavam políticas eugenistas – já que havia grande incidência de laqueadura em mulheres pobres –, os grupos pró-vida defendiam a sacralidade da vida intrauterina.

Um dos momentos marcantes da articulação entre vários grupos feministas foi a Constituição de 1988 e a pressão das feministas “que contemplou cerca de 80% das suas propostas, o que mudou radicalmente o status jurídico das mulheres no Brasil” (CARNEIRO, 2003, p. 117). Uma das importantes conquistas do movimento foi ter impedido a proposta que pretendia colocar o direito à vida desde a concepção em seu artigo 5º.

As discussões no Brasil entre grupos favoráveis e contra a legalização sempre estiveram pautadas em questões éticas e não políticas. Assim, o que é entendido como aceitável eticamente para feministas não o é para a Igreja Católica. Ou seja, ambos estão disputando a hegemonia de valoração de um mesmo signo. Rocha (2005, p. 153) afirma: “o que esteve sempre presente nessa discussão é uma questão de natureza ética a respeito da liberdade de decisão nessa área, situação em que há total discordância entre o pensamento oficial da Igreja católica e as ideias do movimento feminista”.

Feministas e a Igreja Católica, desde a década de 1980, principalmente no processo da Constituinte, se enfrentavam para o debate sobre a legalização do aborto. Enquanto o primeiro grupo defendia a autonomia e a decisão das mulheres sobre o assunto, o segundo tinha como eixo a defesa de que a vida se inicia na concepção. De acordo com Rocha (2005, p. 140), “trata-se da polarização em torno da questão ética referente a valorizar, ou não, a autonomia individual para decisões nessa matéria. Questão essa, a propósito que representa a principal tensão no debate sobre a questão do aborto”. Até o momento, o intenso debate entre grupos favoráveis e grupos contrários à legalização resultou positivo para o primeiro, ao passo que a lei foi ampliada com a decisão do Supremo Tribunal Federal ao permitir o aborto de fetos anencéfalos, em 2012.

O aumento do número de congressistas representando setores conservadores aumentou nos últimos anos. Ainda que professem religiões diferentes, os deputados da chamada “bancada pela vida” costumam atuar de maneira conjunta para impedir a votação de medidas favoráveis à legalização do aborto, ou temas igualmente polêmicos, como a união civil de homossexuais.

Sobre isso, Rocha (2005, p. 149) comenta:

Conforme já se anunciara, essa etapa (de 2003 a 2007) é caracterizada por uma acentuada presença de novos projetos originários de parlamentares vinculados a grupos religiosos e, só mais recentemente, recebeu algumas propostas, de algum modo, favoráveis ao direito de aborto.

Apesar do avanço, há diversas leis tramitando no Congresso Nacional que pretendem ou restringir ou endurecer a pena para mulheres que abortaram e profissionais de saúde que as auxiliaram. Levantamento feito por Rocha (2005) aponta que entre os anos de 1999 e 2004 foram apresentadas 11 propostas de leis de parlamentares ligados a setores religiosos com o intuito de restringir a legislação sobre o aborto. Entre eles, projetos que querem evitar o abortamento de mulheres vítimas de estupro.

De 1999 a 2007 foram apresentados apenas sete projetos que de alguma forma são favoráveis ao aborto, a maioria entre os anos de 2003 a 2007, coincidindo com o primeiro governo do ex-presidente Lula. O debate que se arrasta desde a Constituinte não provocou mudanças significativas na Constituição Federal ou no Código Penal, que está passando por reformulação. Um dos itens é a descriminalização do aborto, que deve seguir os parâmetros adotados no Uruguai em lei aprovada em 2012, que permite o aborto mediante laudo médico.