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Distinções entre os sistemas de conhecimentos e sistemas de crenças

CAPÍTULO 1 – O PARADIGMA DO PENSAMENTO DO PROFESSOR:

1.4 Distinções entre os sistemas de conhecimentos e sistemas de crenças

Robert Abelson (1979) afirma que entre um sistema de crenças e um sistema de conhecimento há vários pontos em comum, ao mesmo tempo em que coexistem, basicamente, características distintivas em relação a esses sistemas, embora tais distinções não sejam absolutas ou definitivas. No que se refere aos sistemas de crenças, destaca que:

 Geralmente contém representações de mundos alternativos, a realidade como ela é e como deveria ser; por exemplo, ideologias utópicas têm esse caráter;

 Possuem conotações avaliativas e afetivas. De um ponto de vista formal, os conceitos de “bom” ou “mau” podem ser tratados como categorias cognitivas, do mesmo modo que quaisquer outras categorias de um sistema de conhecimento. No que diz respeito ao aspecto cognitivo de uma crença, um indivíduo pode ter determinada relação com o comunismo que pode incluir sua compreensão da teoria marxista, por exemplo. As cognições mais decisivas são as crenças que

comportam um componente avaliativo, atribuindo qualidades favoráveis ou desfavoráveis, “boas” ou “más”, maneiras adequadas ou inadequadas de reagir em relação a um determinado objeto. O componente sentimento refere-se às emoções ligadas a esse objeto (agradável ou não, apreciado ou não)8;

 Incluem uma estrutura de experiências/materiais episódicos. A força de determinado acontecimento ou experiência pessoal é uma prova subjetiva de determinada crença que se tem a respeito de um objeto. De acordo com Pajares (1992), estudos empreendidos constataram que os futuros professores têm imagens de eventos passados relativos ao ensino, que funcionam como um crivo/“intuitive screens” por meio do qual toda nova informação é filtrada, influenciando na interpretação dos conhecimentos advindos dos cursos de formação e na determinação de práticas que possam assumir como professores. Esses episódios e imagens são importantes, segundo o mesmo autor, pois ajudam a explicar como os professores desenvolvem sua estrutura de crenças sobre o ensino, quando ainda são crianças e esta é uma questão de grande relevância para a formação do professorado;

 Não se pode traçar, exatamente, os limites em torno de um sistema de crença. Os conteúdos que podem ser incluídos são bem amplos, “abertos”;

 As crenças podem ter diferentes graus de certeza. Um crente pode ser extremamente comprometido com determinado ponto de vista e, por outro lado, pode considerar uma perspectiva ou um estado de coisas mais provável que outro. Por sua vez, esta dimensão de variação está ausente no sistema de conhecimento.

Dentre tais características, tem adquirido centralidade nos estudos teóricos desenvolvidos a ideia de que “(...) the ability of belief systems to stir and express the passions of believers is an essential feature not to be found in knowledge systems (ABELSON, 1979, p. 364). Também se destaca o pressuposto de que os sistemas de crenças são indicativos de potenciais e tendências de ação e são mais influentes do que os conhecimentos na determinação do modo como os indivíduos definem e organizam suas tarefas e atividade profissional. Afirma-se a estreita relação entre as crenças

8 Para uma descrição mais detalhada desses sistemas de crenças e de atitudes, ver KRECH, D.,

CRUTCHFIELD, R. S., BALLACHEY, E. L. 1969. O indivíduo na sociedade. Um manual de Psicologia Social. Primeiro volume. Tradução de D. M. Leite e M. L. M. Leite. São Paulo: Livraria Pioneira Ed.

educacionais e o planejamento do professor, suas decisões durante o processo de ensino em busca de soluções para os problemas educacionais com os quais se deparam. Igualmente se enfatiza o modo como as crenças dos professores em formação inicial têm uma importância central na aquisição e interpretação do conhecimento e, posteriormente, em suas condutas docentes (PAJARES, 1992; COELHO, 2004).

Pajares (1992), em um artigo de revisão e clarificação do conceito de crenças, ressalta o quanto é difícil fazer uma distinção entre conhecimento e crença. Cita Clandinin e Connelly, cujo estudo procurou esclarecer essa distinção, examinando as origens, usos e significados de aspectos do conteúdo do pensamento dos professores. Os resultados denunciam uma enorme variedade de termos, para além do utilizado na pesquisa (personal knowledge constructs) e a dificuldade para identificar os limites para estabelecer “onde o conhecimento termina e a crença começa”. Na verdade, os estudos analisados sugeriram que a maioria dos termos eram simplesmente palavras diferentes com significados idênticos.

Em contrapartida, Nespor (apud PAJARES, 1992), em tentativa similar à de Abelson (1979), aponta quatro características específicas das crenças:

 Componente afetivo e avaliativo;

 Estrutura episódica composta a partir da experiência, em contraposição à natureza do conhecimento semanticamente organizado e sistematizado em fatos gerais e princípios;

 Presunções existenciais: relativas a certezas pessoais incontestáveis sobre a realidade física e social, formadas por acaso, por intermédio de uma experiência intensa, ou por uma sucessão de acontecimentos, incluindo crenças sobre si mesmo e sobre como os outros são. “(...) Existential presumptions are perceived as immutable entities that exist beyond individual control or knowledge. People believe them because, like Mount Everest, they are there” (PAJARES, 1992, p. 309.);

 Alternatividade: realidades e mundos alternativos. Situações ideais diferindo significativamente das realidades presentes.

É importante destacar os alertas de Pajares quando faz referência às definições dadas por diferentes autores. Embora se possa dizer que o conhecimento é resultado cognitivo do pensamento e que a crença é resultado afetivo, é preciso considerar que

nesta última há um componente cognitivo, do mesmo modo que o conhecimento cognitivo também deve ter seu próprio componente afetivo e avaliativo. É errônea a concepção de conhecimento como algo mais puro do que a crença, mais perto da verdade ou falsidade de um determinado objeto e alheio a qualquer julgamento ou avaliação. A tentativa de distinguir crença de conhecimento não deve conduzir a uma visão mecanicista e dualista quando se tenta separar a cognição da afetividade.

Abelson (1979) e Nespor (apud PAJARES, 1992) também argumentam que os sistemas de crenças, ao contrário dos sistemas de conhecimento, não requerem consenso geral a respeito da validade e adequação de suas crenças. As crenças individuais não exigem a coerência interna dentro dos sistemas de crenças. Esta não-consensualidade implica também afirmar que os sistemas de crenças são mais inflexíveis, desenvolvem um sistema de representações estruturante de todas as crenças adquiridas ao longo do processo de transmissão cultural, são ilimitados e menos dinâmicos do que os sistemas de conhecimento, sempre submetidos à avaliação e crítica, mais definidos e receptivos à razão.

É interessante ressaltar que Coelho (2004), ao fazer uma revisão dos estudos acerca das crenças educacionais aponta que determinados autores consideram que a definição de crença como uma forma de pensamento remonta a Dewey (1979). Este autor afirma que há “(...) várias maneiras pelas quais os homens pensam” (p. 13). A mais adequada delas é chamada de pensamento reflexivo que consiste em “(...) um estado de dúvida, hesitação, perplexidade, dificuldade mental, o qual origina o ato de pensar” e, além disse, abrange “(...) um ato de pesquisa, procura, inquirição, para encontrar material que resolva a dúvida, assente e esclareça a perplexidade” (p. 22). Dentre outros processos mentais comumente chamados de pensamento destaca-se a crença. Para o autor,

(...) Uma crença refere-se a algo além de si própria, por onde se aquilata o seu valor: faz uma afirmação sobre algum fato, algum princípio ou lei. Significa que determinado fato ou lei é aceito ou rejeitado [...]. É desnecessário acentuar a importância da crença. Abrange todas as matérias do que não temos conhecimento seguro, mas em que confiamos o bastante para nelas basear a nossa ação; e, igualmente, as matérias aceitas como verdadeiras, como conhecimento, suscetíveis, todavia, de futuras indagações [...]. Tais “pensamentos” desenvolvem-se inconscientemente. São colhidos – não sabemos como. De obscuras fontes e por canais não percebidos, insinuam-se no espírito e tornam-se, inconscientemente, uma parte de nossa guarnição mental. São por eles responsáveis a tradição, a instrução, a imitação, que, todas, dependem, de alguma forma, de autoridade, ou atendem à nossa própria vantagem, ou coincidem com alguma forte emoção nossa. Tais “pensamentos” são preconceitos; isto é, prejuízos, não conclusões

alcançadas como resultado da atividade mental pessoal, observação, coleta e exame de provas. Mesmo quando acontece de serem corretos, sua correção é acidental no que se refere à pessoa que os tem (DEWEY, 1979, p.16-7).

Na definição da crença como um conceito importante na investigação do pensamento do professor, Zabalza (1994) faz referência a um estudo desenvolvido por Bauch que conceitua a crença como “(...) a informação que uma pessoa possui para vincular um objecto a algum atributo esperado; a crença está normalmente em inter- relação com uma dimensão de probabilidade subjectiva ou conhecimento” (in Zabalza, 1994, p. 41). Também o autor reconhece a existência de diferentes componentes nesse tipo de pensamento do professor, a saber, o conteúdo, a orientação e a estabilidade. Em relação ao primeiro admite-se que as crenças referem-se a diversos conteúdos e podem variar em função deles, ou seja, o professor mantém diferentes crenças relativas a aspectos como os materiais de ensino, as matérias e os alunos. Quanto à orientação, considera-se o modo como as crenças variam e influenciam de diversos modos o comportamento dos professores, podendo ser sobretudo prescritivas (“devo ir para a sala antes que o sinal toque, ou então meus alunos terão posto a sala em completa desordem”; avaliativas (“eu não gosto de ensinar matemática”) e orientadoras (“agora é a hora da aula de ciências”). Por fim, a estabilidade diz respeito à menor ou maior interiorização da crença pelo docente e correspondente maior ou menor vulnerabilidade à mudança. Quanto mais antiga for uma crença, mais difícil é mudá-la, por conseguinte, esta mudança nos adultos é um fenômeno mais raro.

De acordo com Pajares (1992), Rokeach definiu crenças como qualquer proposição simples, consciente ou inconsciente, inferida a partir do que uma pessoa diz ou faz e capaz de ser procedida pela frase, “eu acredito que ...”. Quando as crenças são organizadas em torno de determinado objeto ou situação e ativadas quando é necessária a tomada de decisões para a ação, podem tornar-se uma atitude. Do mesmo modo, podem tornar-se valores, abrigando as funções de avaliação, comparação e julgamento das crenças. Nessa perspectica, crenças, atitudes e valores formam o sistema de crenças de um indivíduo e têm uma função adaptativa para ajudá-lo a definir e compreender a si mesmo, aos outros e ao mundo.

Embora o estudo das crenças educacionais tenha se legitimado como um campo de investigação, por outro lado tem sido apontado como um domínio excessivamente vasto. Em razão disso, Coelho (2004) identifica autores que definem categorias específicas de crenças para restringir e limitar objetos de estudo. Calderhead (apud

COELHO, 2004) distingue cinco categorias: crenças acerca dos alunos e da aprendizagem; crenças sobre o ensino; crenças acerca das áreas de conteúdos ou matérias; crenças sobre como se aprende a ensinar; e crenças a respeito de si próprio e do papel do professor na aprendizagem. Também Pajares (1992), distingue as crenças educacionais em crenças acerca da confiança na possibilidade de afetar positivamente o desempenho dos alunos (eficácia do professor), sobre a natureza do conhecimento (crenças epistemológicas), sobre as causas do desempenho dos professores ou dos alunos, acerca das percepções e sentimentos de valor pessoal (autoconceito, autoestima) e acerca da confiança para desempenharem tarefas específicas (autoeficácia).

Com relação à presente pesquisa, a elaboração dos instrumentos para a coleta de dados procurou estabelecer indicadores de crenças e conhecimentos relativos à profissão docente, ao ser professor, aos procedimentos de organização do trabalho em classee aos conteúdos específicos das matérias que compõem o currículo escolar das séries iniciais do Ensino Fundamental.