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PARTE II Revisão Bibliográfica

3.5. Produtivismo Acadêmico

3.5.3. Do controle histórico das profissões à autonomia relativa

Há séculos a organização da sociedade é baseada em segmentos de afinidade profis- sional. Já na antiga Roma, cerca do século VII a.C., o rei Numa Pompílio instituiu, entre outras organizações de ofícios, o Colégio de Construtores. Ao Estado monárquico romano coube sua normalização e controle, desse modo, as profissões técnicas e artísticas tiveram sua primeira regulamentação. Fica evidente o reconhecimento do interesse social e governamental que estas profissões ofereciam, bem como a necessidade dos governos em disciplinar seu exercício. Todavia, embora reguladas pelo Estado, sua organização e

65 funcionamento se davam de maneira corporativa e autônoma. Este modelo de organização social também se fez presente na Idade Média. Em certos países europeus, associações que agregavam pessoas com interesses comuns (comerciantes, artistas, artesãos, etc.) e com o propósito de oferecer assistência e segurança aos seus membros, eram denominadas “guildas” (PUSCH, 2011, p. 6).

Com efeito, nas comunas medievais, uma associação de indivíduos que exerciam a mesma atividade profissional, monopolizava a arte ou ofício e, consequentemente, a produção. A atividade profissional era transmitida por via familiar e havia uma relação hierárquica paternalista entre o “mestre” chefe da empresa, e o aprendiz dependente (BOBBIO, 1998, p. 287).

No Brasil, desde os tempos coloniais, as profissões são normalizadas pelo governante, quer seja ele o rei, o imperador ou a república democrática ou a ditatorial (PUSCH, 2011, p. 34), todas praticaram o modelo corporativista objetivando o controle profissional e com vistas à sua utilidade social e econômica.

As profissões, hoje, são praticadas livremente, porém regulamentadas por lei, demonstrando a permanente tutela do Estado sobre sua prática. Da mesma forma, uma organização profissional é teoricamente livre, desde que observados alguns requisitos legais consoantes aos objetivos que o Estado impõe, e segundo o que ele denomina ser interesse da sociedade e da nação (PUSCH, 2011, p. 7). Historicamente, quem estabeleceu o atual sistema de controle das profissões foi o governo Vargas, na década de trinta. Hoje, a maioria das profissões de nível médio e superior está regulamentada e existe o poder executivo que é responsável por fiscalizar cada uma delas.

Ao regulamentar uma profissão, o Estado cria imediatamente uma autarquia que a fiscalizará. A autarquia é uma forma de controle que intermedia o controle direto do poder executivo federal e o autocontrole corporativo. Assim, a autarquia exerce o poder de polícia sobre o exercício profissional, mas via legislação profissional, e por delegação do Estado. O sistema autárquico é comum hoje no Brasil e sua inspiração vem da Itália do período fascista. Conforme a profissão a autarquia denomina-se Ordem ou Conselho Regional. A autarquia que regulamenta as profissões de engenharia, arquitetura, agronomia, geologia, geografia, meteorologia, e profissões afins, por exemplo, é o CREA – Conselho Regional de Engenharia e Agronomia. O CREA é a autarquia que controla o maior número de profissões, chegando este a ser responsável por centenas de títulos (PUSCH, 2011, p. 34).

66 Mas há outros Conselhos de Fiscalização das profissões muito reconhecidos como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Conselho Regional de Enfermagem do Rio de Janeiro (COREN), Conselho Regional de Serviço Social (CRESS), o Conselho Regional de Administração (CRA), o Conselho Regional de Odontologia (CRO), o Conselho Regional dos Corretores de Imóveis (CRECI), entre outros (INÁCIO, 2002).

Ao oposto desta regulamentação governamental, temos o que se denomina autonomia, conceito, que segundo Bobbio (1998, p. 88) quer dizer autogoverno. Tourinho e Palha (2014, p. 282) corroboram a conceituação ao explicar que as universidades, pela Carta Constitucional, desfrutam da faculdade de se governar por si mesmas; elas têm o direito de ter a sua liberdade ou independência moral e intelectual.

Inácio (2002), então advogado componente da Assessoria Jurídica da ADUSP (Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo) no ano de 2002, traz à memória a inexigibilidade de inscrição em conselho profissional para exercício de cargo de docente em universidade estadual ou federal: “As Instituições de Ensino Superior (IES) não se sujeitam à fiscalização das Autárquicas Corporativas, sobe pena de violação ao princípio da Autonomia das Universidades, de cunho Constitucional e precisa definição da Lei- CF88. Art. 207, Lei 5.540/68, art. 3º”. Todavia, Inácio não citou que o artigo 3º da lei 5.540 de 1968: “As universidades gozarão de autonomia didático-científica, disciplinar, administrativa e financeira, que será exercida na forma da lei e dos seus estatutos” foi revogado e, em seu lugar, pode-se atribuir o parágrafo 1º do artigo 54 da lei 9.394 de dezembro de 1996 (LDB), onde se prevê certa autonomia didático-científica (art. 53 Parágrafo único) e financeira (art. 54, § 1º), mas não disciplinar e administrativa. Ambas as

autonomias sempre concedidas “dentro dos recursos orçamentários disponíveis”, “em

conformidade com as normas gerais concernentes” e “de acordo com os recursos alocados pelo respectivo Poder mantenedor e se aprovado por ele” [grifo da autora].

E no artigo 46 da mesma lei, lê-se que a autorização e o reconhecimento de cursos da educação superior, bem como o credenciamento destas instituições, terão prazos limitados, sendo renovados, periodicamente, após processo regular de avaliação.

A CAPES, por ser uma fundação do Ministério da Educação (MEC), ou seja, um órgão do governo, e por ser ela que valida com suas notas se um curso de pós-graduação pode ou não ser admitido no Sistema Nacional de Pós-graduação (SNPG), bem como um curso já existente ter seu desempenho aprovado ou não, faz dela um órgão representativo dessas instituições e de uma determinada categoria de profissionais – os docentes.

67 O problema tem sido que esta representatividade (representar politicamente os interesses de determinado grupo) pode não estar a contento do grupo de principal interesse no método de avaliação da CAPES – os professores.

Uma política pública acaba por implicar em uma forma de regulação e está associada ao tipo de administração do Estado (MELLO e LUCE, 2011, p. 7). A regulamentação inclui o sistema educativo e tem por função trazer equilíbrio, coerência e transformação, devendo ser entendida como modo de coordenação desse sistema. Compreende não só a produção de regras que orientam o funcionamento de um sistema, mas o ajuste de suas finalidades e modalidades em função da diversidade de ações dos atores, de interesses e estratégias. O Estado não é a única fonte essencial de regulação do sistema público de educação, a regulação envolve outros agentes sociais e educacionais, como os professores e os pais (IBID., p. 8).

Isto mostra que o processo flexível de regulamentação profissional envolve todos os campos trabalhistas, mas repercute intensamente no sistema educacional. O paradoxo que se observa está na limitada ou quase nula participação das Associações e Conselhos das profissões regulamentadas nas respectivas políticas de formação profissional. Apesar dos Conselhos Regionais exercerem seu controle sobre todas as profissões também seguindo uma lógica capitalista, pelo setor acadêmico não possuir Conselhos que o regem com vigor, suas normas são conduzidas burocraticamente pelo Estado, através do MEC e seu Conselho Federal de Educação. Frigotto (2009, p. 156) explica que o Estado neoliberal, preposto no mercado, se desfaz até mesmo de suas obrigações constitucionais. Com funções prescritivas e normativas sobre o sistema escolar, é o MEC e o CFE que cuidam do reconhecimento de cursos existentes e autorização de abertura de cursos novos das instituições até a definição dos currículos mínimos e outros controles formais que sustentam a estrutura corporativa das profissões, das escolas e da própria educação universitária.

Mesmo sob o princípio da autonomia, as pós-graduações têm sido fiscalizadas pela CAPES. Por isso cabe chamar esta autonomia de “relativa”. Sobre esta questão, importante retornar à lei 9.394/96 no artigo 9º, onde é possível ler:

Artigo 9º A União incumbir-se-á de: VIII - assegurar processo nacional de avaliação das instituições de educação superior, com a cooperação dos sistemas que tiverem responsabilidade sobre este nível de ensino; [...] IX - autorizar, reconhecer, credenciar, supervisionar e avaliar, respectivamente, os cursos das instituições de educação superior e os estabelecimentos do seu sistema de ensino (BRASIL, 1996).

68 Este artigo auxilia a ratificar que a lei 9.394/96 sobrepujou a Constituição Federal de 1988 no que tange à autonomia das universidades. Segundo alguns autores não pode existir autonomia relativa, ou há autonomia, ou não há. Sendo assim, Sguissardi (2006, p. 65) traz o conceito de heteronomia ou ingerência – a universidade não seu autogoverna, mas submete-se ao Estado mantenedor que opera cada vez mais sobre a lógica mercantil e aos interesses empresariais privados. Segundo o autor, a universidade nunca foi autônoma.

Felizmente, constata-se hoje uma tendência favorável ao rompimento deste modelo fiscalizador e têm ocorrido muitos debates sobre o assunto, pois cresce a preocupação com o rebaixamento do nível qualitativo dos cursos superiores (MARTINS, 1990, pp. 28-29).

Todavia, talvez o dilema maior seja o professor aceitar esta lógica, por ela já estar tão internalizada no meio acadêmico. Os motivos a que muitos docentes estão acolhendo o produtivismo são historicamente determinados, sob uma velada escolha espontânea. Tem- se então outro tipo de autonomia, a autonomia consentida. Parece existir uma obediência cega a esse sistema neoliberal de pensar e fazer a educação. Nele, professores desconsideram colegas que reduziram seu nível de produção e substituem-no por outro docente „mais produtivo‟. Este professor não percebe que, enquanto ser humano, também pode se cansar ou adoecer. E o mais grave talvez seja o que expôs Sguissardi (2009, p. 55), que os jovens que têm se doutorado a partir de 1997, após a implantação do atual Modelo CAPES de Avaliação, se adaptam e aderem ao produtivismo acadêmico e à competitividade entre pares de forma deliberada e naturalizada. O número de doutores com este perfil – professor produtor de resultados e pesquisador de estudos efêmeros – se expandiu. Tem interessado a estes novos doutores apenas a posição que ocupam dentro da sua área, medida de forma quantitativa.