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3. NORMA GERAL ANTIELISIVA E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

3.1 Fundamentos da Norma Geral Antielisiva

3.1.1 Doutrina do abuso das formas jurídicas

O Código Civil de 2002 tratou de distinguir as diversas espécies de atos jurídicos, antes genericamente tratadas no Código Civil de 1916, dentre as quais está o negócio jurídico tido como “declaração de vontade privada destinada a produzir efeitos que o agente pretende e o direito reconhece. Tais efeitos são a constituição, modificação ou extinção de relações jurídicas, de modo vinculante, obrigatório para as partes intervenientes”.46

Washington de Barros Monteiro esclarece que a principal característica do negócio jurídico é ser um ato de vontade para a obtenção de um fim pretendido fundado em direito, ou seja, lícito. “Se se arreda da lei, ou a infringe, passa a ilícito. Embora deste advenham também consequências jurídicas, só pode ser incluído entre os fatos jurídicos”. 47

46 AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 4ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 359-360.

47 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: parte geral. 42ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.

O artigo 104 do Novo Código Civil trata do negócio jurídico, condicionando sua validade à existência de três pressupostos: (i) agente capaz; (ii) objeto lícito, possível, determinado ou determinável; (iii) forma prescrita ou não defesa em lei. Porquanto a forma seja requisito de validade do negócio jurídico, o artigo 107 do mesmo diploma legal insculpiu o princípio da liberdade de formas no ordenamento jurídico brasileiro:

Art. 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.

A forma é o meio de revelação da vontade, cuja inobservância levará à nulidade do ato que exija forma especial. Na sua maioria, entretanto, os negócios jurídicos são informais, prevalecendo o consensualismo e a liberdade das partes elegerem a melhor forma a revestir o negócio jurídico.

Partindo dessa idéia de meio de declaração de vontade, a doutrina criou a teoria do abuso da forma jurídica para legitimar as normas gerais antielisivas. Para essa teoria, o contribuinte, ao eleger forma inusual para realização de negócio jurídico com o fito de economia fiscal, declara uma vontade ilícita, qual seja, atingir fins que não se harmonizam com a causa negocial. Ivo César Barreto de Carvalho resumiu bem os liames dessa teoria:

Consiste a teoria do abuso de forma na utilização de uma forma jurídica, mesmo que lícita, mas que tenha por finalidade causar lesão a terceiros, no caso o Estado. Para os defensores desta doutrina, a Fazenda Pública não pode ser lesada quando o contribuinte realiza um ato ou celebra um negócio com base numa forma jurídica que resulta no não-pagamento do tributo ou no pagamento de uma carga tributária menor. Para estes doutrinadores, no caso, o contribuinte praticou um ato com abuso de forma, devendo sofrer tributação mais justa, como se houvesse praticado aquele fato jurídico tributário. 48

A doutrina do abuso das formas jurídicas foi primeiramente consagrada no §6º da Lei de Adaptação Tributária da Alemanha de 1934 (Steueranpassungsgesetz), convertido no artigo 42 do atual Código Tributário Alemão que dispõe:

§42: A lei tributária não pode ser fraudada através do abuso de formas jurídicas. Sempre que ocorrer abuso, a pretensão do imposto surgirá, como se para os fenômenos econômicos tivesse sido adotada a forma jurídica adequada.

Nos Estados Unidos, referida teoria ficou conhecida como a doutrina da substância sobre a forma, tendo surgido no caso “Gregory vs. Helvering” de 1935. Na concepção norte-americana, o intérprete e o aplicador da lei poderão determinar se os fatos

enquadram-se ou não no regime jurídico da lei tributária, de acordo com o uso abusivo ou não das formas jurídicas.

Interessante anotar a observação histórica feita por João Dácio Rolim quanto o não-acolhimento dessa doutrina no Reino Unido, país também adotante do sistema do common law. Explica o autor que no caso clássico do “Duke of Westminister vs. Inland Revenue Comissioners”, em 1935, a House of Lords rejeitou a doutrina em tela, assegurando ao Duke of Westminister o direito de organizar seus negócios da forma que melhor lhe aprouvesse fiscalmente. O contribuinte inglês, ao contratar um jardineiro, fazia seu pagamento como se fosse um prestador de serviços, o que possibilitava a dedução dos valores no imposto de rendo do duque, forma negocial esta considerada válida pela Casa dos Lordes, apesar de não usual. 49

No Brasil, Amílcar de Araújo Falcão era um entusiasta dessa teoria, considerando o eminente jurista o seguinte:

Em Direito Tributário, autoriza-se o intérprete, quando o contribuinte comete um abuso de forma jurídica (‘Missbrauch Von Formen und Gestaltungsmöglichkeiten dês bürgerlichen Rechts’), a desenvolver considerações econômicas para a interpretação da lei tributária e o enquadramento do caso concreto em face do comando resultante não só da literalidade do texto legislativo, mas também do seu espírito da mens ou ratio legis,

Para que tal aconteça, é necessário que haja uma atipicidade da forma jurídica adotada em relação ao fim, ao intento prático visado. 50

A despeito das valiosas opiniões a favor da teoria do abuso de formas, entendemos que essa orientação vai de encontro com todo o ordenamento jurídico brasileiro, senão vejamos.

Nos termos do parágrafo primeiro do artigo 113 do Código Tributário Nacional, a obrigação tributária surge com a ocorrência do fato gerador, o qual foi definido como “a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência” (art. 114 do CTN). Portanto, o Codex consagrou os princípios da reserva legal e da tipicidade fechada, ou seja, a obrigação tributária é ex lege, só nasce se efetivamente ocorrer o fato gerador do tributo tal como definido em lei. Dessa forma, se a conduta do contribuinte não se subsumir à descrição legal, não haverá a incidência da norma tributária, logo, não existirá imposto a ser pago.

49 ROLIM, João Dàcio, op. cit. 2001, p. 145.

Não há, no ordenamento jurídico brasileiro, um dispositivo legal que proíba o contribuinte de praticar o chamado “negócio jurídico indireto” para evitar a aplicação da lei tributária mais onerosa que corresponda ao negócio jurídico ordinário. Conforme leciona Alberto Xavier, “a característica essencial do negócio indireto está na utilização de um negócio típico para realizar um fim distinto do que corresponde à sua causa-função: daí a referência dos autores ao seu caráter ‘indireto’ ou obliquo, anômalo ou inusual”. 51

O contribuinte, ao praticar o negócio jurídico indireto, não está infringindo qualquer norma legal, ao contrário, o próprio ordenamento lhe faculta o direito a eleger a forma do negócio a ser celebrado (art. 107 do CC/2002). O negócio jurídico indireto nada mais é do que um negócio típico com fins diversos do usualmente alcançados, mas que foram pretendidos pelas partes. O que a lei tributária proíbe é o negócio simulado, ou seja, aquele que é realizado para ocultar, sob determinada aparência, outro negócio realmente querido pelas partes.

Com efeito, o fato de um negócio ter uma forma atípica não significa que seja ilícito ou que tenha sido necessariamente realizado com abuso de direito. De fato, há uma tênue linha dividindo o negócio indireto e o simulado, sendo certo que a intenção fraudulenta é que irá determinar a simulação do negócio o que só poderá ser verificado na análise de cada caso especificamente. Nenhuma lei pode pretender qualificar um negócio indireto como ilícito aprioristicamente, sem uma análise profunda da realidade de cada caso.

Oportunas são as lições do mestre Luciano Amaro a respeito da tese do abuso de formas no ordenamento brasileiro:

O abuso de forma consistiria na utilização, pelo contribuinte, de uma forma jurídica atípica anormal ou desnecessária, para a realização de um negócio jurídico que, se fosse adotada a forma “normal”, teria um tratamento tributário mais oneroso. (...) Já a simulação seria reconhecida pela falta de correspondência entre o negócio que as partes realmente estão praticando e aquele que elas formalizam. As partes querem, por exemplo, realizar uma compra e venda, mas formalizam (simulam) uma doação, ocultando o pagamento do preço. (...)

A teoria do abuso de forma (a pretexto de que o contribuinte possa ter usado uma forma “anormal” ou “não usual”, diversa da que é “geralmente” empregada) deixa ao arbítrio do aplicador da lei a decisão sobre a “normalidade” da forma utilizada. Veja- se que o foco do problema não é o da legalidade (licitude) da forma, mas o da “normalidade”, o que fere, frontalmente, os postulados da certeza e da segurança do direito. 52

51 XAVIER, Alberto, op. cit., 2002, p. 59.

Desta forma, a teoria do abuso de forma não teve receptividade no ordenamento jurídico brasileiro, não podendo ser aplicada em face dos princípios constitucionais da legalidade e tipicidade, responsáveis por trazer segurança jurídica às relações entre cidadão/contribuinte e Estado/fisco.

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