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3. NORMA GERAL ANTIELISIVA E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

3.1 Fundamentos da Norma Geral Antielisiva

3.1.3 Doutrina do abuso de direito

Um dos pilares do direito romano que influenciou diversos ordenamentos, dentre os quais o brasileiro, é o entendimento de que não há ilicitude em praticar-se ato no exercício

56 BECKER, Alfredo Augusto. op., cit., p. 139-140.

de um direito reconhecido, resumido no brocardo romano qui suo iure utitur, neminem laedit (quem usa seu direito, não prejudica ninguém). Tal máxima perdurou arreigada por muito tempo entre os pensadores e juristas, até que Cícero observou que a regra romana não seria absoluta, pois nem sempre a aplicação literal da lei siginificará justiça, ou seja, o direito aplicado com extremo rigor pode ser muito injusto (summum jus, summa injuria). A partir daí, surgiu a doutrina do abuso de direito como uma reação ao individualismo exarcerbado do pensamento jurídico reinante até o século XVIII, considerando que todo ato praticado no exercício não regular de um direito será ilícito.

Em outras palavras, o abuso de direito existirá quando o ato jurídico praticado ultrapassa as fronteiras do exercício regular do direito, embora aparentemente legitimado pelo ordenamento. Entretanto, a visualização do que seja abuso de direito ainda é inconsistente. Washington de Barros Monteiro destaca três vertentes doutrinárias que buscam conceituar referido instituto:

Mas em que consiste o abuso do direito? É questão sobre a qual não existe uniformidade de vistas. Para uns, seu elemento caracterizador repousa na intenção de prejudicar. Todas as vezes em que o titular exercite um direito movido por esse propósito subalterno, configurado estará o abuso do direito.

Para outros, o critério identificador reside na ausência de interesse legítimo. Se o titular exerce o direito de modo contrário ao seu destino, sem o impulso de um motivo justificável, verificar-se-á o abuso dele.

Finalmente, para outros ainda, esse abuso existirá sempre que anormal ou irregular o exercício do direito. Se alguém prejudica outrem, no exercício do seu direito, fica adstrito a reparar o dano, se anormal ou não regular esse exercício. É a mesma teoria da responsabilidade civil fundada na culpa, abraçada pelo nosso Código.58

A figura do abuso de direito visa coibir práticas que resultem numa distorção no equilíbrio da relação negocial entre as partes, através do uso de prerrogativa para atingir finalidade disversa daquela para qual foi criada ou pela distorção de sua função, impedindo que a lei incida sobre aquele fato sem qualquer justificativa. Nesse sentido, o legislador brasileiro aprovou regra específica a esse respeito, traduzida no artigo 187 do novo Código Civil Brasileiro, in verbis:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes

No campo do direito civil, a noção de abuso de direito atingiu sua plenitude, segundo o ilustre civilista Silvio Rodrigues, com a concepção de Josserand, de acordo com o qual haverá abuso de direito sempre que ele não for exercido de acordo com a finalidade social segundo o qual foi concebido, tendo em vista que os direitos são conferidos ao homem para serem utilizados conforme o interesse coletivo, respeitando-se sua finalidade e seu espírito.59

Na seara tributária, a teoria do abuso de direito nasceu na França, como informa Célio Armando Janczeski, citando Hermes Marcelo Huck:

O Livre de Procédurwa Fiscales, a lei tributária francesa, reconhece em seu art. 64 duas práticas distintas, consideradas como abusivas, o abuso por simulação de forma jurídica e o abuso de direito por fraude à lei. Os atos e contratos simulados ou fraudulentos são impossíveis pelo Fisco, porém os efeitos do abuso de direito circunscrevem-se à aplicação da lei tributária, a validade dos atos civis praticados pelos particulares não é afetada, salvo decisão judicial que analise os aspectos não tributários. (...) O Conseil d’Impôts, órgão do Fisco francês, define a evasão como prática criminosa deliberada, consistente em sonegar parte ou a totalidade de receitas ou despesas que deveriam ser declaradas ao Fisco pelo contribuinte. (...) O Conseil

d’Impôts tem considerado alguns casos elisivos como legais, admitindo a economia

tributária, desde que não fiquem caracterizadas práticas de abuso de direito propriamente ditas, ou abuso de direito de forma jurídica, hipóteses em que o procedimento passa a ser julgado evasivo. 60

Das lições exaradas por Marcelo Huck, podemos inferir que a teoria do abuso de direito nada mais é do que um desdobramento da interpretação econômica. Classicamente, essa teoria considera abusiva, portanto ilícita, a conduta do contribuinte que vise exclusivamente à economia de imposto, o que levaria ao uso imoral do direito. Klaus Tipke modernizou esse pensamento, reconhecendo que os contribuintes tem o direito de se organizarem, utilizando meios negociais adequados previstos pelo direito privado. No entanto, observa Tipke, o contribuinte não poderá abusar no exercício desse direito, utilizando-se de meios inadequados para realizar negócios, prejudicando assim direitos de terceiros, entre os quais está o Estado. Para o referido jurista, a partir do abuso do direito, nascerá para o Fisco o

59 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, v. 1- Parte Geral. 32ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 140.

60 HUCK, Hermes Marcelo apud JANCZESKI, Célio Armando. Planejamento Tributário e o negócio jurídico

indireto, simulação, dissimulação, abuso de forma e abuso de direito. In Peixoto, Marcelo Magalhães

direito de aplicar a analogia para fins de tributação do fato revelador de idêntica capacidade contributiva.61

No Brasil, o grande defensor do pensamento de Klaus Tipke é o renomado autor Marco Aurélio Greco, cujos ensinamentos buscam legitimar a cláusula antielisiva na desconsideração de atos praticados com abuso de direito, fundamentado nos princípios da capacidade contributiva, isonomia e solidariedade.

Considera Greco que o direito do contribuinte de se organizar não pode ser interpretado de forma absoluta, ou seja, o planejamento fiscal não será lícito se os atos praticados por este tiverem como único fim a economia de tributos. Para Greco, o ato de pagar imposto está ligado à solidariedade com os cidadãos menos abastados economicamente, considerando assim que o princípio da capacidade contributiva vincula-se à aptidão daquele cidadão que tenha mais meios de arcar com as despesas públicas, contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa. Caso não seja coibida a prática evasiva com base no abuso de direito, o princípio da isonomia restaria desrespeitado, pois “havendo idênticas manifestações econômicas de capacidade contributiva, se um contribuinte se furtar ao pagamento de imposto, ainda que licitamente, estar-se-á comprometendo o princípio da igualdade”.62

Desta forma, conforme o citado doutrinador, os atos praticados por particulares que resultem do uso abusivo do direito de auto-organização dos seus negócios não serão oponíveis ao Fisco, mesmo que sejam formalmente válidos, para que se assegure a eficácia dos princípios constitucionais da capacidade contributiva e da isonomia fiscal.

O pensamento de Greco será mais bem compreendido com a transcrição de um interessante exemplo de abuso de direito presente em sua obra Planejamento Fiscal e a Interpretação da Lei Tributária:

Na França foi criada uma figura, por lei, que se chamava de adoção simples porque se exigia um menor número de requisitos para que as pessoas pudessem ser adotadas. A finalidade era facilitar as adoções. Colocou-se como um dos requisitos que o adotante fosse mais velho que o adotado, mas não especificou (exatamente porque queria facilitar e agilizar a adoção) se podia ser uma pessoa de 22 com uma de 14 anos e assim por diante. O que aconteceu? Masson cita dois casos que foram

61 TIPE, Klaus apud Alberto Xavier op. cit., 2002, p. 102-103. 62 GUTIERREZ, Miguel Delgado. op. cit., 2006, p. 174.

levados aos Tribunais nos quais o exercício do direito de adoção foi considerado abusivo, porque se tomou a adoção como instrumento para viabilizar casais incompatíveis; o primeiro foi o caso de um senhor de 75 anos de idade que adotou a concubina de 25 anos, porque com isto asseguraria direitos hereditários. Ele não poderia casar com a concubina e usou a adoção para obter certo fim que é próprio do casamento; isto foi detectado e gerou um processo. O segundo caso que ele cita é de um casal de homossexuais em que o mais velho adotou o mais moço para assegurar também direitos patrimoniais.

Qual é a relevância dos exemplos? Quando se fala em adoção, imediatamente pensamos numa figura de proteção de uma criança, um carente, um órfão; mas quando se começa a enxergar apenas a figura legal e se procura dizer que há um “direito de adotar” pelo qual é possível com isso assegurar um direito hereditário para uma pessoa mais moça (a figura que estava na lei), ao exercer o direito de adotar o agente pode estar agindo contra o seu perfil objetivo e ai vai ser declarado o abuso no exercício do direito. (grifos no original) 63

A inovação da tese de Greco encontra-se na atribuição de eficácia positiva da capacidade contributiva, não sendo apenas um limite negativo à tributação. Em resumo, para Greco, “a lei tributária alcança o que objetivamente prevê, mas não alcança apenas isto, alcançando, também, aquilo que resulta da sua conjunção positiva com o princípio da capacidade contributiva”. 64

O grande problema da aplicação da teoria do abuso de direito na seara tributária é que ela conduz ao subjetivismo incompatível com os princípios da legalidade e da tipicidade, garantidores, em último grau, da segurança jurídica. Tal teoria dará poderes ao Executivo – representado na figura do agente fiscal – de perquirir quanto aos motivos da conduta negocial dos contribuintes, se são adequados em sua concepção. Ora, o interesse do Fisco é arrecadar o máximo de dinheiro possível, então até que ponto esse interesse influenciaria na sua decisão em considerar abusivo ou não o negócio jurídico praticado pelo contribuinte?

Nesse sentindo, mister destacarmos os ensinamentos de Alberto Xavier, para o qual a teoria do abuso de direito pressupõe igualdade de direitos entre Fisco e contribuinte, o que não ocorre na realidade tributária. Na verdade, as relações entre o contribuinte e o Fisco não são paritárias, nem este é titular de direito subjetivo suscetível de ser lesado por àquele. “As relações entre indivíduo Estado são relações entre “administrados” e titulares de poderes

63 GRECO, Marco Aurélio. Planejamento fiscal e interpretação da lei tributária. São Paulo: Dialética, 1998,

p. 80.

de autoridade, sendo por conseguinte relações, não entre direitos subjetivos, mas entre liberdades e competências ou poderes funcionais.”65

Portanto, não há fundamento que albergue a utilização de institutos do direito civil, como o abuso de direito, para tornar ineficazes negócios praticados, com o único fundamento de que feriram o ‘direito’ do Fisco de tributar, ao escolher forma negocial menos onerosa para o contribuinte. A intenção elusiva, segundo Heleno Torres, seria a única razão para requalificação do negócio jurídico a fim de ser tributado como originalmente deveria ser. “Daí que a fazenda não precisa se socorrer de tipos como ‘abuso de direito’, ‘fraude à lei’ ou similares. Basta alegar o prejuízo, capitaneado pelo conceito de ilícitos atípicos e justificado pelo ‘dolo’, para ter em seu favor autoridade para desconstituir um determinado ato ou negócio”. 66

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