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E viva os livros, porque é a coisa que eu mais gosto, depois de Deus. (Carolina Maria de Jesus)

O reporter desembrulhou os livros e deu-me um. Fiquei alegre olhando o livro e disse:

– O que eu sempre invejei nos

livros foi o nome do autor. E li meu nome na capa do livro.

(...) Fiquei emocionada. (...) é preciso gostar de livros para sentir o que eu senti (...). fiquei tão emocionada que não dormi.

A segunda parte desta tese consiste na transcrição do romance Dr. Silvio, que se encontra microfilmado nos rolos de inéditos. Além de transcrever, a proposta é fazer uma edição crítica do romance. Antes, é preciso discutir um pouco sobre o conceito de edição crítica e relatar como se deu o trabalho de transcrição/edição de Dr. Silvio.

Para o Dicionário do livro uma edição crítica é

edição feita através de composição tipográfica com aparato crítico do editor ou outro inserto no texto, com inclusão de sinais (colchetes, parênteses, reticências, etc.), que marcam a intervenção levada a cabo no original. É comentada com notas que assinalam variantes de cópias do original ou esclarecem passagens obscuras do texto. As duas primeiras fases deste trabalho consistem no levantamento e na colocação dos testemunhos manuscritos. Deste modo, procura restabelecer-se o texto original do autor ou a sua melhor versão, acompanhada de um aparato descritivo, explicativo e crítico; edição com notas críticas (2008, p. 266).

Diferente, portanto, da edição comentada, a edição crítica é marcada pela leitura

dos manuscritos do autor, numa apresentação deles em sua “melhor versão”, ao lado de

notas explicativas sobre o texto e eventuais intertextos, além da explicitação dos

“bastidores” da edição junto aos originais.

Segundo José Américo Miranda, em “Edições críticas e o ‘leitor comum’”,

De uma edição crítica de um texto, diz-se que: 1) ela deve tentar alcançar com a maior fidelidade imaginável a última forma desejada pelo autor do texto – o que implica a conservação da língua do tempo em que o texto foi escrito e da língua peculiar do autor, aspectos particularmente importantes quando o texto é poético ou literário; 2) realiza o estabelecimento, a fixação ou a apuração do texto; 3) tem por finalidade restituir ao texto sua forma genuína – o que está implícito na ideia de “última forma desejada pelo autor”; e 4) deve facilitar a leitura do texto, conferir-lhe legibilidade, torná-lo inteligível (2011, p. 89-90).

É curioso que, para o caso dos manuscritos de Carolina, a definição de edição crítica apresentada esbarra em aspectos, de certa forma, discrepantes. Entendo que, para a edição crítica de um texto antigo, como é o caso da publicação do sermão de Euzébio

de Matos30 realizada por José Américo Miranda e Maria Cecília Boechat, a fidelidade a qual se refere o pesquisador passe pela conservação da língua usada pelo irmão de Gregório de Matos, atualizada quando necessário e devidamente sinalizada, em notas de rodapé. No caso de Carolina, a discussão deve passar por manter ou não a forma “não

padrão” como ela escreve, ou seja, devemos ou não “corrigir” o texto da autora, que,

por ter frequentado apenas os dois curtos anos de escola, esbarra em imperfeições gramaticais? A respeito desse aspecto, Dalcastagnè defende, ao citar um trecho de

Quarto de despejo revisado:

A manutenção dos erros gramaticais nos livros da autora é uma demonstração de preconceito das editoras, que julgam que, de outra forma, a “autenticidade” do relato seria comprometida, mas os textos dos escritores “normais” (isto é, da elite) é sempre cuidadosamente revisado (2012, p. 40).

Concordando com a pesquisadora, optei por revisar o texto de Carolina, mas mantenho a fidelidade defendida por Miranda (2011) em seu conceito de edição crítica, pois acaba-se esbarrando no item 2 da definição, que nos remete à “apuração” do texto. Emanuel Araújo (1986) cita a respeito o exemplo do italiano Ettore Romagnoli, que já

em 1917 defendia edições mais “populares” e “tampouco abria mão da atualização

ortográfica e da pontuação, o que, segundo seu ponto de vista, não corromperia o

conteúdo do texto” (p. 194). Não encaro, portanto, como um desrespeito revisar o texto

da autora, como alguns consideraram, mas, ao fazer isso, penso que estamos apurando- o, igualando-o a outros textos literários canônicos que, como já lembrou Dalcastagnè, são com certeza revisados pelas editoras.

Como é sabido, as edições dos textos de Carolina nem sempre passaram pela opção de revisão do(s) editor(es). Diário de Bitita e Pedaços da fome tiveram uma mesma correção, embora seus editores não comentem sobre essa escolha nos paratextos. Em Diário de Bitita, Clélia Pisa e Maryvonne Lapouge também não comentam sobre a edição e não há prefácio ou posfácio no livro. E sabemos que ele foi traduzido do francês, o que complica ainda mais sua autenticidade em relação à fidelidade dos

30

Refiro-me à publicação Sermão do Mandato, editada por José Américo Miranda e Maria Cecília Boechat, pela Faculdade de Letras da UFMG (FALE), em 1999.

manuscritos da autora. Em Pedaços da fome temos o prefácio de Eduardo de Oliveira, que comenta sobre o tipo de escrita de Carolina, mas não se refere aos desvios da norma padrão cometidos por ela ou à opção pela revisão deles. Em ambos os livros, importante ressaltar, não há indicação dos nomes dos editores.

Nas outras publicações os editores optaram por manter os “erros gramaticais” da

autora, como em Quarto de despejo, na edição mais recente, da editora Ática, Audálio

Dantas menciona no prefácio que deu um “tratamento” aos originais, explicando que tirou as repetições; cita inclusive a palavra “fome” como exemplo, além de ter corrigido

a pontuação e a grafia de algumas palavras quando estas levavam “à incompreensão da

leitura”, e termina dizendo que “foi só, até a última linha”(2000, p. 3). O mesmo

ocorreu em Casa de alvenaria, também editado pelo jornalista. No prefácio, Audálio

afirma: “O tratamento dado a Casa de alvenaria foi o mesmo que dei a ‘Quarto de

despejo’. Conservei a linguagem e a ortografia da autora, sem alterar nada” (1961, p. 9).

Já Levine e Meihy, em Meu estranho diário, optaram por transcrever apenas, “sem nenhuma revisão gramatical ou estilística dos diários, que são trazidos a público como

foram encontrados” (1996, p. 10). O mesmo foi feito por eles com “Minha vida” e “Sócrates africano”.

Em Antologia Pessoal, no entanto, organizado por Meihy, há a revisão do poeta Armando Freitas Filho, que em um pequeno texto após o prefácio do organizador e de

Marisa Lajolo, explica que a escritora “teria apreciado que um colega de ofício se

debruçasse sobre sua obra poética – como revisor improvisado – a fim de, na maioria das vezes, pôr em ordem a acentuação e corrigir, aqui e ali, a ortografia e algumas

impropriedades gramaticais” (1996, p. 63). O poeta afirma, ainda, que acredita que Carolina desejava escrever “limpo e certo, dentro da tradição da língua”, confirmando

nossa opinião e a de Dalcastagnè.

Esta opção diante da edição dos manuscritos de Dr. Silvio confere ao romance, acredito, mais legibilidade e inteligibilidade e atende aos outros aspectos citados no conceito de edição crítica apresentado. A meu ver, esta interferência na transcrição dos manuscritos não desrespeita as peculiaridades da escrita da autora, mas pretende apenas fixá-las. No caso de respeitar sua vontade, como não está presente para dizer, reconheço que o texto diz por si, e dele faz-se as suposições sobre este aspecto. Para

essas suposições contou-se com a leitura atenta dos manuscritos microfilmados e o conhecimento do restante da obra da autora, de seu projeto literário. É possível, assim, aproximar-se mais do texto e atenuar a distância temporal. De toda forma, escolhas editoriais muitas vezes são necessárias neste processo a que me proponho. Importante ressaltar que a realidade linguística de Carolina foi preservada, que as escolhas vocabulares, marcas tão fortes de seu estilo, foram mantidas e intentei ao máximo primar pela fidelidade ao seu modo de escrita.

Sobre o vocabulário, diversas vezes encontrei nos manuscritos palavras pouco

ou nada usadas nos dias de hoje, talvez nem na época dela: a palavra “vate”, por

exemplo, que significa poeta, no contexto, proferida pela protagonista Maria Alice quando quer elogiar Silvio e dizer que aprecia sua presença. Maria Alice é jovem e provavelmente a palavra não caberia no contexto, mas a escritora, que lia os clássicos, especialmente os do século XIX, entendia, ou achava, na contramão do Modernismo, que era preciso rebuscar as palavras para fazer literatura. Em outro momento do

primeiro capítulo, o narrador afirma que Silvio deu um “ósculo” e um “amplexo” em

Maria Alice. A preferência de Carolina pelo culto e requintado léxico aparece até nas cenas mais simples como essa. Uma vez que esta edição visa inicialmente tanto o leitor comum quanto o acadêmico, optei por inserir em nota de rodapé o significado das palavras arcaicas ou menos conhecidas, como os exemplos citados.

Curioso foi notar, durante a leitura e a transcrição dos manuscritos, que Carolina, ao lado desse vocabulário elaborado, por vezes utiliza-se de coloquialismos, pouco

comuns em textos literários, como o uso do verbo “ter” ao invés do “haver” (“Na

pensão tinham dois jovens que amavam Maria Alice”). Essas ocorrências foram mantidas. Outro aspecto revelador do entendimento da autora da linguagem culta como sinônimo da literária é o uso excessivo dos pronomes oblíquos, às vezes empregados dentro das normas padrões da língua, em outras não. Como a revisão foi feita, conforme já descrito, neste caso apuramos o texto.

Repetições de palavras também foram retiradas, na tentativa de burilar o texto, como aconteceria, acredito, se a autora tivesse tido tempo de revisá-lo e fazer nova leitura antes da publicação. Cuidamos para que esses cortes não interferissem no sentido do texto e mantivemos as repetições que o compõem e marcam a escrita de Carolina.

Além das revisões e alterações já citadas, estas também foram realizadas:

a) O nome da personagem amiga de Maria Alice é citado pela autora, numa primeira versão, como Vera Eunice, aliás, o nome de sua filha. Após a reescrita dos capítulos e na continuidade do romance, o nome é mudado para Veralina. Optei, portanto, por grafar o nome da personagem assim desde o início.

b) Por diversas vezes Carolina utiliza corretamente os discursos direto, indireto e indireto livre. No entanto, como os travessões aparecem algumas vezes e em outras não, a opção foi utilizá-los sempre nos diálogos e deixar o discurso indireto quando ela se vale dele. Destaco que é fácil

perceber a diferença dos discursos no texto de Carolina, por isso a “ousadia”

de mantê-los e usá-los quando isso fica claro.

c) A paragrafação foi feita como forma de organizar o texto e facilitar a leitura, pois nem sempre a autora utilizava do recurso.

Infelizmente, várias partes dos manuscritos microfilmados estão ilegíveis, ou porque as folhas dos cadernos estavam manchadas ou porque estavam sobrepostas. Mas creio que isso não prejudica a compreensão do enredo. Na transcrição que se segue, indico nas notas quando isso ocorre, sinalizando no texto com colchetes e reticências.

ROMANCE DR. SILVIO

CAPÍTULO I

Os pássaros entoavam suas canções maravilhosas e voavam na amplidão. As nuvens percorriam o espaço numa carreira vertiginosa. O sol estava semioculto entre as nuvens e a viração impedia-lhe de transmitir o seu calor na atmosfera.

Dona Claudia Lemes estava no alpendre da sua linda fazenda sentada confortavelmente em sua poltrona, onde relia a carta de seu filho Sílvio que estava em São Paulo estudando Direito. Faltavam dois anos para ele formar-se.

O sonho de Dona Claudia Lemes era ver o filho formado. Um homem formado é ponderado, sabia solucionar problemas. Claudia, quando recebia cartas, já sabia que ele lhe pedia dinheiro. Ela era muito econômica. Quando Silvio nasceu, ela comprou um caderno para anotar tudo que comprava para seu uso. Queria saber em que preço ficava um filho depois de criado. Depois que ele se formasse, ela ia somar os gastos. E faltava pouco tempo para ver seu sonho realizado. Silvio lhe pedia dinheiro e uns doces. Dizia que estava com saudades dos quitutes do lar, que a vida numa pensão era intolerável. D. Claudia começou a lhe escrever, aconselhava-o a resignar-se, pois ninguém vive como almeja. Para não desanimar, que as pessoas elevadas não retrocedem. Quem vacila não triunfa.

“Eu sei que você não está desinteressado pelo estudo. Quando seu pai era vivo dizia- me: o Silvio é inteligente, vai ser o orgulho da nossa genealogia. Os Lemes31 são inimitáveis. O

Silvio não nos decepcionará. Ele confiava em você. Ele queria que você se formasse. Um homem formado está com seu futuro garantido”.

Terminou a missiva e suspirou. Que falta lhe fazia seu distinto esposo para auxiliá-la a educar seu filho!

Silvio residia na lindíssima pensão de D. Julia Ruiz, na rua Barão de Piratininga. Era um lindo prédio. Os hóspedes eram pessoas de destaque. A pensão era tão chique que a denominaram a “pensão dos doutores”. D. Julia era uma senhora de cinquenta anos. Muito amável, cuidava muito bem da casa, havia lindos objetos de adorno e móveis de estilo, tinha com tudo um cuidado ilimitado. Era atenciosa com os hóspedes, uma mulher culta, que quando não podia agradar, também não aborrecia. Não gostava de entristecer ninguém. Os hóspedes viviam com todo conforto. Era viúva, tinha uma filha que herdara da mãe as belas qualidades. A menina era esbelta, cabelos pretos, olhos verdes, a pele nívea e aveludada como pétalas de rosas. Era a lenidade32 em pessoa. Todos lhe devotavam uma amizade sincera e desejavam-lhe

um brilhante futuro. Ela era considerada a pupila da pensão. Todos que lhe pediam um favor, ela atendia com solicitude. Não sabia dizer não a ninguém. Estava sempre pronta a servir qualquer um que lhe procurasse. Os pensionistas sentiam por ela forte e leal atração.

Maria Alice simpatizava com Silvio. O melhor pedaço de frango era para ele. Tratava-o com todo desvelo. Ela dizia-lhe:

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Nas duas versões disponíveis nos manuscritos microfilmados, a autora escreve o capítulo I duas vezes, nas duas ela nomeia a família de Dona Claudia e Silvio como os Lemes, entretanto, nos capítulos seguintes ela muda o sobrenome da família para Porto, como veremos adiante.

– Silvio, esta casa sem você perde todo o encanto.

Quando Silvio não almoçava, ela repreendia-o com tanta doçura:

– Por que você não almoçou? Você vai adoecer. Você estuda muito, precisa alimentar- se bem. Tenho certeza de que você vai ser um preclaro33.

Silvio sorria. Maria Alice estava sentada no jardim de inverno quando Silvio chegou. – Oh! Desculpe-me se vim incomodar-te - disse Silvio confuso.

Maria Alice sorriu. Ficou alegre.

– Eu nunca me aborreço com a sua presença. Sinto-me tão bem ao seu lado. Gosto de te ouvir falar, classifico-te como um vate34.

Maria Alice falava e não retirava os olhos de Silvio. Eram os momentos mais sublimes da sua vida quando estava perto daquele homem que fizera seu coração despertar da letargia para o amor. Tinha a impressão de que estava no paraíso. Silvio correspondia-lhe o olhar.

– Você bajula-me muito. Já estou ficando vaidosa.

Silvio dirigiu-se com passos preguiçosos e sentou-se. Perguntou-lhe: – O que fazes aqui?

– Eu estava tentando escrever um acróstico35, mas é tão difícil. Não vou tentar,

reconheço que não tenho veia poética.

– Quem é o felizardo que vai receber este acróstico? É o homem que você ama? – perguntou Silvio com muita curiosidade.

– É para um cego.

– Cego? Coitado, não vai poder ler o seu acróstico, se é que vai sair acróstico.

– Eu digo cego no sentido figurado. Cego por não compreender o quanto eu gosto dele. Penso que ele ainda não percebeu o quanto eu o amo. O amor é o alimento da alma.

Maria Alice falava com eloquência.

– Se ele não te ama, aconselho-te a não deixar este afeto criar raízes no seu coração. É um conselho de um futuro advogado. E você tem esperança de ser amada algum dia? – perguntou Silvio observando-a atentamente.

– Amada eu já sou, mas não pelo homem que almejo. Você ama alguém? Silvio curvou a cabeça antes de responder:

33

De origem nobre, distinto, ilustre.

34 Poeta

35

Poesia em que as primeiras letras (às vezes, as do meio ou do fim) de cada verso formam, em sentido

– Eu ainda não amei ninguém.

As palavras de Silvio penetraram no seu ouvido como a velocidade de um relâmpago. As cores fugiram de sua face.

– Você pode não amar ninguém, mas eu conheço alguém que te ama sinceramente. E lembre-se sempre: uma amizade sincera vale muito, é joia rara.

Silvio mordeu os lábios, perguntou-lhe:

– Quem é esta coitada que está perdendo o seu tempo?

Maria Alice levantou às pressas, pediu licença e saiu confusa. Atravessou a sala de jantar tão rápido que os hóspedes estranharam. Recebeu as palavras de Silvio como uma ducha. Era a sua primeira desilusão. Sentiu a alma em choque, tremendo, penetrou no seu quarto e começou a chorar. As lágrimas derramavam ininterruptamente.

Silvio percebeu a precipitação de Maria Alice, mas não deu nenhuma importância. Tinha recebido uma carta de sua mãe, retirou-a do bolso e começou a ler.

Maria Alice descontrolou-se com a resposta de Silvio. Nem que ela chorasse horas e horas sua mágoa não diminuiria. Lavou o rosto, pintou os lábios e foi ajudar sua mãe a servir o almoço.

Silvio tinha uma mesa reservada só para ele. Maria Alice o servia primeiro, trocava a toalha no almoço e outra no jantar. Colocou a mesa de Silvio no canto da sala onde ele podia fazer suas refeições em paz. Os hóspedes notavam o desvelo de Maria Alice. E comentavam : O Silvio tem sorte. Na pensão havia 36dois jovens que amavam Maria Alice. Eram eles: Ruy Reis,

filho de médico que estava estudando medicina, e José Augusto. A candura e a dedicação de Maria Alice prenderam os corações dos dois jovens. Ruy não manifestava o seu afeto, reconhecia que não podia competir com Silvio. Ocultava o seu sentimento, mas sofria em silêncio. Reconhecia que é pungente e desolador retirar um amor do coração. Condoía-se porque percebia que Maria Alice não ia ser feliz casando-se com Silvio. José Augusto nutria uma esperança. “Pode ser que um dia eles se indisponham”. Silvio lhe dissera que quando se formasse, ia para a fazenda de sua mãe. Era muito rico e não precisava trabalhar para viver, era filho único e que sentia muitas saudades das manhãs ensolaradas e dos gorjeios das aves.

Era sábado, Silvio pediu-lhe para preparar sua roupa de banho que ia para Santos. Maria Alice ficou apreensiva e nervosa. Fez-lhe muitas recomendações:

– Cuidado com o mar. Não beba álcool. Não tome sorvete para não te dar câimbra. Por que você não fica aqui e vai ao cinema? Promete-me que não vai à praia?

Silvio sorriu:

– Tranquiliza-te, eu hei de voltar sem faltar um pedacinho.

D. Julia tratava Silvio com certa consideração, sabia que se alguém magoasse Silvio, magoava sua filha. Procurou persuadi-la a não se interessar demasiadamente por ele. Como

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No manuscrito a autora grafou “tinham”, mas optei pela troca, para manter a fidelidade da linguagem

mulher experiente, percebia que aquela amizade precisava diminuir. Se o Silvio apreciasse uma música, ela comprava o disco. Na hora do almoço ou do jantar, punha o disco tocar pra ele ouvir. E Silvio fazia suas refeições ouvindo sua música predileta. Deixava separados os seus discos prediletos. Quando Silvio regressava, ela ia cumprimentá-lo alegre e sorridente.

– Eu vou deitar! Você desperta-me amanhã às cinco horas? Quero chegar em Santos bem cedo.

Maria Alice ficou com medo de deitar e errar a hora. Passou a noite inteira fazendo tricô. Quanto sentia sono, lavava o rosto para despertar. Às cinco horas em ponto foi despertá-lo. Silvio despertou, abluiu-se37, tomou café, despediu-se de Maria Alice e saiu. O coração de Maria

Alice seguia-lhe.

Sua amiga Veralina38 veio procurá-la para sair. Era esbelta, muito agradável. Usava um

vestido azul, sapatos pretos, um lindo colar de pérolas.

– Vamos passear, o domingo está quente. Você deve sair com um vestido leve. – Eu estou com um vestido de lã porque estou resfriada.