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A Elaboração dos Artigos 8bis, 15bis e 15ter do Estatuto de Roma

3.3 O CRIME DE AGRESSÃO

3.3.1 A Elaboração dos Artigos 8bis, 15bis e 15ter do Estatuto de Roma

Apesar de a Conferência de Roma ter decidido deixar a jurisdição do TPI sobre o crime de agressão dormente até que uma definição do crime fosse adotada e os procedimentos em torno do exercício da jurisdição do TPI sobre o crime delineados, o que foi realizado na Conferência de Campala em 2010, o papel do CSNU no exercício da jurisdição do TPI sobre o crime ainda é incerto.

Nesse sentido, e entendendo que a jurisdição do TPI sobre o crime de agressão também é uma questão fundamental na relação do CSNU e o TPI, essa parte pretende analisar, a partir das emendas trazidas pela Conferência de Campala, qual será o papel desempenhado pelo CSNU no exercício da jurisdição sobre o crime.

A ligação entre o CSNU e o TPI quanto ao exercício do crime de agressão se deve principalmente à natureza dupla do crime, que envolve o ato de agressão em um nível macro e a conduta individual que caracteriza o crime de agressão em um nível micro296. Ohlin297 menciona que o conceito de agressão pertence tanto ao direito internacional (como uma questão

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296 AMBOS, Kai. The Crime of Aggression After Kampala. German Yearbook of International Law, vol. 53,

2010, p. 482.

297 OHLIN, Jens. Aggression. In: CASSESE, Antonio. (Ed.), The Oxford Companion to International Criminal

de responsabilidade estatal), quanto ao direito penal (como uma questão de responsabilidade penal).

O crime de agressão apareceu pela primeira vez na história sob o nome de “crime contra a paz” nos tribunais de Nuremberg e Tóquio, sendo entendido como o “planejamento, preparação, iniciação ou engajamento em guerras de agressão, ou uma guerra que viole tratados internacionais, acordos ou garantias, ou a participação num plano comum ou conspiração para a realização de qualquer um dos precedentes”298.

No âmbito da ONU, o artigo 39 da Carta de São Francisco dá ao Conselho de Segurança o poder de determinar “a existência de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz, ou ato de agressão”299. No entanto, a ONU só apresentou um conceito de agressão em 1973, através da Resolução 3314(XXIX) da Assembleia Geral das Nações Unidas.

A Resolução define, em seu art. 1º, o ato de agressão como sendo “o uso da força armada por um Estado contra a soberania, integridade territorial ou independência política de outro Estado, ou de qualquer forma incompatível com a Carta das Nações Unidas[...]”300, além de enumerar exemplos não exaustivos de atos de agressão em seu art. 3º.

Esse é um conceito que a comunidade internacional já reconhece, mas ainda é um conceito muito amplo e a caracterização de ato de agressão ainda depende muito das circunstâncias envolvendo o caso concreto. Isso fica claro diante das diversas resoluções do Conselho de Segurança da ONU tocantes ao uso da força e suas exceções301, ou decisões da Corte Internacional de Justiça que tratam de casos de agressão302 e demonstra que não apenas não existe uma definição clara daquilo que seria um ato de agressão, mas também que questões controversas estão sujeitas a um certo grau de subjetividade ao se criar um entendimento sobre elas.

Além disso, Ambos303 leciona que a existência de um ato de agressão, no sentido da resolução 3314 (1974), não confere automaticamente responsabilidade criminal individual às _______________

298 INTERNATIONAL MILITARY TRIBUNAL. Statute of the International Military Tribunal (1945), art.

6(a).

299 ONU. Carta das Nações Unidas, art. 39.

300 ONU. Assembleia Geral. Resolução 3314 (1974), A/RES/3314.

301 STRAPATSAS, Nicolaos. The Practice of the Security Council Regarding the Concept of Aggression. In: Kreß,

Claus; BARRIGA, Stefan. (Ed.), Crime of Aggression: A Commentary, Cambridge: Cambridge University Press 2016, p. 178 - 213.

302 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Case Concerning Military and Paramilitary Activities in and

against Nicaragua, 27/06/1986, I.C.J. Reports 1986, p. 4; CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Advisory Opinion Concerning Legal Consequences of the Construction of a Wall in the Occupied Palestinian Territory, 9/07/2004, I.C.J. Reports 2004, p. 136; CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, Case Concerning Armed Activities on the Territory of the Congo, 18/09/2002, I.C.J. Reports 2005, p. 168;

pessoas envolvidas nesse ato (justamente em decorrência da natureza dupla do crime). Como a resolução só se preocupou com a definição de agressão no sentido macro, não foram elaborados os elementos que diferenciassem o simples ato ilegal de um crime culminando na responsabilidade penal do indivíduo.

Ao se elaborar o Estatuto de Roma, o crime de agressão foi incluído nos crimes da competência do Tribunal Penal Internacional no artigo 5(d) do Estatuto. No entanto, o art. 5(2) traz a ressalva de que: “O Tribunal poderá exercer a sua competência em relação ao crime de agressão desde que, nos termos dos artigos 121 e 123, seja aprovada uma disposição em que se defina o crime e se enunciem as condições em que o Tribunal terá competência relativamente a este crime”, ressaltando que “tal disposição deve ser compatível com as disposições pertinentes da Carta das Nações Unidas”304.

Os artigos 121 e 123 preveem as alterações e revisões do Estatuto de Roma, que só foram discutidos sete anos após a entrada em vigor do Estatuto, na ocasião da Primeira Conferência de Revisão da Corte em Kampala, em 2010. A jurisdição dormente do TPI em relação ao crime de agressão foi a questão em aberto mais importante após 1998 e a tarefa principal da Conferência de Kampala foi adicionar o material apropriado ao Estatuto e adotar as emendas necessárias a permitir a jurisdição do Tribunal sobre o crime305.

Por outro lado, muitas das discussões a respeito do crime de agressão estavam sendo trabalhadas desde a entrada em vigor do Estatuto de Roma em 2002, através de um grupo especial aberto a todos os Estados-Parte chamado Special Working Group on the Crime of Aggression (SWGCA). Não obstante os trabalhos do grupo, a Conferência ainda foi espaço de debates acerca da definição e jurisdição do crime, em especial debates acerca do papel do Conselho de Segurança da ONU – se o órgão poderia ou deveria fazer parte do processo junto ao Tribunal ou poderia decidir acerca de elementos do crime que seriam vinculantes ao TPI306.

Ao final, adicionaram-se três novos dispositivos ao Estatuto de Roma: o artigo 8bis, o artigo 15bis e o artigo 15ter.

O artigo 8bis foi responsável por definir o crime de agressão dentro do TPI, entendendo por crime de agressão o “planejamento, preparação, iniciação ou execução, por alguém em uma posição que efetivamente exerça controle sobre ou que direcione a ação política

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304 TPI. Estatuto de Roma, art. 5(2).

305 CLARK, Roger S. The Crime of Aggression, In: STAHN, Carsten. (Ed.), The Law and Practice of the

International Criminal Court. Oxford: Oxford University Press, 2015, p. 779.

ou militar de um Estado, de um ato de agressão o qual, por sua característica, gravidade ou escala, constitua em uma manifesta violação da Carta das Nações Unidas”.

Há uma clara referência nessa definição à 3314 (1974) da Assembleia Geral da ONU nesse dispositivo, sendo que o art. 8bis(2), que enumera uma lista não exaustiva de atos de agressão, é uma transcrição literal dos artigos 1 e 3 da Resolução 3314 (1974). Essa definição adotada conservou e essência dupla do crime de agressão, limitando a responsabilidade àqueles que possuam uma posição de liderança e estabelecendo que nem todo ato de agressão consistiria em crime, apenas aqueles que constituíssem uma manifesta violação da Carta da ONU e passassem em um teste envolvendo sua natureza, gravidade e escala do ataque.

Quanto ao exercício da jurisdição do TPI sobre o crime, a emenda ao artigo 15 foi o que mais gerou discussões e negociações tanto antes (no âmbito do SWGCA) quanto durante a Conferência, por envolver o papel do Conselho de Segurança. Como o art. 5(2) do Estatuto de Roma determinava que “tal disposição deve ser compatível com as disposições pertinentes da Carta das Nações Unidas”, foi discutido se o artigo 39 da Carta da ONU conferiria competência exclusiva ao CSNU para decidir acerca de um ato de agressão. Se essa fosse a interpretação dada, a atuação do TPI seria limitada e estaria sujeita à decisão do Conselho de Segurança acerca da ocorrência ou não do ato de agressão307.

Outra interpretação possível, a partir do artigo 24 da Carta da ONU308, daria a entender que o Conselho de Segurança teria poder prioritário sobre atos de agressão, em razão da sua responsabilidade em manter a paz e a segurança internacional. No entanto, isso não poderia ser traduzido como um poder exclusivo, permitindo a atuação do TPI independentemente da posição do CSNU309.

Em razão dessas discussões, os artigos 15bis e 15ter, que foram originalmente negociados enquanto um só, foram separados nos últimos dias da Conferência de Kampala em dois. O artigo 15bis lida com situações nas quais o TPI tem sua jurisdição acionada através de um Estado-membro ou pela própria Procuradoria do Tribunal, enquanto o artigo 15ter trata de casos de remessa de situações ao TPI feitas pelo próprio Conselho de Segurança.

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307 Ibid., p. 786.

308 ONU. Carta das Nações Unidas, art. 24(1): “A fim de assegurar pronta e eficaz ação por parte das Nações

Unidas, seus Membros conferem ao Conselho de Segurança a principal responsabilidade na manutenção da paz e da segurança internacionais e concordam em que no cumprimento dos deveres impostos por essa responsabilidade o Conselho de Segurança aja em nome deles”.

3.3.2A Definição de Agressão e o Papel do CSNU no Exercício da Jurisdição do TPI Sobre o