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I

Como se poderia desfazer em mim tua nobre cabeça, essa torre deslumbrada pelo mudo calor dos dias, pelo

brilhante gelo nocturno? É pela cabeça que os mortos maravilhosamente pesam

no nosso coração. Essas flores intangíveis para as quais temos medo de sorrir, as armas

lavradas, as liras que estremecem e pendem

sobre os rios agitados das coisas. Só o amor as abre e vê sua confusa e grave geografia, as fontes livres de onde os pensamentos crescem como a folhagem iluminada das antigas idades do ouro.

Eu próprio levanto minha exígua cabeça de vivo, procuro colocar-me num ponto irradiante da terra, olhar de frente

com toda a inspiração do meu passado, e estar à altura dos mortos, na zona

esplêndida e vasta

da sua nobreza — receber essa espécie de força indestrutível

que envolve a cabeça montada sobre os dias e dias, de que as rosas bebem o jeito aéreo e a boca a delicadeza misteriosa.

Existem árvores cercando os animais sonhadores, o grande arco das eras com os fogos rápidos

presos como campânulas, e a fixa vontade do homem ardendo e gelando

no tempo. À beira dos rios canta-se ou deixa-se que as mãos corram, deslumbradas

da sua grande luz

nas águas. Existe um nome suspenso sobre as estações do ano. Essa cabeça

dos mortos — a tua cabeça antiga como o verde nas pedras ou o movimento

das corolas frias,

essa cabeça sumptuosa rodeada de estreitas víboras —

sobe do meu coração até que a minha cabeça seja a possessiva, doce cabeça

II

Sobre o meu coração ainda vibram seus pés: a alta formosura do ouro. E se acordo e me agito,

minha mão entreabre o subtil arbusto de fogo — e eu estou imensamente vivo. Se com a neve e o mosto dei ao tempo a medida secreta, na minha vida tumultuam os rostos mais antigos. Não sei

o que é a morte. Enchia com meu desejo

o vestíbulo da primavera, eu próprio me tornava uma árvore abismada e cantante. E a beleza é uma chama

solitária, um dardo que atravessa o sono doloroso. Nada sei dos mortos.

Deixaram em mim os pés sombrios, um súbito fulgor de ausência. — De mim, vivo e ofegante, sei uma flor de coral: delicada, vermelha.

Porque morrem assim no interior do vinho quando

se extasiam e cantam? Porque escurecem os ombros onde as videiras se derramavam e subiam as escadas?

Um a um vão nascendo meus pensamentos nocturnos, e eu digo: porque morrem

os que tinham a carne com seu peso e milagre e sorriam sobre a mesa

como seres imortais?

E agora é a minha vida que assombrada se fecha. A vida funda e selvagem. Porque um dia,

como se apaga a labareda de um cacho. o brilho se apagará onde estava a minha letra. Dançarei uma só vez em redor da taça,

festejando a última estação. Hoje

nada sei. Correm em mim os mortos, como água — com o murmúrio gelado da sua incalculável ausência. E digo: não refulgia a carne quando

a primavera inclinava a cabeça sobre a sua confusão? Não dormiam junto ao mosto com lírios no pensamento? Ei-los em mim, os mortos longos, e digo: se havia

tanto ouro dentro e fora deles, porque se extinguiram?

Nada sei dos mortos.

Um dia hei-de ser como espuma absorta em volta de um coração, e dele se erguerá uma onda de púrpura,

um amor terrível.

III

Havia um homem que corria pelo orvalho dentro. O orvalho da muita manhã.

Corria de noite, como no meio da alegria, pelo orvalho parado da noite.

Luzia no orvalho. Levava uma flecha

pelo orvalho dentro, como se estivesse a ser caçado loucamente

por um caçador de que nada se sabia. E era pelo orvalho dentro.

Brilhava.

Não havia animal que no seu pêlo brilhasse assim na morte,

batendo nas ervas extasiadas por uma morte tão bela.

Porque as ervas têm pálpebras abertas sobre estas imagens tremendamente puras. Pelo orvalho dentro.

De dia. De noite.

A sua cara batia nas candeias. Batia nas coisas gerais da manhã.

Havia um homem que ia admiravelmente perseguido. Tomava alegria no pensamento

do orvalho. Corria.

Ouvi dizer que os mortos respiram com luzes transformadas. Que têm os olhos cegos como sangue.

Este corria, assombrado. Os mortos devem ser puros. Ouvi dizer que respiram.

Correm pelo orvalho dentro, e depois estendem-se. Ajudam os vivos.

São doces equivalências, luzes, ideias puras.

Vejo que a morte é como romper uma palavra e passar — a morte é passar, como rompendo uma palavra, através da porta,

para uma nova palavra. E vejo

o mesmo ritmo geral. Como morte e ressurreição através das portas de outros corpos.

Como uma qualidade ardente de uma coisa para outra coisa, como os dedos passam fogo

à criação inteira, e o pensamento pára e escurece

— como no meio do orvalho o amor é total. Havia um homem que ficou deitado

com uma flecha na fantasia. A sua água era antiga. Estava tão morto que vivia unicamente.

Dentro dele batiam as portas, e ele corria pelas portas dentro, de dia, de noite. Passava para todos os corpos.

Como em alegria, batia nos olhos das ervas que fixam estas coisas puras.

IV

A colher de súbito cai no silêncio da língua.

Paro com a gelada imagem do tempo nos sentidos puros. E sei que não é uma flor aberta

ou a noite cercada de águas extremas. Paro por esta monstruosa,

ingénua força da morte.

— A colher envolvida pelo silêncio extenuante da minha boca, da minha vida.

Que faço? Bem sei como se alimenta um homem, e tímido e arguto

alimenta a sua irónica inspiração solar, a inocente astronomia

de ossos e estrelas, veias e flores e órgãos genitais —

para que tudo se construa docemente,

com as mulheres sentadas nos seus vestidos coalhados, sorrindo fixamente como as crianças na lírica,

tenebrosa densidade da carne.

A colher cheia de alimento. Era um jogo vivo, manso, ponderado — uma

beleza evocativa e confusa.

Eis: sou um homem que instante a instante ganhava um sabor de perene

sentido, uma duração de sombra extasiada, laboriosa, inclinada no grave centro

da primavera — a sombra das minhas mãos.

A colher subia como um instrumento da criação, firme subia nos dedos

como que invocando, unindo os fragmentos do espírito,

a mímica na sugerida integridade da pessoa

colocada na doce integridade do tempo. Mas paro. Cai no silêncio da língua

a colher que era — quem sabe? — música, intimidade, sinal fortuito

de uma essência, um génio interior. O puro roer devagar roerá

a colher na mão e a boca na colher,

coagulava a leve espessura das casas. Essas que ardiam na assimetria festiva e sagaz das invenções.

— Cai no silêncio da língua a colher tão brusca.

V

Não posso ouvir cantar tão friamente. Cantam sobre a minha vida.

Trouxeram a taciturna pureza das grandes noites do mundo.

Do antigo elemento do silêncio subiu essa canção devastadora. Oh feroz mundo puro,

oh vida incomparável. Cantam, cantam. Abro os olhos debaixo das águas silenciosas, e vejo que a minha lembrança é mais remota que tudo. Cantam friamente.

Não posso ouvir cantar.

Se dissessem: a tua vida é uma roseira. Vê como bebe no anónimo da estação.

O sangue escorrega por ti quando é altura de rosas. Ouve: não te maravilha

a subtileza de espinhos e folhas pequeníssimas? — Se dissessem alguma coisa, eu ficaria rico de um nome extremo.

Não cantem, não floresçam.

Não posso sentir encher-se assim a vida como uma canção fria e uma roseira tão espalhada em mim.

Pode ser que fosse ilesa esta época do ano, e minha existência de repente se tomasse por todo esse fervor.

Vejo minha ardente agudeza escoar-se até à maturidade confluente

de um minuto de verão. — Estaria eu completo para a morte?

Não, não cantem essa lembrança de tudo. Nem roseira na sangrenta delicadeza da carne, nem o verão com seus símbolos de feroz plenitude.

Gostaria de pensar cada um dos meus dedos, esta cítara descida dentro da obra.

Toda a tristeza como uma vida admirável enchendo a eternidade.

As frias canções despovoam-me, e as roseiras tornam desavindas as rosas

recuadas. Ouve: na tristeza do estio enorme alui-se-me o uno sangue.

a minha vida inteira

tão forte e impura, tão preenchida pelo quente silêncio do que se não sabe.

Não se canta e floresce. Ninguém amadurece no meio da sua vida.

Toca-se lentamente uma parte suspensa do corpo, e a alta tristeza purifica os dedos.

Porque um homem não é uma canção fria ou uma roseira. Não

é um fruto como entre folhas inspiradoras.

Um homem vive uma profunda eternidade que se fecha sobre ele, mas onde o corpo

arde para além de qualquer símbolo, sem alma e puro como um sacrifício antigo.

— Por sobre frias canções e roseiras aterradoras, minha carne ligada nutre o silêncio maravilhoso de uma grande vida.

Pode ser que tudo esteja bem no plural de um mundo intenso. Mas

o amor é outro poder, a carne

vive de sua absorta permanência. Esta vida de que falo

não se escoa, não alimenta os superlativos diários. É única

e perene sobre a escondida fluência dos movimentos.

— Uma roseira, mesmo

incomparável, cobre tudo com a sua distracção vermelha. Por detrás da noite de pendidas

rosas, a carne é triste e perfeita como um livro.

VI

São claras as crianças como candeias sem vento, seu coração quebra o mundo cegamente.

E eu fico a surpreendê-las, embebido no meu poema, pelo terror dos dias, quando

em sua alma os parques são maiores e as águas turvas param junto à eternidade.

As crianças criam. São esses os espaços onde nascem as suas árvores.

Enquanto as campânulas se purificam no cimo do fogo, as crianças esmigalham-se.

Seu sangue evoca

a tristeza, tristeza, a tristeza primordial.

— Enlouquecem depressa caídas no milagre. Entram pelos séculos

entre cardumes frios, com o corpo espetado nas luzes e o olhar infinito de quem não possui alma.

Seu grito remonta ao verão. Inspira-as a velocidade da terra.

As crianças enlouquecem em coisas de poesia. Escutai um instante como ficam presas

no alto desse grito, como a eternidade as acolhe enquanto gritam e gritam.

— É-lhes dado o pequeno tempo de um sono de onde saem

assombradas e altas. Tudo nelas se alimenta. Dali a vida de um poema tira

por um lado apaixonadamente; por outro, purificação.

Nelas se festeja a imensidade

dos meses, a melancolia, a silenciosa pureza do mundo.

Quem há-de pensar para as crianças, sem ter espinhos nas vozes desertas

até ao fundo? É vendo-se aos espelhos, no seguimento da noite,

que as crianças aparecem com o horror

da sua candura, as crianças fundamentais, as grandes crianças vigiadoras —

Não há laranjas ou brasas ou facas iluminadas que a vingança não afaste.

As crianças invasoras percorrem os nomes — enchem de uma fria loucura inteligente

as raízes e as folhas da garganta.

Aprendemos com elas os corredores do ar, a iluminação, o mistério

da carne. Partem depois, sangrentas, inomináveis. Partem de noite

noite — extremas e únicas.

— E nada mais somos do que o Poema onde as crianças se distanciam loucamente.

VII

Os ombros estremecem-me com a inesperada onda dos meus vinte e nove anos. Devo despedir-me de ti,

amanhã morrerei.

Talvez eu comece a morrer na tua mão direita, alterosa e quente na minha mão

sufocada. Agora mesmo na europa

começa a vagarosa iluminação das giestas. É a minha vida percorrida por um álcool penetrante, é a imediata

atenção ao misterioso trabalho da idade.

Vinte e nove anos agora, na europa, sobre os canais sombrios da carne, sobre um vasto segredo.

Será apenas isto, um ponto móvel

da eternidade, isto — a sufocação veloz e profunda da vida inteira na minha garganta? E depois

o acender das luzes, bruxelas como uma câmara de archotes e ao alto as ameias

enevoadas dos astros? Devo olhar com uma grande memória aquilo que acaba na violência triste do poema.

Estamos nos quartos, há flores nas mesas. De babilónia partem rios. Por detrás das cortinas,

despeço-me. Amanhã vou morrer. Tenho vinte e nove bocas urdindo

a falsa doçura da confusão. Os países constroem a torre sombria do amor. Dá-me a tua mão

pensativa e antiga, deixa que se queime ainda um instante a loucura masculina

da minha vida. Pensa um pouco na beleza ignota das coisas: peixes, flores, o sono terrível das pessoas ou o seu respirar

que arde e brilha e se apaga à superfície

das lágrimas ocultas. Pensa um pouco no sorriso rapidíssimo

que jamais desaparece do silêncio, na candeia que cobre com agulhas de ouro os escombros dos lírios. E por cima de tudo estende

a tua pequena mão eterna. Cai tu própria na treva quente da minha cega mão masculina de vinte

e nove

anos. Tenho vinte e nove anos ou uma onda

inesperada que me estremece a carne ou a minha garganta cheia de sangue actual — amanhã morrerei.

Vi um dia alguém tomar nas mãos, entre faúlhas velozes, pedras que pareciam

imortais. Eram casas que se levantavam sobre o meu coração. Vi que tomavam animais feridos, flores imaturas, objectos

breves, imagens instantâneas e perdidas. Faziam alguma coisa eterna. Era gente

de vinte e nove anos que se despedia dolorosa pormenorizada

violentamente de uma parte da sua carne, a parte mais iluminada da sua

carne de vinte e nove anos. Amanhã morrerei.

AS MUSAS CEGAS

No documento herberto helder POESIA_TODA_1953-1989.pdf (páginas 42-55)

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