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EM BUSCA DA ATUAÇÃO TRANSFORMADORA

No documento Ministério público e políticas de saúde (páginas 100-104)

Como bem observa Marcelo Goulart (1998), a atuação do Ministério Público na concretização de direitos fundamentais, sobretudo quando envolve direitos coletivos, tem potencial transformador da realidade social e contribui para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Para ele, a “defesa de interesses coletivos e difusos implica, em regra, interferência em relações estruturais, portanto, nas relações de produção, de poder e de saber” (GOULART, 1998, p. 104).

Por esse motivo, mostra-se necessário potencializar a atuação da instituição quando se trata de lidar com direitos coletivos, aumentando, assim, sua contribuição para a transformação da sociedade por meio da realização dos objetivos previstos na Constituição de 1988 (art. 3.º da CR/88).

Na área da saúde, as políticas públicas são resultado da articulação de normas e da atuação coordenada dos entes dos três níveis da federação, assim como dos consórcios públicos e das entidades privadas prestadoras de serviços. Em todo o processo, é garantida a participação da comunidade por meio de conferências de saúde, conselhos de saúde e audiências públicas, cuja realização deve ser promovida pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios. Além disso, os modelos de gestão das ações e, sobretudo, dos serviços prestados variam desde a forma pública e estatal até a administração de serviços por Organizações Sociais (OS) e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). Diante desse

verdadeiro mosaico formado por normas e por instituições estatais e não estatais que atuam no setor da saúde, o Ministério Público não pode agir de forma açodada ou simplista.

Assim, é necessário reconhecer a complexidade do sistema de saúde brasileiro e perceber a miríade de interesses que giram em torno das políticas de saúde, envolvendo, entre outros atores, usuários, gestores, prestadores de serviço, profissionais de saúde e indústrias de medicamentos e de outros insumos para a saúde. Destarte, dada a complexidade das estruturas normativa e de prestação de serviços de saúde, há que se concluir, valendo-se das contribuições da ciência política, que a tarefa de implementar políticas de saúde e efetivar esse direito não pode ser vista como mera tradução de opções previamente decididas pelos formuladores das políticas públicas. Na verdade, a implementação deve ser vista como um processo político que envolve novos debates e diálogos com os atores sociais.

Com efeito, a busca pela efetividade do direito à saúde e a implementação de políticas públicas do setor devem levar em conta a participação da comunidade, a quem cabe dar significado ao direito à saúde em cada contexto cultural e histórico. Além disso, mostra-se necessária a mediação dos diversos interesses envolvidos, com vistas a conciliá-los e ordená- los em favor do interesse público.

Dessa forma, percebe-se que a realização do direito à saúde e a formulação e a implementação de políticas de saúde não são compatíveis, no sistema brasileiro, com a adoção de medidas impostas e uma perspectiva top-down. Ao revés: mostra-se necessária a articulação interfederativa e intersetorial, sempre com participação da comunidade.

Para agir nesse contexto, o Ministério Público precisa participar do ambiente sanitário e ter interlocução com os demais atores sociais. A insuficiência do conhecimento jurídico para a atuação na defesa da saúde exige do membro do Ministério Público contato constante com outros atores para compreender as características da sociedade em que atua e a complexidade das políticas de saúde. Esse trabalho de interlocução com outros atores da cena sanitária permite que o Ministério Público, por meio dos instrumentos de atuação de que dispõe e de sua capacidade de articulação, abra um canal de diálogos para o debate das questões afetas ao direito à saúde. Com a abertura proporcionada pela atuação da instituição, esta acaba favorecendo a participação da sociedade civil, sobretudo dos conselhos de saúde. Como

referido por Asensi (2010a), o Ministério Público contribui para tornar mais horizontais as relações entre Estado e sociedade, ao mesmo tempo em que seu trabalho passa a ter maior legitimidade, por se fundar no diálogo e na construção de alternativas.

A complexidade das políticas de saúde faz com que o processo judicial deixe de ser o meio mais apropriado para a solução dos conflitos de interesses, uma vez que, entre outras características e limitações, está organizado sob uma lógica adversarial e se desenvolve de forma a permitir que um terceiro venha a impor uma decisão para as partes. Nessa linha, Ana Luiza Chieffi e Rita Barradas Barata afirmam que “o processo judicial é um espaço limitado e inadequado para considerar decisões a respeito dos direitos sociais, pois elas são complexas e abordam questões coletivas e não individuais como a maioria das demandas judiciais” (CHIEFFI, BARATA, 2009, p. 1847).

Para o Ministério Público, a judicialização de demandas faz com que a instituição deixe de ser a condutora de um processo voltado para a realização direta e imediata de direitos para atribuir a outro ator a função de determinar a efetividade do direito por meio da imposição da imperatividade das normas jurídicas. Todavia, o resultado positivo é futuro e incerto, sobretudo quando se refere a demandas coletivas, visto que, como ressalta a doutrina, o Poder Judiciário não tem reagido bem e dado respostas efetivas às demandas por direitos coletivos (MACHADO, F., 2008).

Dessa forma, mostra-se necessário que o Ministério Público assuma seu papel de ator político concretizador do direito à saúde. Com isso, deve agir diretamente, com o uso dos instrumentos de atuação extrajudicial que lhe foram conferidos pelo ordenamento jurídico brasileiro. Em contato com a sociedade, incumbe ao Ministério Público assegurar o caráter deliberativo da participação popular, conferindo-lhe maior institucionalidade.

É preciso, portanto, assumir o papel de promotor, como impõe o texto constitucional:

Não foi por acaso que o constituinte originário traçou para o Ministério Público o nítido perfil de órgão agente, promotor de medidas, empregando nos quatro primeiros incisos do art. 129 da CF (que estabelece as funções institucionais) o verbo promover. Neste parâmetro, é fundamental que o membro ministerial tenha em mente que o Judiciário é a última, porém não a única via para a solução e prevenção de conflitos. As soluções podem e devem ser pensadas pelo Ministério Público num engajamento produtivo e intersetorial com a comunidade e outros órgãos públicos. (RODRIGUES, 2012, p. 32)

Assim sendo, percebe-se que, seja pela complexidade normativa e estrutural do setor, seja por orientação constitucional, o Ministério Público deve priorizar o uso de instrumentos extrajudiciais – como a realização de reuniões e audiências públicas, a expedição de recomendações e a celebração do compromisso de ajuste de conduta, entre outras medidas – para atuar na cena sanitária em busca da efetividade do direito à saúde. Mostra-se apropriado, portanto, o alinhamento ao modelo de Ministério Público resolutivo, de forma a concretizar diretamente o direito à saúde em um processo de articulação com os demais atores sociais e com participação popular.

A atuação extrajudicial, além de contribuir para a concretização do direito à saúde em sintonia com a Constituição de 1988, reafirma o Ministério Público como instituição de defesa do regime democrático, na medida em que assegura a participação popular na gestão da coisa pública (instrumentos de democracia participativa). Assim, assiste razão a Rodrigo Cançado Anaya Rojas, para quem “o campo mais fértil de atuação com potencial transformador é o

espaço extrajudicial, onde as soluções podem ser melhor construídas coletivamente” (ROJAS,

2012, p. 165).

O modelo de Ministério Público resolutivo, portanto, consiste em forma de trabalho que potencializa a atuação transformadora do Ministério Público na medida em que reafirma o direito à saúde como componente da cidadania brasileira.

É necessário advertir, contudo, que a prioridade para a atuação resolutiva não significa o desprezo pela promoção de medidas judiciais necessárias para a afirmação do direito à saúde. Com efeito, embora o processo judicial não seja a via mais adequada para a realização do direito à saúde, pelas limitações que lhe são inerentes, pode ser, contudo, imprescindível para o êxito em determinados momentos.

O recurso ao uso das ferramentas de atuação extrajudicial envolve negociações e barganhas para a construção de soluções coletivas que venham a ajustar a conduta do setor público ou de particular e promover o direito à saúde. Com isso, é evidente, de imediato, que há limites para essa estratégia de atuação, uma vez que, por vezes, o Ministério Público pode não ter êxito no convencimento e na conciliação dos interesses envolvidos. Nesses casos, a utilização das medidas judiciais, em especial a ação civil pública, converte-se em alternativa necessária e

imprescindível para a concretização do direito à saúde e afirmação da imperatividade dessa norma.

Como já se destacou neste trabalho, o paradigma do neoconstitucionalismo e a doutrina da efetividade das normas constitucionais, ambos difundidos no Brasil a partir da promulgação da Constituição de 1988, não deixam admitir a falta de imperatividade das normas constitucionais, especialmente daquelas que consagram direitos e garantias fundamentais. Entre outros mecanismos para assegurar a imperatividade dos direitos fundamentais, a Constituição resguardou o acesso ao Poder Judiciário em todos os casos de lesão ou ameaça a direitos (art. 5.º, XXXV, da CR/88). Dessa forma, esgotadas as possibilidades de atuação extrajudicial, incumbe ao Ministério Público valer-se da promoção de ações necessárias para a garantia do direito à saúde, desincumbindo-se, assim, de seus deveres constitucionais.

O que deve resultar claro é que a atuação segundo o modelo de Ministério Público resolutivo proposto por Marcelo Goulart (1998) – com ênfase na utilização dos mecanismos de atuação extrajudicial, articulação com outros setores da sociedade e participação popular – mostra-se mais adequada para a efetividade do direito à saúde, em contraposição ao modelo demandista. Atuar segundo a proposta de Ministério Público resolutivo exige que a instituição assuma seu papel de ator político de transformação da realidade social, o que não significa, entretanto, que a atuação judicial deva ser desprezada. O que se propõe é que essa alternativa seja utilizada como última medida para se afirmar a imperatividade do direito à saúde.

6.4 ÊNFASE NA ATUAÇÃO RESOLUTIVA: A ESTRATÉGIA ADOTADA PELO

No documento Ministério público e políticas de saúde (páginas 100-104)