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4. EXPERIÊNCIA, ESPAÇO E HISTÓRIA

4.1 Em que canto?

Quando comecei a escrever a partir da pergunta “Em que Canto?”, foi para produzir o sentido dos espaços que fui habitando para poder fazer a experiência

da escritura deste trabalho. Veyne (1998) me inspirou a pensar que em qualquer canto poderia encontrar história, pois a história não está em um fato determinante, mas nos eventos que estão ligados ao humano, nos indícios das condições de produção do evento presentes nos documentos, nas diferenças que fazem questionar o óbvio, na singularidade que não é repetível. Isso está expresso quando o autor escreve:

Um século é um branco nas nossas fontes, e o leitor mal sente a lacuna.

O historiador pode dedicar dez páginas a um só dia e comprimir dez anos em duas linhas: o leitor confiará nele, como um bom romancista, e julgará que esses dez anos são vazios de eventos (VEYNE, 1998, p. 29).

Foi com isso em mente que me refugiei pelos cantos, quando acessava documentos oficiais que me propunha a ler, sem focar na centralidade e essência, pois meu objetivo era encontrar as lacunas, o que estava vazio de eventos.

Quando fiz um “estado do conhecimento” sobre a temática das Escolas do Campo, encontrei em textos, artigos e teses uma discussão que se tornou importante para as reflexões que me propus: a virada no modo de nominar a instituição e os processos de escolarização realizados no espaço do campo. Aí apareciam as explicações sobre a escola rural, a escola no campo e a Escola do Campo. Não irei detalhar essas nomenclaturas16, também sei que as preposições no e do vêm carregadas de sentido político e de pertencimento, em uma luta pelo espaço que tem como perspectiva a conquista e direito desse lugar.

É assim, com a possibilidade de uma educação outra, que se possa produzir uma escola do lugar, uma escola das gentes e das comunidades que me vejo optando pela ideia de uma Escola de Educação do Campo. Uma escola que não pode se assemelhar a outras escolas de outros lugares.

Pude identificar, através da pesquisa para o estado do conhecimento do tema, diversos trabalhos, conferências em que são debatidas as condições de escolarização face aos desafios de acesso, o processo de organização, manutenção e promoção dos alunos; a qualidade do ensino que considere as especificidades dos lugares; as condições de trabalho e o pertencimento do corpo docente; os processos pedagógicos de resistência a modelos urbanos; e as

16 Quando envolve a temática das escolas do campo ela vem carregada de outros sentidos, políticos, sociais, culturais. A intencionalidade do trabalho não se detém na discussão desses conceitos, o objetivo da dissertação é discutir as diferentes possibilidades que o campo oferece para uma educação que esteja para o local, para a comunidade, para o espaço...

possibilidades de políticas e propostas ‘inovadoras’ produzidas nas, por e pelas escolas do campo17.

Foi assim que optei por um “canto”, por me posicionar e com isso me despedir dos termos escola rural, escola no campo, pois não queria territorializar a escola, mas mostrar que o território e a comunidade têm potência para produzir uma escola que a ele(s) pertence. A escola teve, a partir deste ponto, o tratamento de ser lugar, terra, chão que se pisa, relações que se vive, cheiros que se cheiram, por gente que a produz e a vive. Essa foi uma inspiração que tive na leitura de Foucault (2009), mais especificamente no texto “Outros Espaços”, em que ele se ocupa de pensar a história como entrecruzamento espaço-tempo, que como heterotopia está para além do espaço de localização, já que no espaço-tempo produzem-se lugares outros e por isso as crises não são restringidas pelos limites geográficos, uma vez que o que determina o espaço-tempo é a função de uma determinada coisa/instituição não fixada pela localização.

A heterotopia tem, assim, no espaço real o acontecimento da sobreposição de vários espaços18; concebe as pequenas parcelas do tempo como um detalhe e pista em que acontece a ruptura com aquilo que se espera, como verdade naquele tempo; está aberta e possível de ser encerrada, não são universais e públicas, são detalhes que podem ser reconhecidos, valorizados singularizados ou não; e, ressalto ainda, um último traço:

As heterotopias é que elas têm, [...] uma função. Esta se desenvolve em dois pólos [...]. Ou elas têm o papel de criar um espaço de ilusão que denuncia como mais ilusório ainda qualquer espaço real, todos os posicionamentos no interior dos quais a vida humana é compartimentalizada. [...] Ou, pelo contrário, criando um outro espaço, um outro espaço real, tão perfeito, tão meticuloso, tão bem-arrumado quanto o nosso é desorganizado, mal-disposto e confuso. Isso seria a heterotopia não de ilusão, mas de compensação (FOUCAULT, 2009, p.

420-421).

17 Não é por acaso as agendas empreendidas por movimentos sociais e políticos em torno de programas como Programa Nacional do Transporte Escolar (PNTE), Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), formações pedagógicas como Programa Escola Ativa (PEA), Escola da Terra, entre outros muitos, que têm apontado para práticas políticas e pedagógicas que tomam a particularidade das regiões, ciclos de produção no campo, as noções de cooperação e cooperativa, o reconhecimento e a potência da escola multisseriada, a pedagogia da alternância (combina atividades intensivas na sala de aula com práticas que envolvem o contexto...).

18 Em reciprocidade ao exemplo descrito pelo autor, vejo a escola como um espaço real em que se tem, aos corredores, o campo afora, embaixo da árvore, o cercado, a sala de aula e sua distribuição, o espaço dos estudantes, das séries/anos na mesma sala, os papeis de professor /diretor/supervisor/orientador, a divisão do quadro para as atividades de cada ano.

A inspiração na heterotopia se constituiu, por fim, em uma possibilidade de colocar em funcionamento um entre lugar/tempo em que a Escola do Campo se constitua num espaço e tempo em que coisas podem acontecer dentro das coisas que estão previstas e moduladas para acontecer, pois “[...] o espaço se oferece a nós sob a forma de relações de pensamento” (FOUCAULT, 2009, p. 413)19.

Pensar a Escola do Campo se constituiu em aventurar-me nas heterotopias, nas relações entre os espaços e tempos dados: campo-cidade;

pessoas do campo e pessoas da cidade; trabalho no campo e trabalho na cidade;

Escola do Campo e escola da cidade; currículo da Escola do campo e currículo da escola da cidade; conhecimentos do campo e conhecimentos da cidade;

inferioridades e superioridades; Cultura e culturas20, sacralizações e demonizações, enfim, as possibilidades múltiplas de outras ordens que podem ser simultâneas, experimentais, tramadas, sem grandes vias.

Aventurar-me fora das utopias, noção muito referenciada nos debates educacionais sobre a escola tendo em vista a reivindicação pela reinvenção, pela mudança e transformação dos processos educativos, se constitui difícil, pois este lugar iluminista de uma verdade ou de sua produção em forma de modelos, processos, leis, regramentos e regulamentos ‘mata’ as experiências, pois “[...]

essas utopias são espaços que fundamentalmente são essencialmente irreais”

(FOUCAULT, 2009, p. 415).

Assumir as heterotopias, caracterizadas pelas experiências, pelas variações do possível, pelos diferentes tempos e espaços ocupados no mesmo tempo e espaço, é difícil. Foi desafiador buscar com os materiais e com as pessoas os eventos que são da ordem daquilo que não acontece, dentro daquilo que acontece sempre. Encontrar potência nas relações que podem ser percebidas dos materiais e/ou compartilhadas pelas pessoas que estiveram/estão na Escola do Campo.

O(s) canto(s) se constituíram em espaço(s), tempo(s) em que me movimentei para organizar histórias dentro de um sistema que faz funcionar e

19 Estamos na época do simultâneo, estamos na época da justaposição, do próximo e do longínquo, do lado a lado, do disperso. Estamos em um momento em que o mundo se experimenta, acredito, menos como uma grande via que se desenvolveria através dos tempos do que como uma rede que religa pontos e que entrecruza sua trama.

20 Utilização de letra maiúscula indicando a Cultura maior, a padrão, tida como Cultura Erudita, e a letra minúscula indicando os diferentes tipos de culturas, marginais, suburbanas, subculturas.

formata a Escola do Campo. Mas que, por outro lado, é potência de variação quando pequenas parcelas do espaço e do tempo produzem outros modos de pensar e outras possibilidades para projetar a Escola do Campo no presente.

Quando finalizava este momento da escrita percebi que o(s) meus canto(s), os meus espaço(s) e tempo(s) de reflexão se desvinculavam das políticas marcos/legais e se aproximavam das políticas experienciais, destas que, por serem cotidianas, dizem do que acontece e que não são consideradas para a produção da escola dentro de um sistema, não servem de referência para a produção de práticas na Escola do Campo. Assim, através das lacunas da história, conto das experiências produzidas por uma historicidade que traz como atores as pessoas que vivem a educação do campo, tornando possíveis outras formas de narrar o que ali acontece.