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Em redor da coroação

No documento 00 - Corpo final.pdf (páginas 39-42)

Capítulo III: Nascimento – Educação Governação

III. 2. Em redor da coroação

A descrição do acto da coroação feita por Maria Augusta Cruz33, não só pela

riqueza do que diz, mas mais que tudo, pela riqueza do que subentende, em tudo quanto respeita aos antecedentes imediatamente próximos e à própria cerimónia da coroação do rei é bem demonstrativa do ambiente de intriga e de conspiração vivido em torno daquele momento.

33 Vd. Maria Augusta Lima Cruz in D. Sebastião, Colecção Reis de Portugal, Círculo de Leitores - Temas

Em toda essa descrição, a autora nunca o refere abertamente, mas deixa mais que subentendido: a coroação foi um teatro, uma encenação pobre em enredo e em coreografia, mas na qual todos os actores, com maior ou menor boa vontade (e por razões, aí sim, nem sempre explícitas ou implícitas), representaram o seu papel:

Não deixa de ser estranho que, apesar de a altura do ano (fim da Primavera) se poder prestar ao acelerar da decomposição de um féretro, ser tão acelerado o processo de exalação de odores a tal ponto incomodativos – e este foi um dos argumentos invocados para acelerar todas as cerimónias decorrentes do passamento do rei: a reunião do conselho, o próprio funeral, a coroação de D. Sebastião. Não existia ainda medicina forense nem nesse tempo existia já o conceito de autópsias, pelo que as causas de morte nem mereciam qualquer averiguação, mas até a morte de D. João III, tendo sido repentina, presta-se a suspeitas: porquê a urgência no funeral e numa reunião magna em que boa parte dos conselheiros com assento previsto não estiveram?

Na reunião do conselho é lido um documento com alegadas indicações deixadas pelo finado antes de morrer, mas nada impedia que todo este discurso tivesse sido forjado pela rainha D. Catarina em conluio com o secretário.

Os motivos para suspeitar da lisura de todo o processo continuam a somar- se: às questões sobre a autenticidade destes “apontamentos” (a que se poderá chamar “questões de forma”) somam-se as dúvidas legítimas quanto ao conteúdo; embora existissem razões para que isto pudesse ter sido pacificamente aceite, persistirão sempre reservas, ainda que nem sempre explícitas, sobre a credibilidade do putativo documento: afinal, era a Rainha e o seu “amigo” secretário quem se escudava em algo que só eles tinham podido verificar antes, mas que lhes era tão benéfico para os próprios interesses. Por muito que os participantes pudessem afirmar a sua credibilidade na peça, eles não deixavam de ser parte do elenco da mesma.

Porquê a aceitação de um documento que, lendo as entrelinhas do relato, tinha tudo para ser contestado? Porquê a necessidade de “repartir responsabilidades” (o termo mais exacto seria transferir, ao invés de repartir), procurando o parecer de um órgão (a Câmara de Lisboa) que nem era o mais legítimo para as assumir? Quem tinha alguma coisa a perder? E o quê? Que se teria passado nos bastidores que tudo foi feito com pezinhos de lã por parte de quem podia ter decidido um rumo diferente, como se quisessem estar de bem com Deus e com o diabo?

Sublinhe-se que até o próprio facto de o Secretário ter sentido a necessidade de prestar juramento sobre todas as suas afirmações merece suspeitas. Embora o juramento fosse uma prática usual na época, como vínculo da palavra de um homem, ele era exigido em determinadas circunstâncias e como um formalismo a que o próprio era obrigado; aqui, terá sido o próprio a adoptá-lo para lá de qualquer exigência que lhe tivessem imposto, assim como uma necessidade de adicionar credibilidade a actos e palavras que só faz sentido quando se tem a consciência pesada relativamente ao que se está a fazer.

Sabendo que estamos a falar de um tempo que não excedeu 5 dias (D. João III morre no dia 11 e esta cerimónia tem lugar no dia 16), sabendo que o Secretário não delegaria este tipo de assuntos, sabendo que ele teria muitos outros trabalhos a efectuar no decurso destes dias (como o preparar e participar nas reuniões já descritas, mais o convocar atempadamente dezenas de dignitários para todas estas realizações), é legítimo questionar quando é que o secretário pensou e redigiu um regimento detalhado ao pormenor para uma coroação imprevista: teria tudo isto sido previsto antes? Estaria tudo planeado?

Naturalmente que a festividade pretendida seria pouco propensa ao júbilo normalmente associado a festejos, em vista da proximidade do passamento de D. João III, mas também dificilmente se pode descartar um pensamento como o aqui exposto. Sendo certo que tal pensamento ocorreria com mais facilidade a quem via em D. Catarina uma partidária de Espanha, não é menos certo que mesmo os seus adeptos teriam dificuldade em desculpar a sua ausência na cerimónia da coroação.

Tem-se, portanto, como garantido, que D. João III morre repentinamente e que D. Catarina, secretariada por Pêro de Alcáçova Carneiro, ascende à regência do reino de Portugal, ainda que sob alguma contestação, aberta ou dissimulada. Neste quadro, D. Sebastião é coroado e aclamado Rei, na tenra idade de 3 anos e meio. Seu tio-avô, o Cardeal D. Henrique, aceita um papel coadjuvante da rainha-regente, mesmo sem saber dos limites legais que à mesma eram impostos (como se viu, não o foram) e portanto, com ainda maior indefinição quanto aos poderes que lhe competiriam.

Fica por provar a autenticidade de um documento invocado e lido, que serviu como base para a aceitação dos papéis atribuídos ou reivindicados para cada um dos actores que compuseram o elenco desta peça, representando papéis principais, de um lado, a própria rainha, o “seu” secretário Pêro de Alcáçova Carneiro, D. Julião de Alva

(bispo de Portalegre), o ex-governador da Índia Martim Afonso de Sousa e Jorge da Silva, e, do outro lado, o cardeal D. Henrique, e alguns fidalgos mais próximos como Lourenço de Távora, Álvaro de Castro e João Pereira Dantas. D. Sebastião, ainda que protagonista e centro do acto, mais não foi do que um mero figurante face aos constantes jogos de influência que o rei de Castela orquestrava nos bastidores.

Ficam por provar os interesses que se jogaram (se é que jogaram) e a forma como esses pretendiam projectar-se no futuro.

Premonitório, “… dois dias após o acto de aclamação de D. Sebastião e

terminada a quebra dos escudos, manifestação integrante do cerimonial de luto pela morte de D. João III, Simão Gonçalves, corregedor da Corte, clamava em voz alta pelos corredores do paço que o Príncipe de Castela ainda havia de ser rei de Portugal, pois D. Sebastião “comia por mão dos castelhanos”…34

No documento 00 - Corpo final.pdf (páginas 39-42)

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