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Emergência das corporeidades outras

1 SOBREVÔO PARA A DEFINIÇÃO DE UMA PRÁTICA-PENSAMENTO

2 PLANOS DA IMPROVISAÇÃO FÍSICA E EXPERIMENTAL E SEUS PROCEDIMENTOS

2.1.2 Emergência das corporeidades outras

A pesquisa teve, num primeiro momento, as informações provenientes das visões proporcionadas por uma abordagem lúdica e corporal da improvisação. Este foi o plano de um corpo manifesto que emergiu, em primeira mão, nas oficinas. A observação do brincar não-dirigido, o contato direto com crianças em processos de criação60, tudo isso gerou a busca por uma via corporal, incluindo o uso de

objetos61. Ocorre que, por essas vias, a corporeidade emergiu de tal modo que se

tornou independente do texto prévio, da situação dramática e do universo teatral de personagens.

Três questões colocam-se, de modo entrelaçado, diante dessa emergência de uma zona de autonomia cênico-corpórea:

a) concepção; b) sustentação; c) criação.

Procuro, portanto, expor como a pesquisa foi tocada por essas três questões, incluindo os procedimentos adotados no percurso da improvisação física e experimental.

No aspecto relativo à concepção, em termos de corpo manifesto, o que emergiu nas improvisações quer ser pensado como corporeidades outras. O que vem a ser isso? Estas se distinguem das corporeidades funcionais que, como

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Vide no Capítulo 1, o item 1.1

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demonstra o pensador Gil (2005, p. 76), falariam a “língua clara das funções sociais”, recaindo sob o domínio do signo verbal. Nessa via, os gestos exprimiriam de modo transparente as significações mais gerais. Ocorreria, assim, uma supressão, anulação ou redução de todo um plano de singularidades, de microssensações, para que um plano macro possa se impor e garantir a funcionalidade do organismo. No entanto, ainda nessa corporeidade comum, despontaria “o fantasma do corpo informe, do monstro, do corpo louco, selvagem e violento; o fantasma do visceral, do corpo sujo ou do corpo mortífero epidêmico”. (GIL, 2005, p. 76). Essa seria uma corporeidade que se faria de modo singular, desviante das codificações, não-semiotizáveis. Assim, na instância do comum, pode irromper, em algum momento, um corpo que não seja funcional. No entanto, se isso acontece, justamente a sua funcionalidade comunicativa é perturbada, tornando-se muitas vezes difícil de ser tolerada.

Gil (2005) mostra, entretanto, que a dança não ficaria presa à oposição binária – ser puxada para a funcionalidade ou para um singular e incodificável – mas se tornaria antes encarnação do sentido, que, somente por analogia, acrescenta, poderia se chamar de linguagem. Em vez de tender para um dos lados, as singularidades e todo seu plano de microssensações tornar-se-iam incorporados

pelo plano de imanência traçado pela dança, explicita Gil. Assim, a dança colocaria

em movimento o que já está em movimento.

Porém, se o plano corpóreo da improvisação física e experimental dá-se num espaço entre dança e teatro, de que modo ele pode ser traçado?62 Justamente

através da articulação entre o conceito de corpo-imanência e de corpo manifesto, para dar conta das corporeidades outras. Para a pesquisa isso tem uma localização precisa: encontrar, em termos de exercícios, as ferramentas que possam operar a articulação imanência-manifestação, incorporando o sentido desse incodificável e não-semiotizável de que fala Gil (2005).

Entretanto, necessário dizer que, do mesmo modo como não se faz operativa para a pesquisa uma oposição entre cotidiano e arte, o mesmo não sucederia com a distinção entre um corpo cotidiano e um corpo extra-cotidiano, de tal modo que este último estaria somente do lado do que se poderia chamar de

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No Capítulo 1, item 1.5. Campo cênico de multiplicidade atravessada, abordo a questão dos

espaços entre. Já neste capítulo, no item 2.5.1. abordo os conceitos de movimento e ação na

corpo-artista, para usar o termo criado por Greiner (2005) para designar uma

experiência em criação estética. Parto do suposto de que o corpo artista possui habilidades ou treinamentos que o sustentam como tal. Desse modo, outro suposto da pesquisa é o de que um corpo não-artista (não treinado numa disciplina artística) pode entrar em estados singulares e anômalos. Dito de outro jeito: há corpos não- artistas em estado de poiesis. Assim como Deleuze e Guattari (1997a, p. 129) dizem que “a arte não espera o homem para começar, podendo-se até mesmo perguntar se ela aparece ao homem só em condições tardias e artificiais”, também pode-se dizer que a arte não espera o ofício da arte. A arte contemporânea, por exemplo, não cessa de trazer à tona experiências corpóreas não restritas ao corpo artista, tomado este como habilitado pelos ofícios e treinamentos. Ou seja, outros corpos podem entrar na cena por uma via estética, isto é, em criação63

.

Em função do exposto, um dos aspectos dos procedimentos desta pesquisa inclui a observação daquilo que chamo de corpóreo anômalo, na trilha apontada por Gil (2005) (das singularidades não passíveis de codificação), numa apropriação do conceito de anômalo em Deleuze e Guattari (1997a) para dizer destas corporeidades outras, que logo emergiram nas oficinas de improvisação. Ora, o anômalo não é, para Deleuze e Guattari, uma categoria nem de indivíduo e nem de espécie. E também não se diz do anormal, mas antes do desigual. Eles o conectam à multiplicidade e ao corpo atravessado por afectos: “é um fenômeno, mas um fenômeno de borda.” (DELEUZE e GUATTARI, 1997a, p. 27). Para exemplificar o que chamo de um corpo anômalo que se faz atravessar por afectos e para enfatizar sua importância para a pesquisa, cito o relato de uma oficina com usuários de saúde mental.

Um senhor muito forte, que havia sido motorista de caminhão, chega com um ar pesado. Seus movimentos eram muito lentos e ele estava imerso num estado que carrega a florescência da nervura exposta em carne viva. Um esfolado vivo, para dizer com Artaud. Matéria para poiesis ou já é poiesis? As duas coisas potencialmente. E há errância, há fluxo, há corpo num estado intensivo. Qual foi o procedimento? Andar com ele. Simplesmente andar. Sugeri que os participantes andassem, lado a lado com ele, e assim ocorreu.

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No Capítulo 1. item 1.1, faço referências a criações cênicas que incluem corpos não habilitados nos ofícios artísticos, sem formação profissional.

Lado a lado, todos andavam no tempo daquele homem. Por que simplesmente andar? As errâncias já estavam ali, qualquer coisa a mais seria excessiva e o estado corporal, a sua singularidade, perder-se-ia. Foi uma composição coreográfica a que o grupo de pacientes entrou em trabalho – e durou um tempo.64

Não se trata de rotular de anômalos os corpos que, não sendo treinados nos nichos históricos dos ofícios artísticos, estariam atravessados por afectos. Ao contrário disso, importa situar que o corpo, que se faz desigual, permite-se experiências que não estão a serviço de um fim que lhe seja extrínseco. Trata-se não de domínios, mas sim de um pensamento que trabalha do seguinte modo:

a) procura por estados de poesia corporal nos corpos comuns; b) evita a separação entre arte e vida;

c) possibilita a mistura de corporeidades heterogêneas num mesmo plano de cena;

d) contribui para o esclarecimento do que chamo de corporeidades outras, já no contexto dos exercícios improvisacionais.

As corporeidades outras apontam, assim, para as potências não

funcionais, singulares e anômalas. E, ainda, para continuar a provocar o pensamento-prática dessas corporeidades outras que apareceram nas oficinas, estabeleço uma conexão também com o conceito de Corpo sem Órgãos (CsO) de Deleuze e Guattari (1996), numa via experimental:

Trata-se de criar um corpo sem órgãos ali onde as intensidades passem e façam com que já não haja mais nem eu nem o outro, isto não em nome de uma generalidade mais alta (...), mas em virtude de singularidades que não se podem mais chamar de extensivas. (DELEUZE e GUATTARI, 1996, p. 18).

Por que experimental? Porque só experimentando você pode criar um

CsO, dizem os autores. Mas em que consiste um CsO e por que se trata de criar

um, via experimentação? O filósofo Gil (2005, p. 60), ao pensar a dança, afirma que o corpo-organismo, o corpo submetido à funcionalidade, encontra-se impedido quanto à circulação das energias. Para tanto, é preciso esvaziá-lo de seus órgãos,

Relato de uma oficina com usuários de saúde mental no Centro Cultural Raul Bispo do Rosário, no Hospital Dia Raul Soares, Belo Horizonte, 2000.

de sua funcionalidade. Apropriando-se da descrição de um ritual de extração das vísceras de um animal, em que o participante entra em transe (e em devir-animal), José Gil observa que este esvaziamento libera os afetos investidos e fixados nos órgãos e cria uma interioridade paradoxal, na qual se dá um “corporal não

corporado” (GIL, 2005, p. 61). Isso, de tal modo que o interior vazio se faz matéria de interstícios – ou de espaços entre, ou seja, de “matéria do devir por excelência”

(p. 61). Este corpo torna-se poroso, sendo que a pele se faz interior e o interno se faz pele:

O corpo é esvaziado dos seus órgãos. O arrancamento deixou uma nuvem flutuante de afetos, uma névoa de sensações num espaço atmosférico. Este meio é, sobretudo, afetivo. É percorrido por dinamismos caóticos sem ponto de ancoragem. (GIL, 2005, p. 63).

A percepção dos estados corporais, que emergiram nos exercícios de improvisação e que se fizeram fisicamente experimentais, entram, assim, em ressonância com os pensamentos conceituais tomando-os num sentido não semiotizado e não funcional. Tais corporeidades, ao emergirem na improvisação, expuseram não só um aspecto algumas vezes transgressivo, mas evidenciaram que não se comportavam mais num contexto de teatro que não apresentava situação dramática, noção de lugar e não se desenvolvia por conflito intersubjetivo:

Uma participante de uma oficina aproxima o cabo de uma faca do seu sexo. Há uma intensidade passando entre mão-objeto-sexo, o seu olhar e a sua postura de corpo (de pé, com os joelhos um pouco dobrados, a coluna levemente vertida para a frente). Há um estado corpóreo que não está em situação de representação: há apenas um estado corpóreo, uma imagem que se doava para o espaço e uma performer que se deixava arrastar pelo que fazia.65

O relato evidencia, ainda, que aparecem os traços de um corpo

manifesto, apontando para o desenvolvimento de uma fisicalidade.

Relato da Disciplina de Improvisação, no Curso Técnico de Formação de Atores da Fundação Clóvis Salgado, 1995.

Se as corporeidades outras e seus estados apontam para os seus nexos de fluxo material e expressivo, elas passam a focalizar a necessidade de trabalhar sua própria sustentação. Tratava-se de encontrar o plano de imanência do corpóreo. No âmbito da pesquisa, isso pode ser formulado através da seguinte pergunta: quais

os exercícios que permitiriam um tratamento consistente dessas corporeidades? A

pergunta deve estar situada num contexto em que se entrava num espaço entre, não codificado.

Não obstante a entrada lúdica na improvisação, num meio adulto e profissionalizante em relação ao teatro, logo apresentou-se a seguinte dificuldade (no sentido afirmativo do meio que oferece resistências): aqueles estados surgidos na improvisação desapareciam facilmente. Em outras palavras, perdiam sua consistência. Mais do que isso, ainda, havia a clara convicção de que somente o exercício improvisacional não estabelecia as condições para que aquelas corporeidades outras se sustentassem. Em outras palavras, o corpo manifesto não conseguia traçar o plano de seu corpo-imanência.

Tudo isso me levou, portanto, cada vez mais, ao pólo treinamento: haveria um meio de estabelecer uma relação mais consistente com a corporeidade, de modo que esta pudesse configurar-se, ao mesmo tempo, como uma ferramenta para os performers e como criação cênica. E o que é importante: que favorecesse a autonomia.