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CAPÍTULO II – UM EXERCÍCIO PARA A COMPREENSÃO SISTÊMICA DO ENSINO E

2.6. Emoções na biologia do conhecer

O apreço da cultura ocidental pelo racional deprecia as emoções considerando-as elementos negativos que interferem e deturpam a razão. De acordo com a tradição ocidental como revisada no primeiro capítulo desta tese, dizer que o que caracteriza o ser humano é a razão implica numa série de pressupostos quanto a como devemos pensar e agir. De todas estas, a principal delas, serve como uma viseira por nos deixar cegos quanto a nossas emoções, e a responsabilidade pelas conseqüências de nossas ações no devir de nossas vidas. Esta afirmação sugere que devêssemos nos comportar controlando nossas emoções ou negando-as completamente. Maturana afirma com a Biologia do Conhecer que a cultura patriarcal na qual vivemos menospreza e desvaloriza as emoções supervalorizando a razão a ponto de educar as crianças a suprimi-las ou negá-las. A convivência na cultura patriarcal é

uma de exigência, controle, autoridade, de esforço e desconfiança que nega a existência de desejos, preferências e interesses gerando uma cegueira e uma inconsciência quanto às razões que fundamentam nossas ações e decisões cotidianas. Ao fazê-lo, a cultura patriarcal tem que inventar razões para justificar racionalmente nossas ações, sem aceitar as premissas emocionais que fundamentam estes mesmos domínios.

Maturana (1998: 15-23) propõe compreendermos emoção como um fenômeno biológico relacional dos seres vivos, em especial, dos mamíferos. Como fenômeno biológico as emoções se constituem como aspecto central na convivência humana. A história humana mostra que seu viver29 é um conviver com outros num constante vir-a-ser seres que vêem, escutam, sentem, desejam, falam e conhecem, de acordo com o viver dos outros com quem se vive. Segundo a Biologia do Conhecer, a origem da linguagem e das emoções tem a ver com a origem do viver humano. Um viver que tem se conservado ao longo da história evolutiva, toda vez que uma criança recapitula esta história em sua ontogenia.

Este modo de acordo com a Biologia do Conhecer apresenta uma série de características, das quais gostaria de destacar: a) uma convivência na intimidade sensual, no compartilhamento de alimentos, tarefas, funções e sexualidade que desencadeou a necessidade de operações que gerassem comportamentos mútuos orientacionais de coordenações de ações na consensualidade (convivência); b) um emocionar mamífero e primata que torna a convivência íntima, na proximidade e no cuidado e na atenção recíproca possível; c) o amor que é o fundamento do fenômeno social mamífero, que torna possível a convivência espontânea na aceitação do outro como legítimo outro na convivência; d) uma história evolutiva que entrelaça as coordenações de coordenações de ações, o linguajar, com as disposições corporais que especificam os domínios de ações, o emocionar; e) este entrelaçar gerou o conversar como principal modo de viver humano; f) o amor, portanto, não é uma virtude, mas um modo de relacionar dos seres vivos em que os outros surgem como legítimos outros na convivência. Isso é central no estabelecimento de domínios de transformação na convivência, como a sala de aula e os espaços psíquicos reflexivos.

O mundo em que se vive, se vive na expansão de nossa corporalidade, a partir da relação de jogo materno-infantil na total aceitação mútua desta corporalidade (Maturana e Block, 1996: 65) no prazer sutil da brincadeira sincera e no amor. Este espaço de aceitação mútua na relação, um domínio de proximidade, ternura e cuidado e atenção recíproca é

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Notem que na Biologia do Conhecer o viver de um ser vivo é um fluir contínuo e dinâmico de mudanças estruturais de maneira congruente com o meio, que se realiza enquanto se conservar a organização autopoiética e seu acoplamento estrutural.

estabelecido de forma recorrente. É neste espaço de aceitação mútua, de confiança, na aceitação da própria legitimidade no âmbito relacional, que não se pede desculpas por quem se é, que passamos a respeitar a nós mesmos e assim respeitando o outro na díade relacional (Maturana e Block, 1996: 69, 71). Portanto, é no (con)viver que contribuímos para gerar e configurar o espaço psíquico pelo qual nos movemos, modulando as dimensões relacionais interacionais em que existimos, sejam elas conscientes ou não, à medida que nos modificamos estruturalmente em congruência com as coerências operacionais do nosso viver de maneira contínua na constante transformação do viver. Este modo de viver nossa corporalidade nos acompanha de maneira marcante ao longo do nosso desenvolvimento.

O autor define o amor, não como uma virtude romântica, mas fundamentalmente como um modo de relacionar dos seres vivos, em especial dos mamíferos, em que o outro surge como legítimo outro na convivência. É o amor como fenômeno biológico que torna possível o conviver humano pautado no respeito mútuo, na expansão reflexiva e na saúde psíquica e fisiológica. Ao conceito biológico de amor e sua implicação na convivência humana e nos domínio reflexivos, Maturana e Varela (2001: 268-269) argumentam que:

A esse ato de ampliar nosso domínio cognitivo reflexivo – que sempre implica uma experiência nova -, podemos chegar pelo raciocínio ou, mais diretamente, porque alguma circunstância nos leva a ver o outro como um igual, um ato que habitualmente chamamos de amor. Além do mais, tudo isso nos permite perceber que o amor ou, se não quisermos usar uma palavra tão forte, a aceitação do outro junto a nós na convivência, é o fundamento biológico do fenômeno social. Sem amor, sem aceitação do outro junto a nós, não há socialização, e sem esta não há humanidade. Qualquer coisa que destrua ou limite a aceitação do outro, desde a competição até a posse da verdade, passando pela certeza ideológica, destrói ou limita o acontecimento do fenômeno social. Portanto, destrói também o ser humano, porque elimina o processo biológico que o gera.

Desta maneira, é a partir do amor, do prazer e da atenção recíproca na convivência que os processos de deriva ontogênica, o aprendizado, e os processos cognitivos recursivos e reflexivos ocorrem. Mas o que significariam estas palavras aqui? Qual a relação entre a biologia do amor e a atividade reflexiva? Maturana (Maturana e Nisis, 1999) argumenta que no amor o outro não precisa se desculpar por quem é e por como é. A convivência surge na espontaneidade do prazer do outro junto a nós, sem justificativas, este é o fenômeno da socialização. Neste domínio de ações colocamos em prática a objetividade entre parênteses, onde, de uma perspectiva da Biologia do Conhecer tudo é dito por um observador a outro observador. Neste domínio não podemos exigir a existência de uma única versão, de uma única realidade, que nega as outras e que existe independentemente daqueles que a experienciam, como ocorre no caminho explicativo da objetividade sem parênteses (ver 2.4). É no domínio da objetividdade entre parênteses, na biologia do amor, que surge um

multiverso experencial no qual inúmeras realidades são válidas de acordo com os critérios de validação distinguido por um ou mais observadores. Aqui todo o ser é constituído a partir do fazer e do distinguir dos observadores na linguagem. A aceitação do outro não nega a versão do outro, embora possa não aceitá-la como desejável em outro domínio de experiência30.

Desta maneira, as emoções existem na relação multidimensional do viver humano e não no corpo, embora se realizem na extensão e através de sua corporalidade e de suas dinâmicas de correlações fisiológicas. As emoções compreendidas nesta perspectiva não podem ser configuradas como estados, sejam eles internos ou externos, já que constituem dinâmicas relacionais e que portanto se encontram num fluxo contínuo, mesmo que pareçam aos olhos de um observador como se estivessem estacionadas. As emoções implicam em distintos modos de mover-se no fluir das interações e relações com outros ou conosco.

Definindo as emoções envolvidas em uma interação, podemos determinar os diferentes tipos de condutas relacionais e interacionais possíveis num dado momento, assim como as conseqüências das interações aí estabelecidas para cada um dos envolvidos numa relação. Ao mudar de emoção, mudamos de domínio de ação, num fluir que Maturana chama de emocionar. Dessa forma, se se deseja saber qual a emoção, deve-se olhar a ação. Inversamente, se se quer saber qual a ação, basta olhar a emoção (Maturana e Block, 1996: 114,115). No cotidiano sabemos muito bem disso: quando estamos numa determinada emoção, há coisas que podemos fazer e outras não, assim como há argumentos que aceitamos e outros não, dependendo da emoção.

Lidamos cotidianamente com domínios nos quais só são possíveis certas ações e não outras, embora nem sempre nos damos conta disso. Portanto, segundo o que estou dizendo aqui a partir da Biologia do Conhecer, a emoção define o que acontece na relação com os outros ou com nós mesmos, constituindo os espaços das dinâmicas relacionais em que nos movemos. Um domínio de ação é um domínio de condutas, comportamentos, posturas ou atitudes corporais na relação do ser vivo ao seu meio interacional que um observador distingue com uma emoção: é a emoção, e não a razão, que define a ação, embora em geral não tenhamos dificuldade de justificar racionalmente nossas ações, incluindo aí nossas reflexões no domínio lingüístico. Segundo Magro (1999: 200):

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Maturana distingue três sistemas centrais de convivência humana, de acordo com a emoção que especifica o espaço de ações relacionais na convivência. Os sistemas sociais são constituídos sob a emoção do amor, na aceitação do outro no respeito mútuo. Os sistemas de trabalho são constituídos na emoção do compromisso. Fundamentam-se na aceitação de um acordo na realização de uma tarefa. Os sistemas hierárquicos funcionam sob emoções que configuram ações de negação, submissão e obediência nas relações inter e intrapessoais. Comumente, a sala de aula pode constituir-se em sistemas de trabalho e sistemas hierárquicos. Dependendo de como é configurada, ela limita a possibilidade de ações cognitivas reflexivas, pois torna-se difícil nos vermos nas dinâmicas emocionais do conversar e da objetividade entre parênteses.

A partir da Biologia do Conhecer podemos entender que todo domínio racional é um domínio fundado numa emoção, na medida em que são as emoções que levam à aceitação ou à rejeição das premissas que fundam qualquer domínio racional e que orientam o operar na racionalidade. Identificar as emoções, de acordo com Maturana, tem um papel na especificação do domínio de ações em que estamos e, portanto, na interpretação dos eventos dos quais participarmos nesses domínios.

Desta maneira, Maturana argumenta que o emocionar não é lógico nem ilógico, mas pertence ao fluir dos domínios relacionais no viver e não ao domínio da argumentação, mas as emoções entram aí como fatores úteis na argumentação e não como partes da argumentação lógica. Assim, como as emoções especificam em cada momento o domínio relacional em que uma pessoa se move, o desenvolvimento de sua argumentação lógica constitui o fundamento não lógico, sobre a qual a pessoa aceita determinadas premissas a priori - preferências, desejos, intenções e diferenças - que fundam a lógica de sua argumentação e definem seu domínio de validade. Por isso mesmo no emocionar, ou ao mudar a emoção, muda-se a razão e, assim mudamos nossa visão de mundo. De acordo com Maturana (1997 [1988a]: 170-171):

Todo sistema racional e, de fato, todo raciocinar, se dá como um operar nas coerências da linguagem partindo de um conjunto primário de coordenação de ações tomando como premissas fundamentais aceitas ou adotadas, explícita ou implicitamente, a priori. Acontece que toda aceitação apriorística se dá partindo de um domínio emocional particular, no qual queremos aquilo que aceitamos, e aceitamos aquilo que queremos, sem outro fundamento a não ser o nosso desejo que se constitui e se expressa em nosso aceitar. Em outras palavras, todo sistema racional tem fundamento emocional, e é por isso que nenhum argumento racional pode convencer ninguém que já não estivesse de início convencido, ao aceitar as premissas a priori que o constituem.

No emocionar, a dinâmica relacional muda, ao mudar a configuração de sua dinâmica estrutural interna, e esta mudança muda o âmbito relacional possível, bem como a própria dinâmica relacional modula a dinâmica estrutural interna, num bailar contínuo de modulação gerativa recíproca entre os domínios não intersectantes, embora imbricados sistemicamente da fisiologia e do comportamento. No ambiente, organismo e meio se provocam e se alteram mutuamente, mas a emoção tem seu lugar na relação com o outro ou com si próprio e não na fisiologia. Os resultados dos processos emocionais que são desencadeados nas interações e inter-relações do organismo no meio podem desencadear recursivamente novos processos nele mesmo, cuja fonte passa a ser independente da situação circunstancial e relacional do organismo que a lhe deu origem.

Desta maneira, o que vivemos é um fluir contínuo de emoções se constituindo como o fundamento de nossas ações e se entrelaçando com o linguajar no conversar. A conservação de um emocionar especifica aí o domínio de existência, os domínios de ações possíveis. Dessa forma, cada emocionar num ser vivo surge das coerências históricas particulares de seu viver

consigo mesmo e com outros. Nos seres humanos o emocionar segue um curso histórico que entrelaça o linguajar com o emocionar na conversação.

É o emocionar que orienta nosso movimento, nas conversações, a partir de diferentes domínios de ação, ao mesmo tempo que, no entrelaçamento do emocionar com o linguajar, nossas conversações orientam o fluir de nosso emocionar (Maturana, 1997 [1990b]: 227). Maturana afirma que as emoções não se expressam, mas se vivem e se fluem com elas. Nós nos movimentamos em nossa multidimensionalidade experiencial com nossas emoções. Entretanto, um observador, na linguagem, ao observar o comportamento de uma outra pessoa ou de si mesma, pode refletir sobre as regularidades operacionais do emocionar observado e assim pode falar do emocionar como um sentimento. Ao distinguir e nomear as regularidades do fluir relacional de um ser, que pode ser ele mesmo, um observador elabora uma reflexão, uma recursão na linguagem, na qual passa a descrever ele mesmo na relação, ao fazer uma apreciação na linguagem das dinâmicas corporais e comportamentais de um ser vivo num meio.

Esta é uma difusa dificuldade na nossa cultura: distinguir uma emoção de um sentimento. As emoções não necessitam da linguagem para ocorrer. Ao falar de emoção, pensamos em sentimento, e atribuímos à última, a noção de percepções corporais individuais, como é comum na tradição. Darwin (2000) distinguia as mudanças corporais como a expressão das emoções. Notem que James (1888), Damásio (1994) e Schumann (1997), por exemplo, tendem a definir a emoção como a percepção de mudanças corporais frente a situações que podem ser avaliadas negativamente ou positivamente pelo sistema nervoso central. Entretanto, para a Biologia do Conhecer, o sentimento aparece na conduta reflexiva, na recursão lingüística de um observador, na auto-apreciação do fluir interacional. É a reflexão que nos possibilita nos vermos na dinâmica emocional e agirmos de maneira congruente e coerente com ela, se assim desejarmos. Desta maneira, todo o ser vivo vive emoções, mas o ser humano, diferentemente de outros seres vivos, ao viver imerso no linguajar e no conversar, pode, ao se atentar para uma dinâmica relacional, fazer uma distinção na linguagem dando nome a um emocionar particular, o que podemos conotar na Biologia do Conhecer com a palavra sentimento. Maturana (1997 [1988a]: 170) indica que:

Dizer que o emocional tem a ver, em nós, com o animal, certamente não é novidade; o que estou acrescentando é que a existência humana se realiza na linguagem e no racional partindo do emocional. Com efeito, ao convidá-los a reconhecer que as emoções são disposições corporais que especificam domínios de ação, e que as diferentes emoções se distinguem precisamente porque especificam domínios de ações distintos, convido-os também a reconhecer que, devido a isso, todas as ações humanas, independente do espaço operacional em se dão, se fundam no emocional

porque ocorrem no espaço de ações especificado por uma emoção. O raciocinar também.

Maturana (Maturana e Block, 1996) argumenta também que, como ocidentais, que vivem uma cultura patriarcal, a emoção pode ser valorizada como boa ou má, positiva ou negativa dependendo do grau de interferência na razão. Falamos freqüentemente em controle de emoções, e assim acabamos por negá-las, nos deixando cegos de nós mesmos, de nossas emoções e, portanto de nossas ações. Se pararmos e olharmos para o nosso próprio emocionar, de maneira reflexiva, podemos atuar coerentemente com ele ou podemos mudar de domínio de ação, se assim o desejamos e se for possível dentre o complexo de variáveis envolvida (Maturana e Block, 1996: 117). Neste espaço do saber sobre o saber, do dar-se conta de nossas ações e emoções, abrimos espaço para uma atitude reflexiva responsável e ética, para uma autoconsciência relacional. Esta abordagem é radicalmente diferente do controle e gerenciamento de emoções.

Embora estejamos imersos num modo de vida que privilegia a ação, na Biologia do Conhecer, ação e reflexão devem seguir juntas entrelaçadas no nosso viver cotidiano. É no olhar reflexivo para as emoções, que surge junto da linguagem, que é possível refletir sobre o viver. Maturana (Maturana e Block, 1996) aponta que a reflexão é um ato de emoção no desapego, no qual se sai de uma certeza, de uma condição que nos cega e abre-se a mão para ver o que antes não víamos. O saber e a certeza negam a reflexão, pois não se reflete sobre o que se tem como certo. Na reflexão admitimos que não agimos mais numa certeza, e aí há um deslocamento.

Quando refletimos vivemos uma mudança na corporalidade e uma mudança na conduta, e aí podemos fazer coisas que antes não podíamos. No viver, em cada giro no espiral da recursividade, não se volta ao mesmo ponto de partida, mas se desloca no fluir estrutural e aí surge uma nova temporalidade, observação e dimensão relacional – uma contínua transformação do emocionar e da nossa circunstância. O viver é uma história de mudanças estruturais de curso recursivo e é por isso que surgem novos domínios de fenômenos no seu fluir. Ser vivo e circunstância mudam em conjunto de maneira coerente.

É nesta transformação recursiva no viver que a reflexão, como uma operação da emoção, na qual se desloca de uma certeza e se usa a razão, o linguajar, para observar o presente que se vive, desempenha um papel central, ao subordinar o fluir do viver ao emocionar, ao que ocorre nas nossas emoções. Este processo se dá, ao observarmos as circunstâncias que vivemos e como as vivemos. No olhar reflexivo, ao observar nosso próprio viver, agimos de acordo com nossas preferências, desejos, gostos e interesses de forma

consciente, responsável e ética. As ações que surgem como conseqüência da autoconsciência do que se vive ou se viveu depende do espaço emocional no qual uma pessoa entra depois do surgimento desta autoconsciência. Sua ação não fica condicionada à emoção presente na reflexão, mas pode passar a outro domínio no qual outros elementos e emoções podem entrar em jogo.