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4.4 AS APARENTES CONTRADIÇÕES ENTRE O TRIBUNAL PENAL

4.4.1 A entrega de nacionais

O primeiro conflito aparente entre uma norma do Estatuto de Roma e a Constituição Federal de 1988 é a entrega de nacionais para julgamento perante o Tribunal Penal Internacional.

Isso se deve ao fato do Estatuto de Roma dispor em seu artigo 89, § 1o que:

1. O Tribunal poderá dirigir um pedido de detenção e entrega de uma pessoa, instruído com os documentos comprovativos referidos no artigo 91, a qualquer Estado em cujo território essa pessoa se possa encontrar, e solicitar a cooperação desse Estado na detenção e entrega da pessoa em causa. Os Estados Partes darão satisfação aos pedidos de detenção e de entrega em conformidade com o presente Capítulo e com os procedimentos previstos nos respectivos direitos internos.31

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Entretanto, a nossa Constituição Federal de 1988 veda expressamente a extradição de nacionais. A referida proibição encontra-se inserida no artigo 5o, incisos, LI e LII, da Carta Magna, que dispõe, respectivamente:

Art. 5o - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, e à propriedade, nos termos seguintes:

LI - Nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei;

LII - não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião.32

Como afirma Mazzuoli:

[...] Tais incisos do art. 5o da Constituição, pertencendo ao rol dos direitos fundamentais, estão cobertos pela cláusula do art. 60, § 4o, IV, da mesma Carta, segundo a qual „não será objeto de deliberação proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais‟.33

Neste caso, as normas expostas nos incisos LI e LII do artigo 5o da Constituição Federal de 1988 são consideradas cláusulas pétreas e, por isso, não podem ser objeto de Emenda Constitucional que tenha por escopo as suas eliminações do ordenamento constitucional.

Tendo em vista a aparente incompatibilidade das normas mencionadas acima, surge a importância de explicar a diferença entre extradição e entrega, pois são institutos diversos, e a errônea equiparação de ambos causa a existência de conflito entre os dispositivos da Constituição Federal brasileira e o presente Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.

Neste sentido, é o pensamento de Fernandes, ao afirmar que:

[...] a entrega é a cooperação entre Estados e o Tribunal. É uma relação jurídica regida pelo princípio da complementaridade, ou seja, a jurisdição do Tribunal é de caráter excepcional e complementar, porque só seria exercida em caso de manifesta incapacidade ou falta de disposição de um sistema judiciário nacional para exercer a sua jurisdição primária. Já a extradição é um ato que diz respeito à cooperação entre Estados, regida pelo princípio da igualdade soberana ou como cooperação horizontal. Logo, os termos são distintos, não havendo incompatibilidade da entrega de nacionais, tornando-se por base a Constituição da República.34

O Estatuto de Roma expressamente faz a distinção, no artigo 102, entre entrega e extradição:

32 BRASIL. Constituição (1988). Loc. cit., p. 20. 33 MAZZUOLI, 2011, p. 85.

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Art. 102. Para fins do presente Estatuto:

a) Por „entrega‟, entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado ao Tribunal nos termos do presente Estatuto.

b) Por „extradição‟, entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado a outro Estado conforme previsto em um tratado, em uma convenção ou no direito interno.35

Desta forma, torna-se evidente a diferença entre a extradição e a entrega, e pela Constituição Federal brasileira de 1988, somente é proibida a extradição, “[...] não tendo o legislador constitucional se manifestado acerca da entrega, o que implica permissão se interpretado em consonância com o art. 7o do Ato das Disposições Constitucionais [...] e com o inc. III, art. 1o [...].”36 Estes artigos dispõem respectivamente que:

Ato das Disposições Constitucionais Transitória

Art. 7o O Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional dos „direitos humanos.‟

Constituição da República Federativa do Brasil

Art. 1o A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos:

III- a dignidade da pessoa humana.37

O Brasil, ao ratificar o tratado, obrigou-se fielmente a cumpri-lo, não medindo esforços para colaborar com o Tribunal. Ao proceder com a entrega de um nacional brasileiro a Corte, não significa que o Brasil está abdicando de sua soberania, pois, conforme menciona Taquary, “[...] a Corte não é estrangeira, mas órgão jurisdicional que compõe a organização judiciária dos Estados-partes, complementando-os. [...]”38, assim o Brasil, ao aceitar o Estatuto de Roma no seu ordenamento interno, passou a ser integrante do Tribunal Penal Internacional, sendo este uma extensão da jurisdição do Brasil.

Conforme menciona Lima e Costa, o Brasil está apto a cooperar com o Tribunal, pois,

[...] o Anteprojeto de lei para implementação do Estatuto traz para o ordenamento doméstico dispositivos legais necessários para a tipificação dos delitos, adaptação das normas processuais e regulação das formas de cooperação com o Tribunal de Roma.39

Logo, partindo dessa premissa, não há óbice constitucional, tendo em vista que a extradição é o ato de entrega de um nacional a outro Estado para que este exerça seu poder

35 Artigo 102 do Estatuto de Roma em anexo. 36

TAQUARY, 2008, p. 268.

37 BRASIL. Constituição (1988). Loc. cit., 2010, p. 156-13. 38 TAQUARY, op. cit., p. 269.

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punitivo, e a entrega diz respeito ao ato de entregar um nacional a um organismo internacional, no qual, o Brasil faz parte.

Portanto, não há violação ao artigo 5o, inciso LI, da Constituição Federal brasileira, inexistindo a inconstitucionalidade do instituto da entrega e, por isso, o Brasil está hábil para cooperar com o Tribunal Penal Internacional.

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