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Entrelaçando corpos e letras

A maioria dos grupos entrevistados acredita que o mercado esteja mais aberto ao segmento “pagode”, o porto mais seguro para os artistas, músicos e produtores que estão começando a investir no segmento de música comercial na Bahia. Essa tendência justifica, de certa forma, a proliferação de grupos de pagode nos últimos anos, em comparação com o segmento “axé”, que tem sobrevivido praticamen- te graças às bandas e artistas já consagrados. Essa lógica se traduz na existência de dois tipos de produção: uma mais próxima das expec- tativas das classes médias e a outra (pagode) dentro dos horizontes das classes populares. Por outro lado, no século XXI, a música ainda rotulada de “axé music” está se tornando, cada vez mais, uma vertente pop que

[...] já não se refere tanto à cidade que a engen- drou, alcançando autonomia com relação às temá- ticas iniciais. É um nicho da música produzida no Brasil que vibra, juntamente com outras tradições locais e regionais no mundo inteiro, em freqüên- cias que vêm conectá-la com a música do mundo. (MOURA, 2009, p. 16)

O fato de estar investigando um objeto tão presente e em franco crescimento faz pensar nos rumos da atual música denominada “pago-

de” que se abre para outras propostas em número reduzido de varian- tes de temas, conservando discursos já consagrados e naturalizados. O veio produtivo da linguagem musical é a lógica do “em time que está ganhando não se mexe”.

Uma análise ainda que superficial dos grupos44 que surgiram

a partir do início desta pesquisa, iniciada em 2008, até o momento atual, revela que, progressivamente, os efeitos do backlash aponta-

do por Susan Faludi(2001) reverberam em novos ataques. Faludi

denomina de backlash o contra-ataque às conquistas femininas que se caracteriza por um discurso machista que conseguiu enredar praticamente todo o tema relacionado aos direitos da mulher em sua própria linguagem, contribuindo assim para exacerbar as an- gústias femininas e quebrar a vontade política. Para essa autora, o backlash começa a se intensificar na década de 80 e se expres- sa em diferentes áreas da cultura, como a mídia, o cinema, a TV, a moda, na indústria da beleza, incidindo, principalmente, sobre o corpo das mulheres.

Para ela, “o medo e a intolerância em relação ao feminis- mo são uma espécie de condição viral da nossa cultura, isto não quer dizer que eles sempre se manifestem em sua fase aguda; os sintomas permanecem e periodicamente voltam à tona.” (FALUDI, 2001, p. 18)

O panorama do pagode na Bahia, hoje, é eminentemente hete- rogêneo musicalmente falando, mas a investida sobre a mulher, sobre seu comportamento, é, na maioria das letras, desqualificadora, exi- gindo uma atitude submissa e demonizando as conquistas feministas, o que, como uma onda, vai penetrando nas camadas populares.

44 Para citar alguns grupos, destaco aqui os mais evidentes: Ragathoni, grupo comandado

por Toni Sales, ex-integrante do É o tchan, mais conhecido pelo público por ser casado com a ex-dançarina Sheila Carvalho e como ex-vocalista do grupo. Seguindo uma linha mais próxima da proposta do Black Style, temos os grupos O Troco, A Bronka, Nostyllo, É Xeque e Flavinho e seus barões, comandado por um dos ex-integrantes do Pagodart. Seguindo uma linha de temas mais políticos, voltados para as questões sociais e raciais, segue o Sam Hop, banda comandada por um ex-vocalista dissidente da banda Parangolé, que segue uma vertente mais próxima do Fantasmão.

A tendência é misturar e apostar na criatividade para inovar e,

para tanto, surgem novas denominações, como “transpagode”,45 que

diluem, ainda mais, as fronteiras entre o que é samba e o que é pago- de. A única certeza é que, enquanto não se consolidam novos rótulos, já que a indústria cultural e a mídia precisam deles para legitimar e reforçar os mecanismos de dominação, nós, pesquisadores(as), se- guimos buscando novos referenciais teóricos na contemporaneida- de. Em se tratando da música que ainda é pagode, segue em curso o discurso da modernidade tardia e inconclusa.

Nessa parte do trabalho, busco observar as transformações estilísticas, estruturais e determinadas permanências, os efeitos musicológicos diferenciadores (melodia, harmonia e ritmo), os re- cursos cênicos utilizados pelos diversos grupos para produzir os efeitos de sentido no conjunto da obra e, do ponto de vista sin- crônico, verificar o tratamento dessa temática nos diferentes gru- pos, a recorrência de determinadas formações discursivas que se mantiveram ao longo dessa produção, além de possíveis rupturas e mudanças nos discursos. Pretende-se observar a recorrência das

temáticas nos diferentes grupos.46 Em decorrência das questões de

pesquisa, a escolha recaiu sobre as letras cuja temática central é a mulher e os modos como é representada, bem como as relações de gênero ali postas, não esquecendo a articulação com as outras categorias que se interpenetram, quer seja classe, raça/etnia e/ou geração e o hibridismo cultural baiano.

45 Expressão usada por Caetano Veloso para definir a música produzida pelo grupo Psirico

no seu blog Obra em progresso.

46 Os nomes das bandas e dos(as) entrevistados(as) são omitidos, neste trabalho, para preser-

var a privacidade dos mesmos. As entrevistas fazem parte do trabalho de campo, e foram realizadas com músicos, compositores e produtores das bandas relacionadas ao corpus, assim como com fãs e integrantes de oficinas realizadas ao longo do percurso da pesquisa. Reconheço que, em virtude da grande quantidade de letras e da diversidade de grupos, não terei como dar conta de fazer uma análise abrangente de todas elas, o que me obriga a fixar minha análise nos objetivos propostos para a pesquisa. No entanto, reconheço que uma visão mais completa e complexa dessas letras pode contribuir para uma melhor com- preensão do objeto.