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Enunciação e enunciado, enunciação enunciada e enunciado

3.2. Fontes do Direito

3.2.3. Enunciação e enunciado, enunciação enunciada e enunciado

Tomando o homem como fonte do direito e adotadas as categorias propostas pelo novo modelo teórico, os fatos jurídicos criadores de normas e os instrumentos introdutórios entram em cena como componentes do binômio processo/produto. De fato, a produção normativa, enquanto ocorrência social juridicizada por normas que regulam a criação de normas, adquire o status de processo. É o processo de criação do direito. A atividade legislativa (em acepção ampla) é um processo.

E, como resultado desse processo, surge um instrumento introdutor (norma introdutória), o qual veicula enunciados prescritivos (normas introduzidas) em um suporte físico (documento normativo) a partir dos quais são construídas as normas jurídicas (significações). É o produto.

Assim, os fatos jurídicos criadores de veículos introdutores e os enunciados prescritivos introduzidos formam o binômio processo/produto daquilo que chamamos gênese do direito. Em termos lingüísticos, a criação de enunciados (o processo) é a instância discursiva da enunciação; já os enunciados criados (o produto), a outra instância, do enunciado. No ponto, destaca JOSÉ LUIZ FIORIN218 que a enunciação é a instância constitutiva do enunciado.

Esclarece, ilustrando, EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI:

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O ato de pintar é enunciação; o quadro pintado, enunciado. O ato de legislador é enunciação; a lei, enunciado. O ato de julgar, enunciação; a sentença, enunciado. A prática do ato administrativo, enunciação; o ato administrativo produzido, enunciado. Finalmente, o processo é enunciação; o produto, enunciado.219

No direito, enunciar é criar normas jurídicas.220 É a enunciação criando

linguagem prescritiva e o enunciado como a linguagem criada. Todavia, se o direito se manifesta em linguagem e a enunciação é a instância criadora dos enunciados, qual o seu revestimento lingüístico? Aparecem, nesse momento, as figuras da enunciação enunciada e do enunciado enunciado.

O enunciado enunciado é exatamente aquilo que se enunciou, ou seja, o conteúdo do produto da atividade humana de criação normativa, objetivado no documento normativo. A enunciação enunciada é o conjunto de marcas, com referências a tempo, espaço e pessoa, identificáveis no próprio texto jurídico (nos enunciados enunciados), que remetem à instância da enunciação,221 permitindo a identificação do órgão e procedimento (presumivelmente) observados na atividade de produção normativa.

Note-se, a enunciação enunciada somente remete à instância da enunciação, com esta não se confundindo. São marcas daquela instância. E como marcas da enunciação,222 permitem àquele que toma contato com o produto legislado percorrer o caminho inverso (do produto para o processo), até o ponto inicial da instância de produção normativa. Ao completar a trajetória da enunciação, aí sim, estará revelada toda a complexidade inerente ao exercício da função legislativa.

Bem por isso, registra TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM que Esta (produção normativa) será reconstruída por meio daquele (fato enunciação-enunciada) com o auxílio das provas em direito admitidas .223 E sendo necessário mais linguagem, que

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Decadência e prescrição no direito tributário, 2000, p. 63.

220 Admitindo que, respeitados seus limites ontológicos, o direito cria suas próprias realidades, ilustramos com essa interessante passagem de JOSÉ LUIZ FIORIN: O primeiro capítulo do Gênesis é uma metáfora da enunciação, porque a enunciação cria qualquer mundo. Enunciar é criar. Deus disse: Faça-se a luz . E a luz fez-se (As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo, 1999, p. 42).

221 EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Decadência e prescrição no direito tributário, 2000, p. 63-64. 222 Segundo EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, são ... as marcas do processo que ficam no produto ... (Decadência e prescrição no direito tributário, 2000, p. 64).

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se produza mais linguagem. Que se lance mão da teoria das provas. Que venham os documentos internos das Casas Legislativas, cujos enunciados registram, em detalhes, o iter do processo legislativo, e que são, ademais, textos jurídicos, linguagem competente para constituir em fatos jurídicos os eventos que relatam.224

A enunciação enunciada possibilita a (re)construção da instância da enunciação (processo legislativo). As marcas de tempo, espaço e pessoa (enunciação enunciada) que remetem à instância da produção normativa (enunciação) são dados objetivados nos documentos normativos (enunciados enunciados) a partir dos quais é possível controlar a validade do produto legislado.225

Os dados inscritos no texto do documento normativo são reveladores do órgão credenciado e do procedimento adotado, indicando essas marcas as referências a quem (pessoa) se valeu de um veículo introdutor, produzindo documento normativo, ao respectivo local (espaço) e à data (tempo). Note-se que as marcas de pessoa inscritas no corpo dos documentos normativos (nos enunciados enunciados) indicam os seres humanos produtores dos documentos e dos seus enunciados prescritivos, como se verifica a partir dos nomes, por exemplo, dos parlamentares que promulgam emendas à constituição, das autoridades que editam as leis complementares e ordinárias, dos magistrados que assinam as decisões judiciais, dos agentes do Poder Executivo que praticam atos administrativos, dos particulares que assinam contratos, mesmo quando o fazem como representantes de pessoas jurídicas.

Com isso, pensamos estar definitivamente evidenciado que a dinâmica do sistema jurídico tem nos seres humanos seu foco ejetor de normas jurídicas. O direito não é previamente elaborado para ser entregue ao homem, não tem origem divina ou em pressuposto metafísico. Nada disso. É um corpo de linguagem prescritiva criado pelo ser humano. É o homem e somente ele o criador do direito, e por isso exibe a identidade de fonte do direito.

224 Cabe destacar que os eventos verificados no âmbito do processo legislativo são juridicizados pelas normas internas dos órgãos legislativos. Aliás, anota GERMANA DE OLIVEIRA MORAES, que ... tradicionalmente, sempre coube aos regimentos das casas legislativas regular, dentre outras atribuições parlamentares, a referente a produção legislativa (O controle jurisdicional da constitucionalidade do processo legislativo, 1998, p. 29). 225 EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI, Decadência e prescrição no direito tributário, 2000, p. 64, e GABRIEL IVO, Norma Jurídica: produção e controle. Tese (Doutorado em Direito) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2004, p. 165-175.

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