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Mapa 06 Rota das embarcações apreendidas em 1835

2. O CEARÁ NA REPRESSÃO AO TRÁFICO DO ATLÂNTICO

2.1. O “escandalozo trafico”: de 1831 a 1850

A Lei de 07 de novembro de 1831, que declarou livres todos os africanos vindos de fora do Império,46 representou uma nova fase da repressão ao comércio de escravos no

Brasil. Se a legislação antitráfico do início do século, o Tratado de 1815, a Convenção de 1817 e o Alvará de 1818, foi pautada nos acordos bilaterais entre Portugal e Inglaterra, a Lei de 1831, inaugurou a fase nacional do combate ao tráfico de africanos.

Foi a intenção dos legisladores e do governo, portanto, divulgar a intolerância da Regência com a continuação do comércio de escravos, e estabelecer um sistema de

45 Lei nº 581, de 04 de setembro de 1850. Estabelece medidas para a repressão ao trafico de africanos neste Imperio. In: Collecção das Leis do Imperio do Brasil, 1850. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, p. 267. Ver Anexo F.

46 Lei de 07 de Novembro de 1831. Declara livres todos os escravos vindos de fora do Imperio, e impõe penas aos importadores dos mesmos escravos. In: Colleção das Leis do Imperio do Brazil, 1831, Primeira Parte, p. 185. Ver Anexo B.

repressão próprio, com penalidades baseadas no código criminal brasileiro, ignorando o papel do tribunal de comissão mista e os acordos bilaterais impopulares, em que este baseava suas atividades.47

A apreensão da chalupa Syrene por está envolvida no comércio ilícito de escravatura em 1819 no Ceará, apesar de ser um caso dissonante para o período em que ocorreu, logo após a publicação do Alvará de 1818, é um exemplo de que as autoridades locais não estavam totalmente alheias à legislação, e de que muitos delas estavam dispostas a cumprí-la.

Em 12 de outubro de 1832, o governo do Ceará acusou recebimento do Decreto de 12 de abril de 1832,48 que “serve de regulamento para obstar o trafigo vergonhozo dos

pretos Africanos”.49 Portanto, as informações sobre a nova legislação não demoraram a

chegar à província. No final do mesmo mês, um aviso do Ministério da Marinha informava que em diversos pontos da costa do Imperio ainda se continuava a fazer contrabando de escravos, com “grande offensas das Leys e Tratados que prohibem tão deshumano trafico”. Recomendava o emprego das mais enérgicas providências para se obstar “quanto se possa nessa Provincia a semelhante abuzo” e que as autoridades dos distritos a beira mar estivessem em alerta.50 Era necessário também prevenir aos comandantes dos navios de guerra da

armada,

que por qualquer motivo ahi aportarem, que deverão seja no seguimento de suas Comissões, seja na volta dellas, visitar aquellas Embarcações que encontrarem implicadas naquelle escandalozo trafico e em tal cazo, apprehendê-las para se proceder a respeito dellas na forma da Ley.51

É interessante as expressões utilizadas para definir o comércio ilícito: “deshumano trafico”, “vergonhozo trafico”. Havia uma conotação moral embutida nessas expressões, que foi muito bem captada por Jaime Rodrigues, ao discorrer sobre os traficantes e seu “infame comércio”.

47 MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. To be a liberated African in Brazil: labour and citizenship in the nineteenth century. Waterloo: University of Waterloo, PhD, History, 2002, p. 21.

48 Decreto de 12 de abril de 1832. Dá regulamento para a execução da Lei de 7 de Novembro de 1831, sobre o trafico de escravos. In: Colleção das Leis do Imperio do Brazil, 1832, Segunda Parte. Rio de Janeiro, Typographya Nacional, 1874, p. 100. Ver Anexo C.

49 Arquivo Nacional (AN). Série Justiça: Gabinete do Ministro. Correspondência dos Ministros da Justiça com os Presidentes da Província do Ceará, 1832, IJ1 719. Ofício do presidente da província do Ceará, José Mariano de Albuquerque Cavalcanti, ao ministro da justiça, Pedro de Araujo Lima, n° 15, 03 de outubro de 1832. 50 APEC. Fundo: Ministérios. Livro de Registros do Ministério da Marinha aos Presidentes do Ceará, n° 82, 1828-1834. Aviso do ministro da marinha, Antero José de Brito, ao presidente da província do Ceará, José Mariano de Albuquerque Cavalcanti, n° 03, 29 de outubro de 1832.

A partir do momento em que a noção de “corrupção dos costumes” ganhou corpo e o negro passou a ser descartado como componente majoritário de um “povo ativo, útil e morigerado”, a figura do traficante também passou por um processo de transformação. Os traficantes eram considerados “pessoas malvadas” em 1833 [...].52

Notou-se também que o presidente da província do Ceará preferiu dizer “pretos africanos” enquanto que o ministro da marinha falou em escravos. Força de expressão? O primeiro parecia reconhecer a ilegalidade da escravidão ocorrida lá na África. Percebe-se, portanto, as palavras empregadas também revelam as concepções dos atores envolvidos.

Já em 06 de novembro, um aviso do Ministério da Justiça com um conteúdo bastante curioso, “relativamente a pretendida introducção de espadas para armar negros”. Não foi possível descobrir detalhes a respeito do caso, mas o presidente comunicou que iria “tomar as necessárias cautellas a fim de serem aprehendidas não só essas como todas as mais que com tal destino vierem parar nos Portos desta Provincia”.53 A década de 1830 apresentou uma

série de turbulências, em que sujeitos das mais diversas camadas sociais estavam envolvidos, inclusive, aqueles que faziam parte da “última camada da sociedade”, como, por exemplo, os pobres livres ou escravos.54

Na década de 1840, o governo reconhecia que o tráfico ainda continuava e que os traficantes haviam se adaptado à nova realidade imposta pela Lei de 1831. Muitos deles ao perceber as dificuldades de chegar diretamente ao Rio de Janeiro pela vigilância dos cruzeiros ingleses recorreram a estratégia de,

Importar para vários pontos da costa de algumas Provincias do Norte, principalmente Pernambuco e Bahia, os ditos Africanos a fim de transportá-los para este porto do Rio de Janeiro, em embarcações de cabotagem, [...] dê todas as providencias ao seu alcance para embaraçar semelhante abuso, fasendo examinar cuidadosamente, quando hajão motivos de suspeita, os pretos que n’aquellas embarcações seguirem dos portos d’essa Provincia para este, afim de averiguar se são boçaes e proceder-se na conformidade da Lei.55

A estratégia descrita pelo ministro da justiça foi a mesma utilizada pelos traficantes responsáveis pelas duas embarcações apreendidas em 1835 no Ceará, com 167

52 RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico (1800-1850). Campinas: Editora da Unicamp – Cecult, 2000, p. 128.

53 AN. Série Justiça: Gabinete do Ministro. Correspondência dos Ministros da Justiça com os Presidentes da Província do Ceará, 1832, IJ1 719. Ofício do presidente da província do Ceará, José Mariano de Albuquerque Cavalcanti, ao ministro da justiça, Honorio Hermeto Carneiro Leão, n° 18, 06 de novembro de 1832.

54 VIEIRA, Jofre Teófilo. Uma tragédia em três partes: o motim dos pretos da Laura em 1839. Fortaleza/CE: Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Ceará/UFC, 2010.

55 APEC. Fundo: Ministérios. Livro de Registros do Ministério da Justiça aos Presidentes do Ceará, n° 39, 1841-1843. Aviso do ministro da marinha, Paulino José Soares de Souza, ao presidente da província do Ceará, José Joaquim Coelho, s/n, 06 de dezembro de 1841.

africanos. Segundo os relatos dos transportadores, o destino do carregamento era o Cabo Branco, na Paraíba, mas acabaram chegando a Assú, no Rio Grande do Norte, onde realizaram a mudança do contrabando para dois navios. A facilidade e a rapidez com que realizaram a transferência indicam que a localidade já era bem conhecida pelos negociantes. De um navio negreiro, buscava-se camuflar e passar a ser identificado com a navegação de cabotagem, portanto, realizando um comércio lícito. Após 1831, os portos naturais, distantes das capitais provinciais, passaram a ser visados pelos comerciantes negreiros, para desembarcar a “carga humana” de forma segura.56

O desembarque de mais de 400 africanos nas praias do Pitimbú, na Paraíba, em fevereiro de 1836, é um exemplo. Segundo as informações do vice-presidente da Paraíba, Manoel Maria Carneiro da Cunha, ao presidente do Ceará, José Martiniano de Alencar, após o desembarque, os africanos foram conduzidos em pequenos lotes para o centro da província, alguns deles foram levados para as províncias limítrofes. É interessante perceber que o carregamento apreendido em 1835 no Ceará destinava-se à Paraíba. Mas a indicação de que alguns dos africanos foram conduzidos para o interior e de lá passaram para outras províncias permite deduzir que os destinos desses sujeitos eram realmente Pernambuco.57

Para o ministro, as suspeitas de tráfico teriam que ser fundadas em algo concreto, como, por exemplo, “quando seja muito avultado o seu numero”, e não em meras especulações. O governo imperial pretendia ao mesmo tempo “empregar todos os meios ao seu alcance para reprimir o trafico, não quer de modo algum os subditos do Imperio e pôr estórvos ao nosso Commercio de Cabotagem”, afinal, este além de facilitar a comunicação, o transporte de pessoas e cargas, a “marinhagem he em grande parte composta de pretos escravos”.58 Havia um grande dilema a ser resolvido, já que os contrabandistas tinham criado

um estratagema para burlar a fiscalização. Ao mesmo tempo em que o governo pretendia reprimir o “escandalozo tráfico”, não queria abrir uma frente perigosa de contestação da propriedade privada e se indispor com a classe senhorial, já que atingiria desde os senhores de escravos aos grandes negociantes, muitos deles, inclusive, donos de embarcações ligadas ao

56 A presente discussão será tratada em detalhe no início do capítulo 4: 1835: “Duas embarcações com hú contrabando de africanos”. Ver também: CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel de. O desembarque nas praias: o funcionamento do tráfico de escravos depois de 1831. Revista de História. São Paulo, n. 167, p. 223-260, julho/dezembro de 2012.

57 BR.APEC.GP.CO.EX.ENC. 21, 1832-1836. Ofício do presidente da província do Ceará, José Martiniano de Alencar, ao presidente da Paraíba, Manoel Maria Carneiro da Cunha, 02 de março de 1836, fl. 173.v.

58 APEC. Fundo: Ministérios. Livro de Registros do Ministério da Justiça aos Presidentes do Ceará, n° 39, 1841-1843. Aviso do ministro da justiça, Paulino José Soares de Souza, ao presidente da província do Ceará, José Joaquim Coelho, s/n, 06 de dezembro de 1841.

comércio de cabotagem. Afinal, como bem apontou Tâmis Parron, “entre a presunção da liberdade e a presunção da posse, o Estado brasileiro, no curso da centralização judiciária do Regresso, deveria optar pela última e consagrar, em linguagem moderna, a segurança jurídica”.59

A intromissão inglesa nos assuntos da repressão ao tráfico deixava o governo imperial em maus lençóis. Em 10 de outubro de 1842, uma correspondência do ministro da justiça, Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho ao ministro das relações exteriores, Paulino José Soares de Souza, o visconde do Uruguai, foi repassada a todas as províncias, em que é possível ver que o governo central havia reclamado a sua majestade britânica “contra a pratica abuziva de estarem os cruzeiros Inglezes retendo a bordo de uma preziganga da sua Nação neste porto os subditos brazileiros encontrados nas embarcações negreiras apprehendidas”, até que houvesse o julgamento. A rainha da Inglaterra atendeu a solicitação brasileira, mas “manifestou o desejo” de que, aquelas pessoas que fossem presas por contrabando de africanos ou julgadas criminosas por “infraccão dos Tratados, e Leis, que vedão o trafico de negros, não se evadão das prizões, e sejão effectivamente punidos”.60

A falta de punição era alarmante. Tanto o governo brasileiro quanto o inglês eram conscientes disso. Havia capturas, mas poucos traficantes eram efetivamente julgados. O caso da apreensão de 1835 no Ceará foi um deles. Os carregadores foram presos, mas em nenhum momento se fala da formalização do processo. Há um silêncio profundo sobre a questão. Não se registrou o nome embarcação, o do capitão, não foi feita nenhuma listagem da tripulação. Houve uma censura oficial sobre os dados dos responsáveis pelo contrabando. Eles literalmente sumiram do mapa. Apesar disso, José Ferreira Lima Sucupira e Francisco Antonio Pereira apresentaram ao Ministério da Justiça um requerimento pelo prêmio da apreensão realizada por eles em 1835. A solicitação não foi atendida porque “não houve pessoa idonea, que satisfizesse as multas pelo contrabando dos Africanos”.61

Segundo Jaime Rodrigues, os dois governos, o brasileiro e o inglês, estavam envolvidos em negociações “problemáticas” em relação aos termos de um novo tratado para por fim ao comércio de escravos, porque ambos os lados infringiam os acordos anteriores. Os

59 PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 159.

60 APEC. Fundo: Ministérios. Livro de Registros do Ministério da Justiça aos Presidentes do Ceará, n° 39, 1841-1843. Ofício do ministro das relações exteriores do Brasil, Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho ao ministro da justiça, Paulino José Soares de Souza, s/n, 10 de outubro de 1842.

61 BR.APEC.GP.CO.EX.ENC. 30, 1835-1840. Ofício do presidente da província do Ceará, José Martiniano de Alencar, ao ministro da justiça, Antonio Paulino Limpo de Abreu, n° 17, 18 de abril de 1836, fl. 28.

ingleses “não respeitavam a Convenção de 1817, que proibia a visita ou detenção de navios em portos ou enseadas do Império”, e os brasileiros não cumpriam “o tratado de 1826, que proibira o tráfico de africanos a partir de 1830”.62 Para ele,

A recusa sistemática do governo brasileiro em assinar um novo tratado nos moldes em que o governo britânico desejava levaram ao fim das negociações e à promulgação unilateral do bill Aberdeen, em 8 de agosto de 1845. Tratava-se de uma lei que autorizava o governo inglês a julgar os navios brasileiros como piratas, em tribunais ingleses, quaisquer que fossem os locais onde ocorressem as capturas.63

A promulgação do bill Aberdeen levou o conflito entre Brasil e Inglaterra a um novo patamar. A elite política se viu forçada a encaminhar uma solução adequada para o problema, para salvar “a honra, os interesses senhoriais e a dignidade nacional”.64 Para

Parron, a mais dura lição que os brasileiros tiraram do episódio foi que, “apesar das publicações e do protesto oficial contra o bill Abeerden, a posição internacional do país se deteriorou rapidamente em isolamento diplomático entre 1845 e 1848”. De acordo com Parron, “nenhuma nação apadrinhou expressamente a causa negreira do Brasil, e Portugal e França se engajaram na perseguição de embarcações sob o pavilhão imperial”.65

Não se propõe que a versão clássica da pressão inglesa seja a única responsável pela Lei n° 581, de 04 de setembro de 1850, que estabeleceu medidas para a repressão do tráfico de africanos no Brasil. Aqui, enfatizou-se este viés pela discussão presente na documentação, mas se compartilha com a compreensão de alguns autores, em especial, Jaime Rodrigues, que apresenta diversas motivações, como, por exemplo: a maior coesão de parcelas da elite política; o esgotamento do projeto de construção do mercado de mão de obra baseado exclusivamente nos escravos africanos; a vinculação entre a “corrupção dos costumes” e a escravidão; a manutenção dos direitos sobre as propriedades escravas já existentes; a brandura policial e judicial para com os senhores que adquiriam escravos frutos de contrabando e, aliadas a tudo isso, as diversas formas de resistência dos cativos, algumas mais agudas, como as ações coletivas, que geravam um medo real na classe senhorial.66

62 RODRIGUES, Jaime. Op. Cit., p. 114. 63 Idem. Ibidem, p. 115.

64 Id. Ibid, p. 119.

65 PARRON, Tâmis. Op. Cit., p. 231.

66 RODRIGUES, Jaime. O fim do tráfico transatlântico de escravos para o Brasil. In: KRINBERG, Keila e SALLES, Ricardo (organizadores). O Brasil Imperial, volume II: 1831-1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 331.