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Escola e Conferência de Educação Escolar Indígena na Reserva Indígena de Dourados

4 FAZENDO ACONTECER

4.1 Escola e Conferência de Educação Escolar Indígena na Reserva Indígena de Dourados

Imagem 8. Jovem indígena com cartaz produzido por seu grupo de debates durante a conferência local de educação escolar indígena. Escola Tengatuí, aldeia Jaguapiru, município de Dourados, MS. Maio de 2009.

Fonte: acervo próprio.

A reserva indígena de Dourados, como discuto em capítulo anterior, tem proximidade com a cidade e isso fica evidenciado nas práticas escolares. Por outro lado, Dourados é o único município, daqueles habitados por Guarani e Kaiowá, que tem um gestor de educação escolar indígena na secretaria municipal de educação, desde 2001.

A reserva é habitada pelas etnias Guarani, Kaiowá e Terena. Muitas crianças indígenas aprendem o Português como primeira língua e a alfabetização é feita nesta língua. A língua indígena, Guarani ou Terena, entra no currículo a partir do sexto ano, em horários específicos.

A proximidade com a cidade de Dourados, que conta com duas universidades públicas e duas particulares, favorece a formação de professores em nível superior, principalmente nas áreas humanas. As formações, na maior parte dos casos, não acontecem segundo metodologias diferenciadas e específicas constituídas para os povos indígenas.

Essa é uma característica que diferencia a aldeia de Dourados em relação às outras, que se localizam em municípios que não contam com universidades; com exceção da aldeia Amambai, próxima da Unidade da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, que se localiza no município de Amambai e oferece os cursos de História e Ciências Sociais, ambos com estudantes indígenas. Nesse caso, o caminho privilegiado para a formação de professores são os cursos Ára Verá (nível médio) e, mais recentemente, o Teko Arandu (nível superior), por serem oferecidos segundo a metodologia da alternância, o que permite que o professor indígena se forme em atividade.

Na reserva de Dourados existe, também, um grupo de professores que passou pelo magistério indígena. Esses professores sempre expressam, em seus relatos, a dificuldade de implantarem pedagogias diferenciadas em suas escolas ou em suas salas. Isso acontece mesmo que tenham recebido formação que privilegia metodologias alternativas e promova reflexões sobre a especificidade da educação escolar indígena as quais apontam para eixos epistemológicos que contemplem a cultura, a língua, a história e o território.

Por outro lado, é frequente ouvir relatos sobre o fato das crianças, nestas escolas, chegarem ao quinto ou sexto ano sem saberem escrever ou ler. Durante o ano de 2009, através dos relatos dos professores que integravam os cursos de formação de professores, acompanhei os conflitos oriundos das percepções diversas sobre a educação escolar nessa aldeia.

A situação de proximidade com a cidade e a densidade demográfica são apresentadas, especialmente por parte dos professores formados a partir de uma matriz pedagógica de cunho neoliberal, como fatores que exigem uma educação que faça com que o índio “possa competir no mercado de trabalho”. Os professores relatam que as famílias entendem que seus filhos e filhas aprendem a língua guarani em casa, e que a escola deve ensiná-los a falar a língua portuguesa, formando-os para que, futuramente, possam conseguir trabalho na cidade. Isso parece um paradoxo, porque, durante todo esse tempo que vivi na cidade, não constatei indígenas trabalhando em empresas na área urbana, a não ser eventualmente como domésticas. O principal trabalho que exercem fora da reserva é na área rural, especialmente nas fazendas, ou nas usinas.

As concepções de gestores e de professores se dividem e, na falta de um consenso, a escola não atende aos preceitos constitucionais da especificidade, dos modos próprios de

aprendizagem, do direito à alfabetização na língua materna indígena. Enfim, a escola não se traduz em um espaço de autonomia e reproduz práticas arraigadas e pedagogias que não permitem transformar as situações que vivenciam.

A imagem abaixo mostra um pouco dessa contradição. A fotografia foi feita durante a Conferência Local em uma das escolas da Reserva Indígena.

Imagem 9. Distribuição de cestas básicas. Reserva indígena de Dourados. Fotografia feita por ocasião da Conferência Local de Educação Escolar Indígena. Maio de 2009.

Fonte: Acervo próprio.

O número de pessoas presentes à distribuição de cestas básicas contrastava com o número de pessoas presentes à reunião da Conferência Local de Educação Escolar Indígena e sugere a dependência da comunidade em relação à política pública de distribuição de alimentos. Por outro lado, indica a ausência de autonomia dos Guarani e Kaiowá. Diante dessa situação, em que pese a situação territorial da aldeia em questão, a primeira preocupação é a de que a escola proporcione os saberes necessários para conseguir trabalho remunerado.

Na reserva de Dourados, a fragmentação e as divergências políticas não permitem a articulação de proposta diferenciada a esse perfil, na elaboração de estratégias visando à

autonomia. A existência de múltiplas famílias extensas, que buscam atender aos seus interesses imediatos, não permite a formulação de propostas de cunho mais abrangente. É preciso salientar que, segundo Pereira (2004), dentro da organização social Guarani e Kaiowá é considerado legítimo que cada família busque atender aos interesses de sua parentela. Em um espaço onde múltiplas parentelas se sobrepõem, os conflitos de interesse são constantes. Essa perspectiva fica reforçada a partir de Benites, que descreve as formas para obtenção de cargos e privilégios familiares, dizendo que “cada família kaiowá emerge com estratégias diferentes, frente ao avanço da implementação de políticas públicas indigenistas vinculadas à dominação neocolonial”. (BENITES, T, 2009, p. 21).

Neste sentido, as denúncias sobre a agressão aos direitos humanos adquirem o primeiro plano, sem se perceber uma proposta que agregue os vários grupos e que permita responder às necessidades da comunidade, da qual a própria, enquanto grupo, seja a protagonista. Isso fica evidente na ausência da categoria de território como eixo principal das reivindicações, ainda que aos olhos de lideranças indígenas daquela localidade e de outras, assim como de indigenistas, esse seja o principal aspecto a afetar a organização tradicional dos Guarani e Kaiowá.

As perspectivas mostram-se diferenciadas, também, em relação ao envolvimento dos índios no processo de discussão. Os saberes e subjetividades colocados em ação no envolvimento político têm sido conceituados na literatura internacional, mais recentemente, através do termo “agency” (ORTNER, 2007), cuja tradução por “agência” não permite um nível satisfatório de compreensão. Pacheco (2006) utiliza o termo “criatividade” para descrever aquelas situações para as quais caberia o termo “agency”, mas utiliza também a noção de estratégias, para pensar ações de interferência planejadas com um propósito definido. Neste sentido, a estratégia é construída a partir de determinadas experiências, iniciando uma série de ações, de avanço e ou recuo, com efeitos práticos e simbólicos, envolvendo pessoas e ou instituições, com vistas a um fim.

Junto aos Guarani e Kaiowá, é frequente observar estratégias coletivas, que contam com o apoio das organizações não governamentais, mas também é possível vislumbrar os privilégios auferidos no nível pessoal. Os próprios integrantes do povo procuram fazer o controle social desses níveis de privilégios, e o privilegiado deve ser capaz de manter o fluxo de bens materiais ou simbólicos para não cair em descrédito.

Na reserva de Dourados, as estratégias de ação coletivas ficam comprometidas pelo próprio contexto social, estabelecido a partir da fragmentação do modo de vida indígena.

4. 2 A conferência local de educação escolar indígena na aldeia Te’ýikue

Na aldeia Te’ýikue, com um histórico de intensa participação da comunidade e dos professores nas discussões sobre os projetos de futuro do povo, a conferência local foi realizada através de uma metodologia amplamente participativa. Pais, mães, estudantes, lideranças, representantes de ONG’s, universidade, secretaria municipal, foram convidados, As reuniões aconteceram nas várias salas da escola, presentes nas microrregiões e, depois, em uma reunião geral. A situação da educação escolar indígena na aldeia foi objeto de ampla reflexão e as discussões foram base para um documento expressivo a respeito do que os Guarani e Kaiowá pretendem da escola.

O histórico que levou a esse momento é registrado por Batista (2005), pesquisadora que ocupou o lugar de secretária de educação no município de Caarapó por seis anos e tornou- se vice-prefeita do município. Em estudo sobre a educação escolar indígena no município, registrou que, ao assumir a Secretaria Municipal de Educação, em 1997, se deparou com um índice de reprovação de 47% e evasão escolar em 22%, que apresentavam a necessidade de entender a questão indígena, para poder implementar as políticas públicas educacionais garantidas pela Constituição. Como a própria autora enfatiza, ao narrar sua experiência com a educação escolar indígena, enquanto gestora municipal, até então ela desconhecia qual era a etnia dos mais de três mil indígenas que viviam há poucos quilômetros de sua casa. (BATISTA, 2005).

No processo de implantação de uma escola indígena diferenciada, a secretária se deparou com a necessidade de, primeiramente, convencer os Guarani e Kaiowá da Aldeia Te’ýikue a respeito da validade da proposta. Para que ela se tornasse viável, seria necessário estudar os parâmetros jurídicos que envolvia a presença da escola em territórios indígenas, assim como a história e cultura guarani e kaiowá; colocar em prática direitos constitucionais; contratar professores indígenas e promover sua formação, na medida em que ainda não tinham concluído seus estudos; contribuir para o fortalecimento do movimento de professores indígenas, no que dizia respeito à luta por formação específica e diferenciada; criar espaços dialógicos, através da criação do conselho escolar indígena. (BATISTA, 2005).

A autora também enfatiza que alianças com instituições que desenvolviam trabalhos com a temática indígena foram fundamentais para o sucesso dessa trajetória. Ela cita a assessoria inicial da UCDB, Universidade Católica Dom Bosco, que através do Programa Guarani e Kaiowá colaborou nas atividades de formação de professores, o CIMI, e, posteriormente, a partir de 1999, o curso de formação de professores Guarani e Kaiowá “Ára

Verá”, oferecido pela Secretaria Estadual de Educação de Mato Grosso do Sul, em parceira com as prefeituras municipais.

Imagem 10. Conferência local de educação escolar indígena. Aldeia Te’ýikue, município de Caarapó/MS. Maio de 2009.

Fonte: acervo próprio.

No caso da aldeia Te’ýikue, existe um histórico de mais de dez anos de envolvimento com a UCDB em projetos de desenvolvimento sustentável local. Junto à universidade, existe a atuação de integrantes do CIMI. A gestão municipal, nos últimos oito anos, se empenhou em fortalecer a escola indígena enquanto instituição promotora de interculturalidade. A comunidade elegeu dois vereadores indígenas nesse período. A população da aldeia tem um peso político quantitativo que se transforma em valor qualitativo, inclusive porque se traduz na compreensão que os Guarani e Kaiowá daquela localidade têm desse potencial.

Fazem parte do cotidiano dessa aldeia: formações políticas, fóruns, formação pedagógica continuada, assessoria para elaboração de projetos, reuniões, representações em órgãos colegiados como o Conselho Estadual de Educação, viagens para a participação em reuniões nacionais e internacionais. Com esse histórico, os índios da aldeia Te’ýikue buscam recursos, formulam projetos, os implementam e fazem a gestão dos mesmos, assegurando sua continuidade.

O lugar que reservam para si nesse processo não é somente o de reivindicar direitos ou promover denúncias, mas sim de organizar estratégias de organização da produção, de realização da vigilância constante para a manutenção de direitos; assim, apresentam propostas que se revelam valorosas para a sociedade como um todo.

Imagem 11. Varal de cartazes produzidos por participantes na conferência local de educação escolar indígena. Aldeia Te’ýikue, maio de 2009.

Fonte: acervo próprio.

Nessa aldeia é possível constatar um processo educativo fomentado a partir de várias instâncias, que conta, inclusive, com a participação de instituições externas, como ONGs, universidade e a própria gestão municipal. Na última década, a gestão pública no município, através da secretaria municipal de educação, aliou-se aos projetos da escola indígena. Em relação a esse aspecto, é necessário lembrar a influência, de cunho decisivo no campo político partidário, dada ao contingente populacional guarani e kaiowá no município de Caarapó. Nesse caso, os indígenas não estão ausentes do projeto político; ao contrário, dele fazem parte e se fazem valer.

Imagem 12. Jovens estudantes do curso de ensino médio da Escolha Nhandejara, apresentando suas propostas para a educação escolar indígena na aldeia Te’ýikue, Caarapó, durante a Conferência local de educação escolar indígena, maio de 2009.

Fonte: acervo próprio.

4.3 A conferência local de educação escolar indígena em duas aldeias de Paranhos, MS