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A escrevivência das negras mãos

No documento A MENINA NEGRA DIANTE DO ESPELHO (páginas 78-82)

3. 1. A escrevivência das negras mãos

Após a batalha do dia, as mãos negras tecem, fio a fio, uma renda de crochê. A cada três voltas, amarra uma cor diferente de linha e segue, mais três voltas. Ao final de duas ou três horas de rendado, elas param. A dona constata que o tamanho lhe agrada. Arremata o ponto. E pronto! Terminou mais uma toalha. Depois, debruçada na janela da rua, acende um cigarro, contempla a lua e vê os alunos do curso noturno de alfabetização passarem pela rua. Então, ela sonha: “amanhã mesmo vou me matricular. Escrever deve ser igual a tecer crochê: a agulha é igual ao lápis, desenha os pontos que são qui nem as letras. Pontos emendados são as palavras. Uma toalha é igual a uma história. Então, eu já sou uma escritora, espia meu baú: está lotado de toalhas, colchas, forrinhos...” (Transcrição das palavras de Dona Dezinha).

Sim, as portas da literatura estão se abrindo para elas: as mãos escreventes negras. Não por piedade ou medo, mas por reconhecimento e conquista. Mesmo marcada pela

ansiedade de autoria lembrada por Norma Telles, as escritoras negras de literatura infanto-juvenil estão fazendo acontecer, no alvorecer do século XXI, a visibilidade de obras da literatura afro-brasileira.

Para a crocheteira “Dezinha20”, a escrita está presente no momento da tessitura de

seus artesanatos. É um complexo emaranhado de pontos, correntes, voltas, espaços e cores. Enquanto tece, sonha. As mãos negras da artesã, calejadas, depois de um dia exaustivo de costura, sonha sonhos possíveis, cotidianos, mas plenos de significação.

Da mesma forma, as artesãs de textos infanto-juvenis tecem contos repletos de histórias vividas no seio do seu lugar de pertencimento. Essas autoras-tecelãs negras são mediadoras de mundos que se interceptam ou de mundos paralelos. Assim, escritura e experiência são os esteios que identificam uma literatura marcada por obstáculos como a literatura afro-brasileira. A experiência é relacional, modulada pelo meio, representa o lado de dentro e, através dela, define-se o lado de pertencimento, o lugar de fala. E este implica os resultados das experiências e o como o outro é visto.

Esse lugar de enunciação da mulher é representativo em sua produção cultural. Há uma frase muito divulgada de Simone de Beauvoir que é: Ninguém nasce mulher, torna-

se. Esta frase demonstra, entre outras questões, que a mulher não é um fruto biológico ou ato da natureza. A mulher é um construto social, um dado cultural. As mudanças e rupturas com sistemas hegemônicos impactam a identidade cultural, de modo que a identidade é formada e transformada continuamente em relação às formas pelos quais

20 Dona Dezinha é uma representante das griots na minha comunidade. Crocheteira, bordadeira,

somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (HALL, 1997, p. 13).

Ao falar de um lugar sem pertencimento, a mulher não projeta seus medos e desejos. É o caso das personagens femininas na literatura escrita por homens: as projeções dos desejos e dos medos pertencem ao escritor. É uma experiência vicária. A escrita vicária é de algum modo essencialista. Cabe à escritora romper com esse sistema, descontruir por dentro e mudar paradigmas.

Todavia, a escrita de mulheres negras comunga com o que apontam os estudos multiculturais ao partir da ideia de muitos centros e, consequentemente, muitas periferias. A escrita feminina é marcada pelo jogo das presenças e ausências. É também a escrita a partir de um olhar específico, a “escrevivência”. E essa, para Conceição

Evaristo, é o estatuto reivindicado. As mulheres negras, tendo ou não “um teto todo seu”, devem lutar. E a luta se dará pela escrita.

As escritoras negras contemporâneas reivindicaram para si o estatuto da escrevivência. E, como herdeiras de Maria Firmina, Auta de Souza, Carolina Maria de Jesus e outras, dão à lume suas obras, como afirma a própria Firmina no prefácio de sua obra Úrsula. Ao tecer seus textos, as escritoras afrodescendentes interconectam raça, etnia, classe e gênero. Como concluiu Conceição Evaristo (2013)21: “A escrevivência é autorrepresentação de um corpo vivido em sua própria escrita. É contar histórias não para ninar a casa grande mas para incomodar”.

A esse respeito, salienta Sônia Beatriz dos Santos (2007)22:

Assim, se a experiência de opressão das mulheres negras nos revela seu status na sociedade e suas condições de vida, e ainda por cima, nos ajudam a compreender as estruturas sociais em que a sociedade está assentada, então tais experiências cumprem um papel epistemológico, pois elas estão funcionando como indicadores sociais das relações entre os indivíduos (negros e não-negros, homens e mulheres etc.) vigentes naquela sociedade (SANTOS, 2007, p. 13).

Esse trecho foi retirado dos estudos de Santos (2007) sobre a organização social e política do que ela denominou “feminismo negro diaspórico”, citado aqui por fazer uma ponte entre a “escrevivência” de Conceição Evaristo e os estudos de Eduardo de Duarte citados anteriormente. Ou seja, ao escrever, a mulher negra porta consigo todo esse cabedal de tradição que revela as suas marcas de pertencimento. E, ao mesmo tempo, a

21 Palavras oriundas de palestra de Conceição Evaristo na Universidade de Brasília, em 1º de novembro de

2013. Parte de evento do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea (GELBC).

22 Niterói, v. 8, n. 1, p. 11-26, 2ºsem. 2007. Disponível em: soniabsantos@mail.utexas.edu

escrita negra se legitima pela peculiaridade de sua autoria, bem como, no dizer de Eduardo de Assis Duarte (2014), pelo “ponto de vista que dá o tom de sua visão de mundo”. Do lugar de onde fala, denuncia. Isto é, a assunção de um ponto de vista de manifesto contra qualquer processo de assimilação cultural, imposta como via de expressão única. E, continua Duarte (2014, p. 32): “a perspectiva afroidentificada, ao superar o discurso do colonizador, configura-se como discurso da diferença”.

Além dos elementos da temática, da autoria e ponto de vista, Duarte (2014, p. 29- 38) indica o público e a linguagem como fatores que contribuem na configuração de um texto da literatura afro-brasileira. A temática, como já dito, “resgata a história do povo negro na diáspora brasileira”, bem como reverte em denúncia dos processos de escravidão e suas consequências. Por sua vez, a situação da linguagem é tenuamente complicada: não rompe com a fruição e estética, mas deve ir além e expressar valores éticos, culturais, políticos e ideológicos. Trata-se, portanto, de um discurso “afroidentificado que objetiva uma nova ordem simbólica”.

Isto posto, pode-se pensar em uma escrevivência afroidentificada de mulheres negras produtoras de literatura infantil contemporânea. Como diz Tânia Lima (2009, p. 170), griots são as cultivadoras de textos que se deslocam de um ponto a outro, portando a

oralidade, suporte fundamental em seus discursos. “Griots” ou “dieli” são abordados nos

estudos de A. Hampaté Bâ (2010, p. 193), que dialoga com tais definições e acrescenta: são “trovadores” ou “menestréis” que animam o público através da música, da lírica, histórias, contos e recreações populares, ligadas ou não a uma família.

Aos “griots” ou “dieli”, embora divididos em grupos diferenciais, lhes é conferido um status social especial. Desse modo, Nilma Lino Gomes, Heloísa Pires Lima e Silvyane A. Diouf, podem ser consideradas griots, genealogistas, historiadores ou poetas por comporem um grupo de aguerridas escritoras que cumprem o papel da resistência e se ocupam em alargar o campo da literatura infantil, tendo em vista a discussão da construção da identidade negra a partir da infância da menina negra.

Norma Telles (1992) afirma que: “Os silêncios cercavam e cercam o patrimônio cultural das mulheres. Cada nova geração precisa refazer os passos e retomar os caminhos” (TELLES, 1992, p. 50). As autoras, tecelãs e griots, aqui tratadas, reivindicaram para si, não com obrigação, mas com certa devoção, o papel social da resistência e luta pelos direitos humanos, pela busca do reconhecimento da pessoa negra na sociedade.

De que lugar fala cada uma dessas autoras? De quais artefatos culturais lançam mão na construção de seu pertencimento étnico-racial? Pela luta que empreendem para

assegurar aos grupos marginalizados o seu espaço de voz, essas autoras falam de um lugar legítimo. Neste sentido, Nilma Lino Gomes mineira, educadora, atuante na esfera política e em sua trajetória contribuiu, entre outros, para a instituição da Lei 10.639 de janeiro de 2003, que torna obrigatório o estudo da cultura afro brasileira nas escolas públicas (como já citamos ao longo do texto). O primeiro trabalho ficcional da intrépida autora é Betina, publicado em 2009.

Por sua vez, a gaúcha Heloísa Pires Lima, que é educadora, antropóloga e escritora, encantou-se pela literatura a partir do momento em que percebeu a carência de personagens negras ou sua inadequação no uso das letras, nos diversos gêneros. Deste modo, observa-se que a temática mais evidenciada em suas obras é a da valorização da cultura negra através da construção da identidade de crianças e de adolescentes. Então, suas duas obras aqui apropriadas são: O espelho dourado, publicada em 2003, e Histórias

da Preta, publicada em 1998.

E, em terceiro lugar, insere-se nesse contexto de análise afroidentificada a escrita de Sylviane A. Diouf, de pai senegalês e mãe francesa. Autora, professora, engajada em movimentos na Europa, na África, preocupa-se, como historiadora, em evidenciar a história e a cultura dos povos africanos, embora o seu nascimento seja francês. O olhar sobre as culturas africanas vai além do jeito ocidental de enxergar o resto do mundo. Desta forma, revela um modo peculiar em apresentar o humano no seu espaço multicultural.

Sua obra As tranças de Bintou, foi inicialmente publicada nos EUA em 2001, com versão francesa em 2003. No Brasil, foi publicada em 2004. Essa reconhecida obra representa um momento importante para a vida da autora, principalmente por ter sido, ao que parece, um marco ao registrar a infância e a cultura africana na ficção.

Escrever-viver são as ferramentas de que as autoras lançam mão para a construção de referenciais da menina negra, em busca da identificação e localização de seu pertencimento. Partindo da ótica da temática, as narrativas que se seguem procuram costurar os elos da africanidade a partir da representação dos traços culturais que evidenciam a civilidade do povo africano como postura de resistência ao imaginário de povo sem passado que se instituiu em várias partes do mundo e, em especial, na sociedade brasileira.

3. 2. A água, o espelho

Para Gaston Bachelard (1998, p. 199): “A água tem também vozes indiretas. A natureza repercute ecos ontológicos. De todos os elementos, a água é o mais fiel espelho das vozes". E essa profunda definição sobre a água dialoga com a força da ancestralidade negra como alegoria23 presente nos textos de escrita afro-brasileira. É possível “ler” o elemento água como um elo ou um campo fecundante de história e cultura.

O posicionamento de Bachelard indica que a água possui uma dimensão plurissignificativa e dialoga, por uma linha tênue, com os estudos de Marcelo C. Nunes e Rafael Alves (2009, p. 37). Presente nos rituais de umbanda, a simbologia da água está voltada para a criação, compõe a presença do “Princípio do Branco”, que é onde toda a criação está presente, ou a ausência e sua complementaridade. Com a água e com o barro,

Omi e Omã, Oxalá modelam todos os seres.

O elemento água é definido no dicionário dos símbolos como: “o signo da superfície”. A simbologia da água apresenta um aspecto complexo e dual: ao mesmo tempo que é um conjunto de massa líquida, contém os corpos sólidos. Neste sentido, Cirlot (1984) assevera que

por esta causa, os alquimistas denominavam “água” ao mercúrio no primeiro estágio da transformação e, por analogia, ao corpo fluídrico do homem, interpretado pela psicologia atual como símbolo do inconsciente, quer dizer, da parte informal, dinâmica, causante, feminina, do espírito. Das águas e do inconsciente universal sugere tudo o que é vivente, como da mãe. As águas significam o retorno ao pré-formal, com seu duplo sentido de morte e dissolução, mas também de renascimento e nova circulação, pois a imersão multiplica o potencial da vida (CIRLOT, 1984, p. 62).

A superfície transparente da água é uma tênue e cristalina camada, que reflete, espelha e capta o mundo circundante. E também duplica. O mundo das águas é também a pátria onde a morte e a vida interagem. Para Bachelard; “é a verdadeira matéria da morte bem feminina”. Essa conceituação sobre as águas e sua capacidade de espelhamento, e do espelho como objeto do realismo-maravilhoso, está representada na literatura infantil de todos os tempos.

Em vários contos infantis, o espelho aparece como uma personagem importante, geralmente aliado a uma antagonista. É o caso do espelho da Madrasta de Branca de

23 Tomei como base para entendimento do termo alegoria o estudo de Massaud Moisés, em Dicionário de

termos literários, 2013, p. 14. “Alegoria é uma figura de expressão que consiste numa proposição de duplo sentido, um sentido literal e um sentido espiritual, por meio do qual se apresenta um pensamento sob a imagem de outro”.

No documento A MENINA NEGRA DIANTE DO ESPELHO (páginas 78-82)