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AS INTENÇÕES LITERÁRIAS DE CAROLINA ESCRITORA

A ESCRITA PERFORMÁTICA AUTOBIOGRÁFICA

Conhecidamente, é Philippe Lejeune que inicia a discussão do gênero autobiografia como literário na década de 1970, na França. Ele define autobiografia

como “uma narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria

existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua

personalidade” (Lejeune, 2008, P. 14). Outros gêneros como diário, memória, biografia,

autorretrato não consistiriam, segundo o pesquisador francês, em uma autobiografia. A tese de que é necessário haver uma identidade entre autor, narrador e personagem é

requisito para a autobiografia. Numa definição concisa do “pacto autobiográfico”, o teórico afirma que seria “o engajamento de um autor em contar diretamente sua vida (ou uma parte, ou um aspecto de sua vida), num espírito de verdade” (Lejeune, 2008, p. 21).

Essa linha foi bastante discutida em trabalhos diversos e vem sendo atualizada por teóricos como Paul De Man e William C. Spengemann, todos relatados por Ana Maria Carlos e Antonio Roberto Esteves na introdução “Narrativa autobiográfica: um gênero

literário?” (2009) e em Mulheres ao espelho: autobiografia, ficção e autoficção, de

Eurídice Figueiredo (2013).

Carlos e Esteves, que atualizam a teoria de Lejeune, afirmam, por exemplo, que

a autobiografia não é um gênero, mas uma “figura de leitura ou de compreensão que estaria presente, em certa medida, em todo e qualquer texto” (Carlos; Esteves, 2009, p.

12). Além desse aspecto, De Man afirma que a diferenciação entre autobiografia e

ficção é algo “indizível” e que a autobiografia é uma espécie de prosopopeia da voz e do nome, ao trazer à tona, na voz do seu autor, os “ausentes”, os seres inanimados, os

mortos, o sobrenatural; o eu que escreve suas memórias é diferente do eu narrado, seria

então uma metáfora entre “vivos e mortos” (De Man apud Carlos;Esteves, 2009, p.12).

Tal visão é semelhante à de Paul Jay, que defende a impossibilidade de separação entre a autobiografia verdadeira e a ficcional, “uma vez que ficcionalidade é o

estado ontológico de todo texto” (apud Carlos; Esteves, 2009, p. 15). Jay afirma a

aproximação da escrita de si com a psicanálise, e sua função, seria, então, de confissão e autorreflexão.

Eurídice Figueiredo chama a atenção também para a importância do nome do autor nos textos autobiográficos, que não seria a mesma coisa que o nome de uma pessoa qualquer. Passando pelos estudos de Roland Barthes e Michel Foucault, a autora discorre sobre as teorias que dessacralizaram a figura do autor na obra literária e ressalta

que “um nome de autor exerce uma função classificatória que serve para delimitar um

certo corpus (a obra de tal autor) e determinar sua recepção pelo público leitor” (2013, p. 17). Além do nome próprio, que pode ou não ser utilizado no texto autobiográfico, a autora lembra de outros signos que são marcas do gênero, como os pronomes pessoais e

possessivos, os advérbios de tempo e a conjugação verbal. No “jogo biográfico” são

muitos os artifícios para este aspecto, já que nem sempre o nome próprio aparece numa obra autobiográfica; a literatura contemporânea também transgride essa característica ao brincar com a autoria e o uso dela.

Sobre a questão da fantasia e da realidade nos textos autobiográficos, Brigitte

Hervot e Maria do Carmo Savietto (2009), em seu artigo “A escrita autobiográfica”, no

mesmo livro, concluem, a partir das releituras de Lejeune (inclusive a do próprio teórico francês, que atualizou seus conceitos), que, embora a sinceridade possa ser uma intenção do autobiógrafo, ela não poderá ser totalmente realizada, pois há sempre a necessidade de recorrer à imaginação, no passado ou no presente, para ir além da realidade ou do que ela lhe permite. A fantasia, e não a mentira, então, seria intrínseca à escrita de si. Essas invenções e recriações, acrescentam as autoras, revelam a face do eu que se esconde e se mostra nelas. Os elementos da fantasia conferem à autobiografia uma semelhança aos romances e a outros textos de ficção e, ao mesmo tempo, ao não ficcional, como a biografia. Esse aspecto da autobiografia nos permite afirmar que ela se encaixa na teoria da escrita performática já explicitada neste trabalho. A multiface do

“gênero”, repleta de perfis, de vários “eus”, ganha aspecto de encenação, de performance. Assim como o “jogo cênico” criado pelo aspecto do nome próprio e dos

inúmeros indícios do eu presentes neste texto, que confirmam ainda mais a ideia da teatralização da própria existência.

Ângela de Castro Gomes (2004) cita a expressão “teatro de memória” ao se referir à transformação do espaço privado em público, ou publicado, no caso dos gêneros literários da escrita de si. Ao dotar o mundo com seus significados, os autores,

então, performatizam-no também. Sobre a mistura de realidade e ficção na escrita de si, fundamentada em Bourdieu, Gomes afirma:

A “ilusão biográfica”, vale dizer, a ilusão de linearidade e coerência do indivíduo, expressa por seu nome e por uma lógica retrospectiva de fabricação de sua vida, confrontando-se e convivendo com a fragmentação e a incompletude de suas experiências, pode ser entendida como uma operação intrínseca à tensão do individualismo moderno. Um indivíduo simultaneamente uno e múltiplo, e que, por sua fragmentação, experimenta temporalidades diversas em sentido diacrônico e sincrônico (2004, p. 13).

Os diversos momentos do indivíduo narrador e narrado na autobiografia se fragmentam, se completam e se encenam ao mesmo tempo. Já vimos, anteriormente, como os diários de Carolina de Jesus são bons exemplos disso. Seus textos memorialísticos, Diário de Bitita, “Minha vida” e “Sócrates africano” confirmam o fio condutor de sua obra literária, do seu projeto como escritora e, ao mesmo tempo, revelam sua face autobiografada que continua encenando-se através da escrita fragmentada, memorialística e ao mesmo tempo potente, denunciativa e visceral.

Diário de Bitita, “Minha vida” e “O Sócrates africano”

Apesar de ter no título a palavra “diário”, Diário de Bitita não pertence a essa

categoria literária. Diferente de Quarto de despejo, Casa de alvenaria e Meu estranho

diário, o livro se encaixa no rol das chamadas autobiografias, pois não traz relatos

marcados pelas descrições datadas. Ao contrário, é contínuo e dividido em capítulos, o que provavelmente foi feito pelas pesquisadoras que o organizaram. Nele, a Carolina adulta e já conhecida volta à infância para relatar suas origens e sua formação.

Segundo as biógrafas Eliana Castro e Marília Machado, “obviamente, há elementos de fantasia na percepção da própria infância. Por isso, pode-se falar de uma

construção autobiográfica com conteúdos ficcionais” (2007, p. 16). Essa mistura

ficcional nos leva a classificar o livro também como autoficção, conceito criado por Serge Doubrosky em 1977 e citado por Eurídice Figueiredo (2007). No artigo, a professora explica que Doubrosky, desafiando Lejeune, criou um romance autobiográfico, cunhando assim o conceito de autoficção. O autor diferencia esse gênero da autobiografia, uma vez que, nesta última, o narrador-autor-personagem conta

a sua história, desde as origens, enquanto na autoficção “pode-se recortar a história em fases diferentes, dando uma intensidade narrativa própria do romance” (Soubrosky apud

Figueiredo, 2007, p. 22). Talvez Diário de Bitita se encaixe no gênero criado por Doubrosky, afinal, seus capítulos não são lineares nem datados e, embora as origens de Bitita sejam mencionadas, a história não aparece completa ou certa, conforme é comum nas autobiografias. Entretanto, é o próprio Doubrosky que amadurece o conceito e afirma que a diferença da autobiografia para a autoficção se firma na

contemporaneidade. O “novo” gênero seria um “romance autobiográfico pós-moderno,

com formatos inovadores: são narrativas descentradas, fragmentadas, com sujeitos

instáveis que dizem ‘eu’ sem que se saiba exatamente a qual instância enunciativa ele corresponde” (Soubrosky apud Figueiredo, 2013, p. 61). Por este olhar, o livro de

Carolina não poderia ser classificado como autoficção, já que ela não tinha pretensões pós-modernas, no sentido aqui usado, para sua literatura, porém, como é ampla a discussão sobre a autoficção, outros estudiosos, como Vincent Colonna, também citado

por Eurídice Figueiredo, afirmam que a “ficcionalização de si” existe em qualquer tempo, “sem se limitar à contemporaneidade” (Jeanelle apud Figueiredo, 2013, p. 63).

Não me parece, enfim, que Carolina teve a intenção de escrever sua biografia neste livro, mas que possivelmente tenha resolvido contar sua vida do ponto de vista de quem tem um projeto literário e acredita que a história poderia ser interessante e importante. Além de, como veremos, usar essa história pessoal para denunciar, num gesto performático, desmandos políticos do país contra seu povo. Tal maneira de narrar, de autoficcionalizar, seria feita também de forma encenada, performática.

Diana Taylor afirma que “o ato de contar é tão importante quanto o de escrever;

o fazer é tão central quanto o registrar a memória passada por meio de corpos e de

práticas mnemônicas” (2013, p. 70). Para ela, a escrita e a performance organizam

memórias históricas individuais e de uma comunidade. Taylor ainda separa o conceito

de performance em “arquivo” e “repertório”. O arquivo seria o material supostamente

duradouro e o repertório a parte efêmera, a prática e os conhecimentos incorporados. Na obra autobiográfica de Carolina de Jesus, o repertório pode também ser interpretado como seu próprio corpo, que, metaforicamente, é seu ponto de vista, seu olhar sobre o passado. Esse ponto de vista revela sua subjetividade, singularidade, personalidade performática traduzida para seu relato concreto, fragmentado e, ainda, transgressor, como é a escrita performática segundo Graciela Ravetti (2003).

Ao discorrer sobre a escrita autobiográfica de mulheres, Eurídice Figueiredo destaca que a memória, aspecto muito marcante na literatura de autoria feminina, adquire forma no ato da escrita do corpo:

Ao tomar a palavra, e mais do que isso, escrever essa palavra – portanto, entrar no domínio reservado aos homens –, as escritoras subvertem a ordem masculina do mundo e instauram uma nova ordem, uma ordem em que a mulher fala de si, de seu corpo, de seus sentimentos, de suas angústias. A escrita se apresenta como um novo combate: luta com as palavras, com a censura interna, com o público que reage diferentemente diante de um texto escrito por um homem ou uma mulher (2013, p. 88).

O corpo inscrito nas memórias de Carolina é que se performatiza na escrita sobre sua vida. Ao retornar à infância em Sacramento, a distância temporal do corpo adulto

toma o lugar do corpo da criança, todos fragmentos da mulher escritora, da autora Carolina Maria de Jesus.

Os relatos de infância são caracterizados por um “eu” que se distancia, que se

olha como um outro. Para Doubrovsky, citado por Eurídice Figueiredo, “o relato de infância é totalmente fabricado, já que a infância se encontra fora da narrativa porque

está fora do tempo” (2013, p. 45). Como a escrita performática também tem a característica desse narrador “de fora”, ela se manifesta no relato memorialístico da

infância também. Juliana Leal explica que

Narrar performaticamente é narrar o si-mesmo também a partir de um fora, do outro, do exo e situado numa localidade propositiva, cuja força reside nos meandros não delimitáveis do “mais além” interposto pelo transgênero performático. Esse narrador não se coloca em uma posição de conselheiro, nem de alguém autorizado a transmitir, exemplarmente, saberes ou fatos a outrem. Vemos, ao contrário, um narrador aberto à experiência enriquecedora e humana da alteridade, para construir uma narração de um real que lhe escapa todo o tempo, porque a relação entre quem narra e o objeto do relato transfigura aquele continuamente, transformando a possibilidade da apreensão de uma história apenas a ser transmitida em algo inviável, o que leva esse narrador a qualificar essa personagem para além do que suporia nomeá-la como “objeto” (Leal, 2012, p. 20).

É assim, portanto, que percebemos a escrita autobiográfica de Carolina no relato de sua infância: como um “eu” performático de fora, situado num presente longínquo daquele passado em Minas Gerais, mas ao mesmo tempo próximo quando lembramos que a inscrição performática é realizada pelo mesmo corpo que a experienciou.

O olhar singular de Carolina é revelado logo no início de seu livro de memórias. Percebemos a mirada performática já no primeiro capítulo, na escolha do ponto de vista

infantil para narrar a própria história. O leitor, que no “contrato” (ou pacto, se

retomarmos Lejeune) da escrita performática também interage com o narrado, sente-se transportado para o passado ao conhecer a menina Carolina ou Bitita, seu apelido de

infância, e perceber nela uma criança sagaz: “Eu estava fazendo minha avant-première

no mundo e conhecia o pai do meu irmão e não conhecia o meu. Será que cada criança

tem que ter um pai?” (Jesus, 1986, p. 7). Mais adiante, no mesmo capítulo, a menina

Um dia, a minha mãe repreendeu-me e disse-me: – Eu não gosto de você!

Respondi-lhe:

– Se estou no mundo é por intermédio da senhora. Se não tivesse dado confiança ao meu pai eu não estaria aqui.

Minha mãe sorriu e disse:

– Que menina inteligente! E está com quatro anos (p. 8).

A perspicácia da menina é encenada através do ponto de vista performático da narradora/autora/protagonista, que é elogiada pela mãe, mesmo depois de fazer o que seria considerado uma má-criação. O autoelogio é percebido em todo o livro, pois a narradora se apresenta como uma menina questionadora em diversas situações de seu relato. No capítulo 4, “Ser pobre”, ela será responsável pela expulsão de um juiz racista da cidade: a menina Bitita tem uma laranja lima roubada pelo filho do juiz, que se aproveita de sua condição de poder, segundo a narradora, para molestar as meninas negras e perturbar as crianças pobres. Bitita não aceita a atitude injusta do menino branco e rico e discute com ele, xingando-o. O pai do menino, juiz da cidade, doutor Brand, vem saber o que está acontecendo e ela o enfrenta também. Mesmo diante das ameaças do homem, Bitita se faz porta-voz e heroína dos seus:

O doutor Brand interferiu: – Você não tem educação?

– Eu tenho. O teu filho é que não tem. – Cala a boca. Eu posso te internar.

– Para o seu filho fazer porcaria em mim, como faz com as meninas que o senhor recolhe? É melhor ir para o inferno do que ir para a sua casa. Doutor Brand, aqui todos falam do senhor, mas ninguém tem coragem de falar para o senhor. Os grandes não têm coragem de chegar e falar! O seu filho entra nos quintais dos pobres e rouba as frutas (Jesus, 1986, p. 29).

Depois dessa discussão, mesmo advertida para não discutir com o homem poderoso, a menina persiste e recorre a Rui Barbosa:

Quando ele ia me bater, eu disse-lhe:

– O Rui Barbosa falou que os brancos não devem roubar, não devem matar. Não devem prevalecer porque é o branco quem predomina. A chave do mundo está nas mãos dos brancos, o branco tem que ser superior para dar o exemplo. O branco tem que ser semelhante ao

maestro na orquestra. O branco tem que andar na linha (Jesus, 1986, p. 29).

A encenação-performance da narradora ganha contornos de heroísmo final quando o juiz decide deixar a cidade. Todos aclamam Bitita, presenteiam-na com vestidos e outros mimos. A menina que ainda nem sabia ler havia expulsado, através de argumentos e citações políticas, o juiz racista e malquisto. Para justificar a maturidade da menina-personagem, a narradora explica que ela sabia sobre Rui Barbosa por ouvir o senhor Nogueira lendo o jornal O Estado de São Paulo. Sabemos que as memórias corporificadas na personagem, em sua infância, são parte de seu repertório trazido para a escrita. Phillipe Vilain, citado por Nogueira, afirma que “a particularidade da imaginação autobiográfica reside em sua capacidade de desdobramento narcísico que permite ao sujeito inventar para um si um duplo, ideal ou não, e tornar possível uma

forma de autoficcionalização” (Vilain apud Nogueira, 2007, p. 23, grifo meu).

Em Diário de Bitita, a autora preocupa-se claramente em contar sua história individual e familiar, além de representar a comunidade negra de Sacramento, pois diversas vezes refere-se aos “negros” de forma coletiva. O episódio descrito anteriormente, da expulsão do juiz racista, é um exemplo dessa escrita de denúncia que já aparecia nos diários, e também é recorrente na ficção de Carolina. É, pois, marca de sua escrita. No caso dos relatos deste livro autobiográfico ou autoficcional, fica clara a

mistura intencional dessa “escrita-manifesto” ao relato pessoal, o que atesta sua ligação

com a escrita performática, mais uma vez.

É o que pode ser visto no capítulo 6, “Os negros”, quando a menina Bitita rouba

mangas no quintal da vizinha e cai da árvore, chamando a atenção da dona do terreno. Dona Faustina, surpreendida com a ladra de suas frutas, profere um comentário racista,

“Negro não presta”, ao que a menina astuta responde: “– Os brancos também são

ladrões porque roubaram os negros da África” (Jesus, 1986, p. 55), frase de adulto

performatizada na fala da criança. Em seguida, a narração parece voltar à Bitita (Carolina criança): “Eu pensava que a África era a mãe dos pretos. Coitadinha da África

que, chegando em casa, não encontrou os seus filhos. Deve ter chorado muito” (1986, p.

55). Essa mobilidade narrativa também pode ser vista como uma característica da escrita de performance, pois, como já citado anteriormente, sobre a distância temporal

no relato infantil, essa narradora de fora tenta mergulhar no passado e acaba se misturando à narradora que já foi quando criança, concentrando suas forças nesse ir e vir do tempo que se reflete na escrita encenada. Essa tentativa de unir os tempos acaba

escapando das mãos da narradora e fazendo com que os vários “eus” se mesclem,

aspecto também importante da escrita performática.

Ainda sobre o capítulo 6, interessante notar como ele é político em relação ao tema da escravidão: a menina Bitita mostra sua descoberta sobre o racismo e aponta causas históricas da escravidão; comenta sobre a vida difícil dos negros, bem mais complexa que a dos brancos, e dá o exemplo do avô que trabalhava duro, mas muitas

vezes sem oportunidades. Menciona também a perseguição policial: “Os pretos tinham

pavor dos policiais, que os perseguiam. Para mim aquelas cenas eram semelhantes aos

gatos correndo dos cães” (p. 56). As comparações, típicas da escrita da autora,

continuam a ilustrar seu pensamento. A narradora menciona a omissão dos brancos diante da perseguição policial contra os negros. Bitita questiona, ainda, o conceito de liberdade, explica que, para os avós, os brancos haviam melhorado muito, comparados ao que viveram antes da abolição, mas, para a menina negra que via o racismo acontecer diariamente, não havia tanto a comemorar. Ao lado da perseguição policial é citado o

assédio às mulheres negras: “Eu notava que, com as mulheres pretas, eles não mexiam

muito. Não faziam elas correrem. Mas falavam palavrões para elas e mostravam o pênis

(...)” (p. 56).

A contraposição entre passado (escravidão) e presente (racismo) é amplamente trabalhada no capítulo 6. A escrita de Carolina mistura, como já afirmamos, a denúncia à autobiografia. O relato pessoal é mesclado à memória coletiva do povo negro na voz,

elemento do corpo vivificado nessa “escrevivência” refletida.

A perspicácia narrativa de Bitita é notada, ainda, no final do capítulo, quando compara a vinda do negro para o Brasil à vinda de outros povos, como os turcos e sírios. Ela estranha o fato de esses grupos étnicos aqui chegarem e se enriquecerem, empregando os negros muitas vezes:

Minha tia Claudimira trabalhava para os sírios que vinham como imigrantes para o Brasil. E aqui conseguiam até empregadas. Ganhava

trinta mil-réis por mês, para lavar a roupa, passá-la, cuidar das crianças, da casa e da cozinha. (...)

Os estrangeiros não vinham pobres. Eles não eram analfabetos e dominavam o comércio. E o brasileiro analfabeto não tinha condição de progredir (p. 61).

Os capítulos 10 e 11 do livro são os “Minha vida” e “Sócrates africano”

publicados no livro Cinderela Negra, de 1994, com algumas modificações e outros títulos25. No texto que antecede os de Carolina, Meihy e Levine explicam:

“Minha vida” é um texto original de Carolina Maria de Jesus. Uma versão posterior, intitulada “Um Brasil para os brasileiros”, foi publicada na França e depois integrou a versão de Diário de Bitita. Interessa retomar esse texto porque, como escrita original, ele dá mostras da redação de Carolina. Além do mais, o fato de conter passagens relacionadas à sua infância revela aspectos pouco valorizados de seu projeto de escritora. Um certo encanto e lirismo marcam a percepção da pobreza antes da favela. Constatar a diferença entre a miséria que deixou saudade e a pobreza que virou denúncia possibilita o entendimento da consciência da Carolina. “O Sócrates

Africano” obedece ao mesmo critério de seleção. Particularmente, este