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Antes de cruzar a porta da rua em direção ao interior da casa, é de praxe que cada pessoa espera outra, lhe receba pelo lado de dentro, jogar a água de uma quartinha branca por três vezes na calçada, como forma de cortar qualquer carrego que acompanhe quem entra, de modo que não entre com a pessoa, poluindo o ambiente da casa. Logo que se dá o primeiro passo para dentro, antes de se chegar ao barracão, do lado direito de quem entra, está a escada que dá acesso aos pisos superiores. Do lado esquerdo fica o assentamento20 do Exu Tranca- Ruas, entidade guardiã da casa. Quem entra deve se virar de frente para o assentamento, se curvar e tocar os lados dos pulsos um no outro, três vezes, de forma alternada e dizer: Laroiyê, Exu! Desta forma, pedindo-lhe licença e aviando de sua entrada.

O barracão ou terreiro propriamente dito é um espaço retangular bem amplo com duas colunas de sustentação em seu meio. Numa das extremidades há um altar de dois patamares. Várias imagens são organizadas, como num continuum que vai do mais sagrado (em cima) até o mais profano (em baixo). O patamar mais alto é dedicado a Oxalá, demonstrando, pela sua posição acima dos outros, a superioridade hierárquica do orixá no panteão afro-descendente. Vários objetos tradicionalmente consagrados a ele identificam esta pertença: a estátua de Jesus Cristo (que, no sincretismo é Oxalá); vasos com rosas brancas; uma quartinha de louça branca. Neste patamar também fica um adjá, instrumento utilizado no candomblé para chamar os orixás à incorporação. No patamar do meio, dividem o espaço imagens de entidades caboclas e santos católicos, da esquerda para a direita: Nossa Senhora da Conceição, representando Oxum, orixá da mãe-de-santo da casa; Seu Nêgo Gérson guia espiritual da mãe-de-santo, chefe/dono da casa; São Gerônimo, representando Xangô; Sibamba, espírito de marinheiro, chefe da Linha do Mar; Iemanjá, orixás das águas salgadas, de grande popularidade na Umbanda cearense. No chão, embaixo do altar, fica a imagem da

do modelo jurídico de templo religioso vigente no Brasil, que reza que não pode servir como residência.

20 Representação física da deidade. Local onde são colocadas as oferendas destinadas à ela.

Tapuia, entidade infantil, criança de sombra da mãe-de-santo. Bombons e bonecas são colocados ali como presentes que se ofertam a ela. Copos com água e velas acesas também se encontram dispostos ao longo dos três níveis do altar. Uma vela é acesa em frente a uma determinada imagem como forma de pedir proteção àquela entidade em questão. As velas todas têm de estar acesas no início dos trabalhos de forma para que as energias a quem elas se dirigem se ponham em movimento, na defesa da casa. Lembro, certa vez, em que uma das velas caiu do altar, apagando-se. Mãe Valkíria exclamou para mim: “Você está vendo? Alguma coisa ruim acabou de passar por ali”!

Do lado esquerdo do altar está uma poltrona reservada à mãe-de-santo, onde esta permanece sentada no início e fim das sessões, quando não está incorporada com alguma entidade21. Do lado esquerdo, fica a cambonagem, uma pequena mesa de gavetas onde se encontram materiais diversos dos quais os espíritos incorporados nos médiuns vão se servir enquanto trabalham. Tais objetos têm uma grande variedade, a título de exemplo, pode-se contar com: chapéus, cachimbos, fumo, café, chá, copos, cigarros, charutos, bombons, perfumes, bebidas alcoólicas... Ao lado da cambonagem se posta o cambone Sérgio, cuja função é servir as entidades com o material à medida que o requisitam. O termo cambone é

herdado de uma tradição jeje-nagô que deu origem à macumba carioca, chamado cabula. Descreve Ortiz:

As sessões de cabula chamavam-se mesa, eram secretas, e se praticavam no bosque, onde, sob uma árvore, improvisava-se um altar. Um espírito chamado tata encarnava nos indivíduos e os dirigia em suas necessidades temporais e espirituais. O chefe de cada mesa chamava-se embanda e era secundado pelo cambone; a reunião dos adeptos formava a engira (Ortiz, op. cit. P. 37).

De maneira análoga ao cabula, o cabone de Umbanda secunda o pai/mãe-de- santo. É chamado também ponta-de-mesa e, durante a incorporação do pai/mãe-de-santo, adquire a função de sacrificador, organizando as pessoas nas correntes, controlando o tempo da baia, orientando qual caboclo deve cantar seu ponto naquela vez... Quando em terra, é ao cambone que as entidades se dirigem.

Antes de entrar para a baia, cada iniciado deve manter certos cuidados com o corpo a fim de afastar os perigos rituais descritos no capítulo anterior, bem como colocá-lo num estado de maior contato com as potências sagradas. Pede-se que resguarde nas horas que antecedem ao ritual - desde o dia anterior até a hora da gira - de álcool, festas, sexo e que, momento antes de entrar para a corrente se banhe com uma mistura de ervas previamente preparada.

Os filhos/filhas-de-santo trajam fardas usualmente brancas. Os formatos variam muito, a única constante é: saias para as mulheres e calças para os homens. Anáguas, rendas, bordados são apenas alguns dentre os vários detalhes que se juntam para compôr a diversidade do vestuário. Uma das formas usuais de se referir à Umbanda é A Lei de Oxalá, é em homenagem a este orixá que se adota a cor branca padrão no terreiro de Mãe Valkíria.

Adereços que lembrem a vida comum - tais como: bonés, maquiagem, brincos, calçados - são proibidos de serem usados durante as baias. Lembro de uma ocasião, no término de um trabalho, uma filha-de-santo, maquiada foi tomar a bênção a Mãe Valkíria. Estava eu próximo então e pude escutar as palavras que a sacerdotisa lhe dirigiu: “Não venha mais assim: pintada! Isso não é bom!” Logo após, virou-se para mim dizendo: “Ela é tão bonita! Não precisa estragar o rosto desse jeito!” Uma das virtudes mais celebradas pelo discurso dos umbandistas é a humildade. Um fala muito recorrente é a de quê: “Médium pintado quer aparecer, não tem humildade!” O mesmo vale para os pés descalços: são considerados sinais de humildade. Em termos usuais: “Caboclo bom, é caboclo de cara limpa e de pé no chão!” No meu modo de entender, creio que se trata de uma forma de coação para manter o tempo do sagrado afastado do tempo comum, pois não vi igual repreensão com o argumento da humildade, à pompa das vestimentas rituais, por exemplo.

Um a um, os filhos e filhas-de-santo vão tomar a bênção à mãe-de-santo, se ajoelham à sua frente e entregam em suas mãos suas guias, colares enormes feitos de miçangas coloridas e que vão definir (de acordo com as cores e formato utilizados) sua posição na comunidade religiosa, bem como a entidade a quem o pertence. Sementes arroxeadas para os filhos de preto-velho, contas de louça verde ou amarela para os filhos de índio e azuis para os filhos de marujo ou de outra entidade ligada à linha do mar. A mãe-de- santo, por sua, vez fixa os colares um a um em volta do pescoço do filho ajoelhado e responde a bênção com um “Oxalá que te dê paz, força e tranqüilidade. Que coloque o que tu desejas na palma da tua mão!” Depois disso, o filho ou filha toma sua posição na corrente mediúnica.

As correntes mediúnicas correspondem a duas filas paralelas, dispostas ao longo do terreiro. Uma feminina, que se inicia da poltrona da mãe-de-santo e segue em direção à porta de saída, seguindo assim a hierarquia da filha mais graduada na religião àquela que está de iniciando ou é cliente. O mesmo se dá com a corrente masculina, que se coloca em frente à primeira, do lado oposto do terreiro e tem seu início marcado pela mesa de cambonagem.

referentes às entidades caboclas ritualizadas. Formas comuns de se referir ao estado de tontura que antecede o transe são: “Fulano está com as correntes todas em cima”! ou “Está irradiado”! Ou ainda “Está sombreado”! Vejo aqui, uma terminologia muito próxima à que é utilizada por engenheiros e eletricistas... É sabido que a corrente mediúnica deve ser formada para que as energias dos caboclos percorram livres, de um lado a outro, até que se concentrem num determinado indivíduo e este incorpore (as pessoas funcionam como “condutores” desta energia). Se alguém cruza os membros ou fecha as mãos, a condução é interrompida, cortada, pára ali (como um fio que se parte) e a energia passa a não ter por onde fluir, dificultando assim o bom desempenho do trabalho. Não quero com isso supor que na fundação da Umbanda, existiram intelectuais letrados em eletricidade ou termodinâmica, que lançaram mão das técnicas aprendidas em seus ofícios na hora, construir um dialeto específico da religião.

Contudo, alguns anos de leitura em Psicanálise me levam a desconfiar que a palavra aponta sempre para algo a mais do que o que está explícito no primeiro momento. No que diz respeito às minhas suspeitas, creio que há uma “Estética do Progresso” endógena à Umbanda, herança do contexto de urbanidade e industrialização pelo qual passava o Brasil na época do surgimento da religião. Isto explicaria a presença da nomenclatura do mundo do trabalho na linguagem religiosa e a boa aceitação das idéias kardecistas de evolução da alma, em detrimento noção de temporalidade cíclica presente em outras religiões de matriz africana, como Candomblé, por exemplo. Explica também a substituição das performances circulares (presentes em outras tantas tradições das quais sofreu influência, como a indígena e a africana) por formas mais retas, como retângulos, linhas e quadrados. A meu ver, todos estes fenômenos apontam para um plano simbólico comum, presente na religião e do qual emergem. É este plano que chamei “Estética do Progresso”.

Na extremidade oposta ao altar, se localizam os instrumentos de percussão que vão acompanhar o ritual: um tambor, símbolo da influência africana sobre a religião e um par de maracás, símbolo da influência ameríndia. Em outras casas, é comum também ver presente um triângulo, um agogô ou outros tambores, compondo uma bateria sagrada. O tambor é tocado por uma moça de nome Raquel, que tem cargo de ogã da casa (portanto, a responsabilidade sobre o tambor é exclusividade sua), posição considerada de destaque pela importância do instrumento no ritual. Os maracás têm função secundária, apenas de se juntar ao toque do tambor, floreando e estendendo-lhe a batida. É indiferente se há ou não alguém a

tocá-los, ou quem seja esta pessoa (geralmente um ou dois se revezam nesta tarefa).

Ogã é palavra utilizada para identificar uma das funções na casa de Candomblé. É um título dado aos iniciados, do sexo masculino, que não incorporam. É considerada uma posição de autoridade dentro da casa onde “nasceu para o santo” e até perante a sociedade mais ampla da religião, pois lhe são destinadas tarefas de essenciais na realização da maioria dos rituais. Tais tarefas são consideradas masculinas e o título de Ogã varia conforme a que lhe é designada. Desta forma: o Axogun é responsável pelos sacrifícios de animais; o Alagbê toca os instrumentos de percussão (atabaques e agogô); o Olossaim é responsável por colher e tratar as folhas rituais... Como a função de Alagbê é a mais visível para o grande público, ocorre que, muitas vezes, se diz de forma errônea que a função do Ogã é somente tocar os atabaques. É desta forma que este termo entra na Umbanda: em substituto ao termo antigo utilizado para designar os tocadores de tambor, o de tambozeiro.