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3 AS TRAMAS E OS DRAMAS DE UM PERCURSO TEÓRICO-

3.2 PÔR NA TRAMA O CONTEXTO: UM ENFOQUE AOS BASTIDORES DE

3.2.3 Estar e deixar o campo: uma breve nota sobre a experiência

Neste segmento, pretendo articular uma breve reflexão sobre a prática da pesquisa de campo, explorando os obstáculos, os êxitos e as escolhas realizadas no percurso. A descrição dessa experiência contribui na compreensão dos dados, que serão analisados nos capítulos seguintes, na medida em que contextualizam a forma como foram construídos. Parto do reconhecimento da heterogeneidade e da não-linearidade como características de qualquer pesquisa de campo (AGOSTINHO, 2008) e destaco algumas peculiaridades e os desdobramentos que foram enfrentados nessa investigação. Para tanto, apresento o percurso em quatro momentos distintos que, embora entrelaçados, foram sistematizados na organização dessa reflexão e correspondem ao: momento de incursão, momentos de frustrações, momentos de acolhimento e momento de encerramento do campo.

O momento de incursão ao campo foi marcado, sobretudo, por uma quantidade volumosa de construção de dados desconexos. Ao ir a campo “queremos antes de tudo entender o que está sendo dito por nossos interlocutores” (FONSECA, 1998, p. 59) e, nessa busca, a totalidade do cotidiano me parecia importante de ser descrita. Na incursão ao campo eu ouvia, observava, perguntava e anotava tudo o que me era possível. Quando o fluxo da vida cotidiana era mais veloz do que minhas mãos conseguiam anotar, eu gravava os áudios dos acontecimentos no celular. Nesse início, relembrei, quase como um mantra, a sugestão de Pires (2011, p. 146), ao dizer que os “diários podem ser exclusivamente descritivos, mas devem ser exaustivamente minuciosos”, e, tão logo quanto possível, transcrevia os áudios e ampliava as anotações detalhadamente. De fato, os detalhes e as sutilezas do cotidiano, que, no início, foram descritas com uma investida para análises futuras, fizeram toda a diferença na produção do texto final, mas, naquele momento, eu só as via como uma grande quantidade de pontas soltas.

Outro ponto de destaque, presente no momento de incursão em campo, foi a configuração do meu envolvimento com as crianças. Como as observações, anotações e perguntas eram intensas, tentei distinguir-me dos papéis das professoras, colocando-me como uma outra adulta, pesquisadora e interessada nas vidas das crianças, e acabei por construir um não-lugar no campo. As relações iniciais eram superficiais e, por mais que investisse em conversas interessadas e tentasse participar das brincadeiras, as crianças agiam apenas como excelentes anfitriãs. Eram solícitas e educadas comigo, me identificavam como uma adulta diferente das professoras, colaboravam com dados, mas com um envolvimento sintético.

Após um pouco mais de um mês de campo, comecei a sentir-me exausta e perdida emocionalmente, e tive meus momentos de frustração. Os dados desconexos me confundiam e, quando aproximava algum das leituras teóricas, logo à frente encontrava outro dado que refutava minha primeira interpretação. Cheguei a pensar na alternativa de modificar a questão de pesquisa por conta da dificuldade de entendimento, porém, os dados eram, em sua maioria, sobre aprendizagens, ou seja, não se tratava de o campo não mostrar, mas de que eu não compreendia (ainda) o que o campo estava mostrando. Todavia, concordo com Geertz, de que:

Fazer a etnografia é como tentar ler (no sentido de ‘construir uma leitura de’) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado (GEERTZ, 1989, p. 7, grifos do autor).

As palavras do autor, que lidas precedentemente me pareciam belas, durante o campo, imersa em um não-lugar, representavam angústias e autocríticas acentuadas. Além disso, esse não-lugar, sobre o qual me refiro, era profundamente desconfortante. Não ser professora, não ser criança, não ser gestora e não ser responsável pelas crianças, em um contexto em que todos os atores sociais ocupam um lugar ou outro dentre os citados, me deixava deslocada. Entender esse não-lugar só me foi possível à medida que as relações com as crianças se tornaram mais íntimas e sólidas. Gradualmente, passei a estar mais tempo envolvida com as crianças e menos tempo anotando e observando. As notas de campo se tornaram mais apressadas e menores, as gravações de áudio, mais recorrentes e, as descrições densas no diário eletrônico menos estranhas, ao passo que eu estava compartilhando, de maneira diferente, as mesmas experiências com as crianças.

Defino esse como o momento de acolhimento das crianças, um acolhimento diferente daquele dos anfitriões, daquele de quando cheguei à escola, sendo muito bem recebida por adultos e crianças. Deixou de ser importante ter que administrar meu envolvimento e refletir se o mais correto era eu me aproximar ou esperar por convites. O fato é que eu estava com elas, e estar com as crianças me deixava muito confortável. Um dos momentos mais marcantes desse acolhimento foi quando conquistei a senha da batcaverna, termo que, com quase dois meses de campo, eu não havia escutado. Certo dia eu estava procurando o Otávio no pátio e o avistei em cima do trepa-trepa, lugar que eu frequentava com frequência, por ser um ponto de encontro das crianças quando estavam no pátio. Quando cheguei ao topo do trepa-trepa, Otávio me olhou com a testa franzida demonstrando pouco gosto por minha presença no local:

Otávio: como é que tu conseguiu a senha da batcaverna?

Pesquisadora: não sabia que precisava de senha, eu já vim aqui várias vezes!

Otávio: é, mas é que antes tu não enxergava os segredos e agora tu enxerga, não pode mais entrar se não tiver a

senha.

Pesquisadora: e como eu faço para conseguir essa senha?

Otávio: primeiro tu tem que sair e esperar lá naquele banco. [Otávio pega minha mão e me leva até o banco]. Otávio: olha, tu fica aqui que eu vou falar com o Carlos. [Em segundos, Otávio chega com Carlos]

Otávio: será que a gente dá para ela?

Carlos: vamos chamar o Yuri [os meninos saem] (DIÁRIO DE CAMPO, 2018).

Ao longe, avistei os meninos brincando e logo pensei que haviam desistido de me dar a senha. Passaram-se aproximadamente cinco minutos e observei, ansiosa, as crianças se aproximarem de mim a passos rápidos:

Otávio: a gente decidiu te dar a senha. Me dá tua mão! [Estendo a mão e Otávio coloca seu polegar no meio da

palma da minha mão. Ele gira seu polegar para a direita e para a esquerda fazendo barulho a cada giro: tic, tic, tic tic, tic, tic.. Carlos e Yuri repetem o procedimento do Otávio na minha mão]

Pesquisadora: deu?

Otávio: sim, agora vamos lá testar. Pesquisadora: e então? Deu certo? Otávio: espera uéé! Quando abrir, abriu.

Carlos: ó abriu. Agora tu pode entrar para sempre (DIÁRIO DE CAMPO, 2018)

Ao subir na batcaverna, Otávio começou a me mostrar os espaços do pátio, os quais eu já conhecia, mas como espaços vazios, em que as crianças brincavam de pega-pega. Segundo Otávio, no lado direito estava o estacionamento, no lado esquerdo estava o espaço de treino da equipe de luta, onde aprendiam a virar estrelinha e alguns golpes, e a batcaverna, local em que estávamos, era o espaço para planejar as brincadeiras. Perguntei ao menino o que eu deveria fazer se alguém sem a senha subisse na batcaverna, e ele respondeu que não tinha importância, pois só quem tinha a senha é que conseguiria ver. Se, para as crianças, me dar a senha era uma forma de permissão para que eu brincasse com elas ou mesmo um convite, para mim representou um rito que definiu esse outro tipo de acolhimento.

Esse momento de acolhimento foi marcado também por outra relação com as professoras, que se tornaram mais tranquilas frente à minha presença na sala e viabilizaram a alteração da temporalidade da pesquisa, prevista inicialmente para quatro meses. Como mencionei acima, os dados construídos nesse momento de acolhimento, embora em menor quantidade, foram mais transparentes, mais concretos, e um maior tempo no campo fez-se necessário. Ampliamos para cinco meses de trabalho de campo, com encerramento previsto junto ao fim do ano letivo. Ainda assim, a previsão de término estanque me inquietava, pois eu tinha um receio de que muitas coisas importantes poderiam ser deixadas de lado. Entretanto, e contraditoriamente, o próprio campo não exigiu minha permanência até o último dia letivo.

Sobre o momento de encerramento da pesquisa de campo, relativo ao tempo, é assumido na Antropologia clássica, a defesa de um longo período como um dos critérios para as etnografias. Ainda que raramente seja especificada uma temporalidade ideal, as orientações são para que a permanência do pesquisador no local da investigação seja prolongada e suficiente (CLIFFORD, 2002). No entanto, é inegável que há uma dificuldade em viabilizar um tempo prolongado de campo na pós-graduação de Mestrado, uma vez que é imposta a conclusão da Dissertação para um ano após a qualificação do projeto. Diante desse fato, cabe aos pesquisadores problematizar o que seria esse tempo suficiente, interrogar-se sobre quais as relações entre a imersão prolongada e a profundidade das análises e, ainda, se há garantias de que a prescrição de uma temporalidade longa enobreça os dados construídos (CLIFFORD, 2002).

Nesta pesquisa, o tempo de encerramento do campo foi uma decisão tomada a partir das minhas percepções subjetivas e objetivas da ação empírica. Na metade do mês de dezembro de 2018, faltando quatro idas a campo, no meu cronograma, percebi que a pesquisa deveria ser encerrada, pois os encontros com as crianças estavam configurando-se de uma maneira que não mais investigativa. Reproduzo um relato pessoal e reflexivo do meu diário de campo, que auxilia na compreensão dessa outra conjuntura de envolvimento com as crianças:

Sento-me no banco e ela [Helena] pede para que eu deite com a cabeça em seu colo. Neste momento penso no dia lindo que está fazendo, penso no campo que está acabando e decido que não pesquisarei mais nada hoje. Só vou brincar mesmo e aproveitar o restinho da manhã com as crianças. Parando para pensar agora, isto tem se repetido com certa frequência não é mesmo Claines? [Reflexão] Acho que está batendo uma nostalgia, uma sensação parecida de quando estava acabando a faculdade. Fecho os olhos, pois ela [Helena] me manda dormir. Abro meus olhos e ela os fecha. As meninas discutem, porque também querem ser a mamãe. Será que estão acabando minhas perguntas? (DIÁRIO DE CAMPO, 2018).

Nas escritas seguintes àquele dia, me propus a elaborar novas perguntas, para prosseguir no campo, entretanto, as formulações foram, de modo geral, sobre outros temas que surgiram, bem distantes do que eu investigava. Verifiquei também que, em relação a aprendizagem, a polissemia de respostas (diretas e indiretas) das crianças havia se tornado regular, e que já contava com uma boa estrutura de dados. Esses foram os fatos que me levaram a entender que aquele era o momento de encerramento do campo. Realizei ainda duas visitas, uma para agradecer às crianças e à escola e, outra, em um evento de final de ano, quando as crianças apresentaram um teatro para a comunidade.

Finalizo, esclarecendo que deixar o campo, no meu ponto de vista, tem a ver com a sensibilidade de olhar para o próprio campo e identificar o que ele nos exige e o que ele nos apresenta. É claro, essa sensibilidade não deve ser confundida com uma epifania, como se, de um momento ao outro, tudo se tornasse claro e definido. É uma sensibilidade que se dá mediante um processo de reflexão e interpretação da própria ação empírica, da dinâmica do envolvimento que transforma e da consistência e intensidade dos dados produzidos. Reafirmo, acentuando, que esse enfoque, sobre os bastidores do campo, não é e tão pouco aspira ser regra, receita ou resposta para uma investigação. A descrição desse percurso devem, sim, ser encarado como uma breve nota sobre a experiência do campo, que contextualiza o ambiente, os sujeito e os dados. Prossigo, no relato da experiência, apresentando, na próxima seção, o modo como foram organizadas as unidades de análise.