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2. CONCEITOS E CATEGORIAS

2.3. Constelação, análise modelar, utopia

2.3.1. Estetização

Se voltarmos os olhos para a parte da produção estritamente acadêmica acerca de Adorno que, todavia, é balizada pelo tratamento isolado da estética – algo que aqui chamaremos de estetização intrínseca –, veremos um grande número de ensaios, artigos e livros que procuram compreendê-lo, sobretudo, como um autor voltado à crítica cultural e a reflexão acerca da arte moderna, a arte de vanguarda, a música nova, a nova dramaturgia, etc. Ao lado disso, outra parte dos especialistas procura entender, pendendo a balança para o lado da crítica, não apenas o modo de ser da arte nesses sucessivos momentos, mas a forma contemporânea da produção cultural em geral, abrangendo o que seriam as duas faces de um mesmo fenômeno: o pólo da autonomia, representado pelo que Adorno chamou, repetidas vezes, de arte, e o pólo da heteronomia, representado pelo afamado conceito indústria cultural. E aqui chegamos ao núcleo do problema que queremos acompanhar. A maior parte

tendência congruente (Tipo 1), com uma diferença: ao contrário dessa, e a partir de um diagnóstico semelhante, a leitura mediativa se propõe não apenas o re-equacionamento da questão, mas também o abandono de algumas categorias.

Para além dessa tipologia aberta pela implicação estética da idéia de indústria cultural, está o livro de ZUCKERMANN, Gedenken und Kulturindustrie, Philo, 1999, que aplica as categorias adornianas à análise do holocausto. Embora se trate ainda da indústria cultural, o que está em jogo na obra é menos a crítica às mercadorias culturais e mais a crítica à produção de falsa consciência pelo revisionismo histórico, o que significa uma apropriação das categorias do capítulo sobre a indústria cultural na Dialética do esclarecimento, aplicadas ao esquema do anti-semitismo, sugestão encontrada na própria obra e que, até onde sabemos, foi exposta primeiramente no ensaio de CLAUSSEN, “Nach Auschwitz”, em um volume organizado por DINER, Zivilisationsbruch, Fischer, 1988, p. 54-68. Cf., no mesmo volume, o ensaio luminoso de POSTONE, “Nationalsozialismus und Antisemitismus”, p. 242-254, que deve ser lido como adendo necessário ao esquema exposto no livro de Adorno e Horkheimer.

da leitura que se faz de Adorno fora do meio acadêmico tem como marco fundamental sua crítica aos produtos da chamada indústria cultural, especialmente aqueles que ele rejeitou e que são, ao contrário, fonte de deleite para uma infinidade de pessoas, como é o caso do Jazz e da música popular, do cinema e da astrologia. Nesse outro círculo, Adorno é pouco lido, mas combatido ou defendido com paixão inesgotável. O que nos parece essencial no entendimento dessa questão é que, em função do que mostramos até agora, o tratamento não isolado, digamos, constelatório, deveria ser a condição inicial para uma discussão adequada das razões para a inclusão ou exclusão de cada uma dessas expressões culturais na extensão dos conceitos arte e indústria cultural. Em outra forma: o debate sobre a indústria cultural não se torna atividade crítica, no sentido proposto por Adorno, a não ser que as demais categorias de seu pensamento sejam postas à baila. Ora, como o debate não-acadêmico acerca da validade da crítica de Adorno à indústria cultural não passa pela compreensão dos diversos registros de sua obra, como esse debate nem mesmo parte da pergunta pelo porquê do seu diagnóstico implicar tal crítica, então – qualquer que seja a entrada na questão, qualquer que seja a “tomada de posição” – a referência à Adorno, no debate, é mero adorno. No caso, tratar-se-ia somente de encontrar ou rejeitar algum argumento de autoridade para escolhas já feitas e carentes de fundamentação. Esta é a estetização extrínseca: Adorno como adorno.

Logo, o que queremos notar é que se, por um lado, a querela midiática acerca da indústria cultural é motivada pelo fenômeno da estetização extrínseca de Adorno, que só se resolveria com a mudança das condições de recepção da obra, essa depende, por outro lado, de uma alteração no modo persistente pelo qual os estudos

adornianos têm obnubilado a inconsistência da estetização intrínseca de sua obra. A hipótese que propomos para a solução desse impasse nos reconduzirá ao ponto que deixamos em aberto.

Na observação que abre o volume com as atas do congresso de Frankfurt em comemoração aos cem anos do nascimento de Adorno, Honneth observa:

Nos últimos anos, pode-se dizer certamente sem exagero, consumou-se no mainstream das ciências do espírito e sociais um dramático abandono da teoria de Adorno; [...] somente na estética sua teoria ainda tem um papel influente, pode-se dizer dominante, porque ela pode funcionar como chave para a compreensão da arte moderna.150

Se julgarmos válido o diagnóstico de Honneth, contraponto interessante ao diagnóstico dos organizadores daquela mostra de arte comemorativa que abriu esta tese,151 podemos inferir que a Teoria estética passou a ser a porta de entrada e chave explicativa da obra de Adorno. Essa inferência permite o estabelecimento de uma hipótese que conquanto não seja plenamente demonstrável, tem alto poder explicativo. Com efeito, a partir dos diagnósticos citados, é possível inferir que, “nos últimos anos”, a imensa maioria dos jovens adornianos passou a se dedicar ao estudo da dimensão estética de sua obra. Ora, na medida em que esta recepção intrínseca levava a tradição a se confrontar com os aspectos salientados pela recepção extrínseca, o debate acerca da indústria cultural aflorava como o nó da questão para ambos: por um lado, os especialistas reconheciam que Adorno estava

150

HONNETH, “Vorbemerkung”, in HONNETH (Org.), Dialektik der Freiheit, Suhrkamp, 2005, p. 8.

151

HIRSCH; MÜLLER, “Vorwort”, in SCHAFHAUSEN et al. (Orgs.), Adorno, p. 7-9. O ponto a ser observado é que enquanto Honneth afirma que os estudiosos adornianos se refugiaram na estética, Hirsch e Müller apontam que mesmo ali sua dominância vem sendo disputada. O que se deve notar, porém, é que o fato de ainda haver disputa indica sua presença; o que é dramático, como sugere Honneth, é o silêncio nas demais áreas.

sendo veiculado como mercadoria cultural no modo da estetização extrínseca e, para combater essa tendência, se aferravam cada vez mais na análise imanente da obra, o que contribuiu para que a estética fosse ainda mais estudada, em detrimento das dimensões que haviam perdido respaldo na canônica acadêmica, fortalecendo, nessa medida, a estetização intrínseca; por outro lado, os leigos, recebendo as respostas cada vez mais técnicas geradas pela estetização intrínseca, não tinham outra reação a não ser concluir que Adorno é mesmo incompreensível, o que acabou contribuindo para reforçar a estetização extrínseca, uma vez que nenhum leigo se sentia apto para lidar com ele e, não obstante, lidava. Com isso, o debate entre especialistas e leigos foi se tornando um diálogo de surdos, gerado pelo fosso cada dia maior entre ambos.

Desdobrando a hipótese: com o peso desmedido dado ao domínio estético da obra, resultado dessa estratégia de combate ao Adorno que é mero adorno, a recepção intrínseca aprofundou a cegueira envolvida no tratamento inconsistente da obra. Ao mesmo tempo, tal cegueira hermenêutica parece se radicar em um outro passo do problema: quando lidamos com a Teoria estética ou a crítica à indústria cultural, Adorno parece contemporâneo, parece estar falando diretamente a nós, parece estar vivo. Ora, isso ocorre não apenas pela validade de seu diagnóstico ou porque sua obra se fez chave de leitura da arte moderna, mas também porque há um debate intenso acerca dessas questões na periferia da academia, debate cujo motor é justamente o conflito entre as duas ordens de recepção. Logo, a cegueira hermenêutica é especialmente motivada por uma ilusão de um “Adorno vivo”, ilusão essa que se deve ao mecanismo de retro-alimentação do debate acerca da indústria cultural.

A saída para esse dilema é, como defendemos no capítulo anterior, admitir que Adorno não está vivo, não é “atual”, pelo menos não exatamente: seu pensamento se torna tanto mais concreto, quanto mais se deixa atualizar; e como nem a época para a qual ele falava é a nossa, nem os fenômenos que descrevia são os mesmos, então tanto os diagnósticos devem ser refeitos, como os conceitos devem ser compreendidos em uma nova figura. Em síntese, cabe considerar que essa série de posições críticas, constituída por via da negação determinada dos momentos, alude a distintas constelações. Isso não significa que nada do que então foi dito não tenha validade,152 nem que não haja nada parecido com uma indústria cultural nos dias de hoje: pelo contrário, tanto há, que foi justamente sua atividade que levou à estetização de Adorno. O que se trata, portanto, é de reconhecer que os mesmos traços que nos afastam da indústria cultural “clássica”,153 presente até onde não imaginávamos – na tradição interpretativa do pensamento do próprio Adorno –, ainda nos permitem dizer que “o diagnóstico de Adorno do caráter de mercadoria da cultura envelheceu bem – ele se tornou, depois de décadas, sempre mais correto”.154

152

Fundamentalmente, entendemos que ainda tem validade o que define a questão, a saber, “os conceitos de uma obra de arte radical, que aspira à autonomia na relação com seu contemplador, e de cultura de massa, que vive em função dos desejos e expectativas de quem a consome, integrando-se em um contexto de consumo” (FREITAS, Adorno e a arte contemporânea, Zahar, 2003, p. 52). O que não significa, todavia, que os fenômenos que esses conceitos abarcam sejam, hoje, localizáveis. Paradoxalmente, as condições contemporâneas de produção cultural parecem ter emprestado a esses conceitos algo que deles não se esperava: que determinassem apenas condições transcendentais de possibilidade.

153

Cf. DUARTE, Teoria crítica da indústria cultural, p. 174-182.

154