• Nenhum resultado encontrado

ESTUDO DIDÁTICO DA BISSETRIZ

A Didática da Matemática permite identificar e compreender os fenômenos que interferem nos processos de ensino e de aprendizagem dos conteúdos matemáticos.

Nesse sentido, realizamos o estudo didático da bissetriz com base na Teoria dos Registros de Representação Semiótica de Raymond Duval que é dedicada a analisar os registros de representação semiótica de um objeto matemático e suas possíveis transformações (tratamento e conversão) para a aprendizagem matemática. Como a Geometria é um campo da matemática que possui particularidades devido ao registro figural, o autor dedica parte de sua teoria a esse campo. Além disso, a escolha da teoria está de acordo com nossos objetivos, no sentido de analisarmos as representações no registro figural e verificarmos suas diferentes apreensões.

Assim, considerando as definições de ângulo e de bissetriz podemos ter diferentes representações figurais. Quanto ao ângulo podemos ter duas representações, como mostra a Figura 2, em que a primeira representa o ângulo como região e a segunda a partir de semirretas.

Figura 2 - Representações figurais para ângulo

Fonte: Produção da Pesquisadora

Quanto às definições de bissetriz teríamos, para cada uma dessas representações de ângulos três representações possíveis, como mostra a Figura 3 para a definição por semirretas: a que considera a congruência de ângulos, a

igualdade de medidas e a bissetriz como lugar geométrico, respectivamente, que poderiam também ser apresentadas para a definição de ângulo por região.

Figura 3 - Representações figurais para bissetriz

Fonte: Produção da Pesquisadora

Ver uma figura exige uma percepção mais complexa do que apenas reconhecê-la, por este motivo, uma parte importante da teoria de Duval (2004) são as apreensões, identificadas como: perceptiva, sequencial, discursiva e operatória.

A apreensão perceptiva tem a função de identificação de uma figura e, sendo individual, pode ser entendida como uma apreensão gestáltica1 que seria a maneira como a figura é entendida pelo sujeito. As representações apresentadas na Figura 3 favorecem a apreensão perceptiva de bissetriz, pois a primeira permite ao sujeito interpretar que a semirreta divide o ângulo em dois ângulos congruentes; a segunda, que a semirreta divide o ângulo em dois ângulos que têm mesma medida e, a terceira, que os pontos da semirreta são equidistantes aos lados do ângulo.

A apreensão discursiva corresponde a explicitação de propriedades matemáticas. Observando a representação figural e a legenda, apresentada na Figura 4, podemos desenvolver um discurso que identifica a semirreta 𝐴𝐹⃗⃗⃗⃗⃗ como sendo a bissetriz do ângulo CAB. Pela interpretação das circunferências que aparecem na construção podemos afirmar, ainda, que os triângulos ADF e AEF são congruentes, pois 𝐴𝐷 = 𝐴𝐸 (porque são raios da mesma circunferência); 𝐷𝐹 = 𝐸𝐹 (porque são raios de circunferências congruentes) e possuem o lado AF comum aos dois triângulos.

1 Moretti e Brandt (2015) definem que gestáltica vem de gestalt ou psicologia da forma, que procura entender como as figuras organizam-se e são percebidas pelo sujeito.

Figura 4 - Justificativa da bissetriz

Fonte: Baseada em Girotto (2016, p. 24)

A apreensão sequencial é solicitada em atividades de descrição de uma construção para que seja reproduzida. O indivíduo não desenvolverá a apreensão sequencial apenas quando for capaz de seguir o passo-a-passo para representar uma construção, mas também, quando fizer uma construção por si próprio e for capaz de descrever sequencialmente o passo-a-passo para que outro a reproduza.

Figura 5 - Construção da bissetriz

Fonte: Produção da Pesquisadora

Na Figura 5 apresentamos a construção da bissetriz de um ângulo a partir da apreensão sequencial dos seguintes passos:

1º passo: construir um ângulo definido pelos pontos A, B e C, sendo A seu vértice.

2º passo: construir a circunferência com centro em A e que passa por um ponto D qualquer em um dos lados do ângulo.

3º passo: determinar o ponto E de intersecção da circunferência com o outro lado do ângulo.

4º passo: construir a circunferência com centro em D que passa pelo ponto E, e a circunferência com centro em E que passa pelo ponto D.

5º passo: determinar o ponto F de intersecção das duas circunferências na região interior ao ângulo.

6º passo: determinar a semirreta com origem no ponto A e que passa pelo ponto F.

Essa semirreta é chamada de bissetriz do ângulo BAC.

O exemplo acima propõe que o aluno siga os passos para a construção da bissetriz, mas ele pode ter que aplicá-la para resolver um problema, como por exemplo: temos dois fios em um campo que terminam na beira de um lago (Figura 6).

O problema consiste em colocar um terceiro fio, entre esses dois, de modo que tenha a mesma distância aos outros dois. Mais à frente na seção que trata de aplicações apresentamos a solução desse problema.

Figura 6 - Representação do problema

Fonte: Produção da Pesquisadora

Nessa atividade o aluno tem que mobilizar seus conhecimentos de bissetriz à medida que percebe seus pontos equidistantes aos lados de um ângulo, prolonga os segmentos que representam os fios para encontrar o vértice desse ângulo e realiza a construção. Se o aluno for capaz de descrever os passos da construção que soluciona o problema então, conforme Duval (2004), terá sido desenvolvida a apreensão sequencial.

Com relação a apreensão operatória ela possui uma função heurística que permite a compreensão das modificações possíveis sobre as figuras para fins de resolução de problemas, como a necessária para resolver o problema anteriormente citado, por exemplo. Duval (2004) diferenciou três tipos de modificações: ótica,

posicional e mereológica que podem ser realizadas diretamente nas figuras ou mentalmente.

A modificação ótica permite aumentar, diminuir ou deformar uma figura por meio da produção de uma imagem da figura dada que permite explorar informações sobre homotetia, por exemplo, como mostra a Figura 7. Nela vemos a ampliação no triângulo ABC por homotetia no triângulo A1B1C1 sendo identificado os pontos D e D1

de encontro das bissetrizes de ambos os triângulos.

Figura 7 - Modificação ótica de uma figura

Fonte: Produção da Pesquisadora

A modificação posicional desloca a figura dada, sem modificar suas medidas e forma, como as rotações, translações e reflexões, ou seja, mantém a congruência, como podemos ver na Figura 8 que mostra a rotação do ângulo ABC e de sua bissetriz em 90° no sentido anti-horário.

Figura 8 - Modificação posicional da bissetriz

Fonte: Produção da Pesquisadora

Na modificação mereológica uma figura pode ser dividida em partes ou subfiguras de várias formas que podem ser combinadas para formar outra figura e se baseia na relação parte-todo. Esta operação, própria da modificação mereológica é chamada reconfiguração e se caracteriza por ser um tratamento no registro figural. A apreensão perceptiva favorece a visualização de como essas modificações poderão ser feitas para se obterem novos elementos que levarão a solução de um determinado problema. Um exemplo dessa modificação pode ser a construção da bissetriz de um ângulo de vértice inacessível como mostra a Figura 9.

Figura 9 - Construção da bissetriz com origem inacessível

Fonte: Produção da Pesquisadora

Dadas a representação de duas semirretas sem suas origens e que são identificadas como lados de um ângulo qualquer, podemos visualizar que elas se intersectam em um ponto V que seria o vértice desse ângulo. Podemos determinar os pontos A e C e B e D, respectivamente, em cada uma delas. Depois, traçar a reta por C e D, imaginando um triângulo CDV, e as bissetrizes dos ângulos ACD e BDC, respectivamente, que têm como intersecção o ponto E. Por um ponto F na reta AC traçamos a reta FG paralela à reta CD, imaginando um triângulo FGV, e as bissetrizes dos ângulos AFG e FGB que se intersectam no ponto H. Assim, sabemos que o ponto V, vértice do ângulo considerado, pertence à reta EH.

Vemos que para resolver o problema foram traçadas retas auxiliares para a construção de bissetrizes de ângulos de triângulos que foram visualizados e que permitiu encontrar a solução do problema. Quando inserimos as retas auxiliares

estamos realizando uma reconfiguração, uma modificação que não é solicitada no enunciado, mas é necessária para a solução do problema.

As apreensões não aparecem de forma isolada, mas são articuladas para a resolução de um problema que pode solicitar a articulação entre dois ou mais tipos de apreensões. Duval (1997, apud Moretti e Brandt, 2015, p. 5) cita quatro delas:

“Figura geométrica é o resultado da conexão entre as apreensões perceptiva e discursiva: é preciso ver a figura geométrica a partir das hipóteses e não das formas que se destacam ou das propriedades evidentes”. Nessa articulação a apreensão discursiva é subordinada à apreensão perceptiva, como mostra a Figura 10, em que o discurso de que os segmentos PD e QD têm mesma medida porque AD é bissetriz do ângulo BAC que resulta da percepção de que os ângulos BAD e CAD têm mesma medida e que os ângulos APD e AQD são retos.

Figura 10 - Figura geométrica

Fonte: Produção da Pesquisadora

A “visualização é o resultado da conexão entre as apreensões perceptiva e operatória. A visualização não exige nenhum conhecimento matemático, mas ela pode comandar a apreensão operatória”. É utilizada para a exploração heurística de uma situação problema.

Figura 11 - Visualização

Fonte: Rezende e Queiroz (2008, p. 130)

Na Figura 11 a apreensão perceptiva evidencia a falta do vértice, V, necessário para o traçado da bissetriz com compasso e orienta para uma estratégia de resolução que consiste em traçar uma reta r paralela ao lado VB⃗⃗⃗⃗⃗ que será auxiliar na construção da bissetriz. Essa reta irá intersectar VA⃗⃗⃗⃗⃗ num ponto denominado C. Utilizando o compasso, com o centro em C e raio arbitrário, traçar um arco DE, que intersectará a reta r no ponto E e a semirreta VA no ponto D. Com a régua, unir os pontos D e E, prolongando até intersectar a semirreta VB, obtendo o ponto F e a semirreta DF. Com o compasso construa dois arcos de centro em D e mesmo raio que estejam entre as semirretas VA e VB. Com o mesmo raio e centro em F, construa outros dois arcos que estejam entre as semirretas. A intersecção dos arcos originará dois pontos que pertencem a bissetriz desse ângulo de vértice inacessível. A construção pode ser justificada pela semelhança dos triângulos isósceles CDE e VDF que emergem.

Esse processo se refere a apreensão operatória como um tratamento realizado em uma representação figural, ou seja, uma modificação mereológica na figura dada, o que permitirá a construção da mediatriz do segmento 𝐷𝐹̅̅̅̅ que também será a bissetriz do ângulo de vértice inacessível.

“A heurística e demonstração é o resultado da conexão entre as apreensões operatória (que é subordinada pela apreensão perceptiva) e discursiva”. Como exemplo, apresentaremos a demonstração da propriedade que afirma que os pontos da bissetriz de um ângulo são equidistantes aos lados desse ângulo, aqui sendo considerado ângulo determinado por semirretas. Dado o ângulo apresentado na Figura 12, queremos provar que se o ponto D pertence à bissetriz do ângulo 𝐵Â𝐶, então 𝑑(D, 𝐴𝐵⃗⃗⃗⃗⃗ ) = 𝑑(D, 𝐴𝐶⃗⃗⃗⃗⃗ ).

Figura 12 - Demonstração de propriedade da bissetriz

Fonte: Produção da Pesquisadora

Considerando o ponto P, projeção ortogonal do ponto D na semirreta AB e o ponto Q, projeção ortogonal do ponto D na semirreta AC então os ângulos APD e AQD são retos e, assim, podemos considerar que os segmentos PD e QD representam a distância do ponto D às duas semirretas. Considerando os triângulos retângulos APD e AQD podemos observar que AD é lado comum aos dois triângulos. Como a semirreta AD é bissetriz do ângulo BAC então os ângulos PAD e QAD são congruentes. Assim, podemos dizer que os dois triângulos são congruentes pelo caso LAAo e, portanto, os segmentos PD e QD têm mesma medida, ou seja 𝑑(D, 𝐴𝐵⃗⃗⃗⃗⃗ ) = 𝑑(D, 𝐴𝐶⃗⃗⃗⃗⃗ ).

Assim, a heurística e a demonstração articulam as apreensões operatórias e discursivas que envolvem o raciocínio como um processo que conduz para a prova ou a explicação. Duval (2004) apresenta como uma articulação desse tipo a desconstrução dimensional que ocorre quando transformamos, de alguma maneira, as figuras geométricas em esquemas que consideram o formato (curva aberta, fechada, redonda, oval, reta, ponto, arco etc.) e a dimensão (D0, D1, D2, D3) são as unidades figurais elementares, como mostra a Figura 13. Para o autor:

Mesmo uma figura aparentemente reduzida a uma só unidade figural de dimensão 2 (um quadrado, por exemplo), só é uma figura, em matemática, se for considerada como uma configuração de unidades figurais de dimensão 1 (os segmentos formando os lados) uma vez que são as relações (paralelismo, simetria, tangência...) entre as unidades figurais elementares que constituem o conteúdo pertinente de uma figura geométrica. (DUVAL, 2004, p. 159, tradução nossa).

Figura 13 - Unidades figurais elementares

Fonte: Adaptado de Duval (2004, p. 159)

Conforme o autor as figuras que estão na dimensão D3, por exemplo, contém elementos das dimensões inferiores, ou seja, figuras planas (D2), segmentos (D1) e pontos (D0), o mesmo acontece para D2, que contém elementos de D1 e D0.

Podemos ver essa desconstrução nos exemplos anteriormente apresentados. Para Duval (2004), o que causaria o fracasso em problemas de geometria seria justamente a dificuldade de olhar uma figura nas dimensões inferiores e voltar, em alguns momentos, para a dimensão original.

A respeito da construção geométrica Duval (1997 apud MORETTI e BRANDT, 2015, p. 5) expõe que “é o resultado da conexão entre as apreensões discursiva e sequencial que também requerem a apreensão perceptiva”, em que as ações realizadas e os resultados observados conduzem a representação de objetos matemáticos. Ela não ocorre apenas em seguir passos para realizar uma construção, mas, principalmente, em realizar construções para solucionar problemas, como o exemplo que apresentamos para determinar a bissetriz de um ângulo com vértice inacessível e outros que veremos mais à frente. Para Duval:

Não importa qual a figura desenhada no contexto de uma atividade matemática, ela é objeto de duas atitudes geralmente contrárias: uma imediata e automática, a apreensão perceptiva de formas; e outra controlada, que torna possível a aprendizagem, a interpretação discursiva dos elementos figurais. (DUVAL, 2012, p. 120).

As articulações mencionadas nos mostram que a apreensão perceptiva é a primeira que ocorre, porque é imediata, o que faz com que as outras apreensões se subordinem a ela. Isso mostra a importância em trabalhar as apreensões que não são imediatas, e ainda, suas articulações para que efetivamente ocorra a construção de conhecimentos geométricos. A coordenação da apreensão perceptivas com as outras, além dos tratamentos possíveis no registro figural são atividades matemáticas que, segundo Duval (2004), são fundamentais para a análise de cada uma das apreensões, pois, a resolução de problemas exige que os alunos possam passar de um tipo de apreensão a outro naturalmente e por conta própria.