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CAPÍTULO II – reflexões sobre os termos raça, racismo e etnicidade

2.7 Etnicidade e etnia cigana

Não se pode falar de minorias étnicas e de grupos étnicos como se ambos os termos gozassem do mesmo significado assumindo que, tendo em conta a sua terminologia, ‘grupo étnico’ é um termo mais útil, não sendo tão suscetível de tantas

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ambiguidades, à semelhança do termo ‘minorias étnicas’. Este último conceito, segundo alguns autores, como Teixeira Fernandes, encerra em si uma componente estatística, reportando-nos para um maior ou menor conjunto de indivíduos reunidos num grupo. O termo remete ainda para a existência de uma ordem social em que o grupo maioritário se revindica como homogéneo, o que não tem necessariamente de ser verdade para que exista um conjunto de indivíduos de determinada etnia. Desta forma, e numa tentativa de reduzir ambiguidades conceptuais, o termo ‘grupo étnico’ revela-se mais adequado para abordar questões de etnia. Para António Teixeira Fernandes, abordado por Mendes, “o grupo étnico é marcado por alguns traços que o diferenciam do resto da população. É possuidor de uma cultura própria e de uma particular religião, é identificado, não raro, por traços fisionómicos. Estes aspetos fazem dele um mundo à parte, com o seu sistema de relações sociais e a vivência cultural” (2005: 24).

O grupo étnico é, também ele, possuidor de fronteiras, que têm a ver, entre outros aspetos, com a atitude e os sentimentos partilhados pelos membros dos grupos. As relações entre os membros do grupo, caracterizadas fortemente por traços de solidariedade, asseguram a continuidade do grupo étnico, criam-se mitos e simbolismos que dão aos membros do grupo a segurança e a convicção de pertencerem ao grupo. Segundo E. Balibar, a etnicidade e a língua são mantidas e “fabricadas” através da família, uma instituição muito importante na produção da etnicidade e da raça, que são, assim, dos fatores de fechamento do grupo, remetendo para a “genealogia reportada no imaginário ao limiar da nacionalidade” (in Mendes, 2005: 25).

Só no quadro das interações é que o termo etnia pode ser definido e conceptualizado, no entanto, etnia baseia-se, sobretudo, num conjunto de representações que se vão formando enquanto os indivíduos interagem entre si e que os grupos constroem quando se confrontam. Importa também perceber qual a origem da etnicidade. Segundo Fernandes (1995), muitos autores têm uma abordagem essencialista, ou seja, justificam as raízes da etnicidade nas relações de parentesco, partindo da premissa de que as relações familiares estão acima das relações grupais, sendo que assim se cria uma “afinidade natural”. Seria das afinidades naturais que derivariam a existência social, pois partilha-se de uma determinada língua, religiosidade e traços fenótipos.

Uma outra teoria acerca da origem étnica baseia-se no facto de existirem grupos de interesse de cariz mais instrumentalista, ou seja, “as ideologias e as identidades étnicas têm a função de exercer influência sobre as políticas económicas e sociais”

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(Mendes, 2005: 25). A etnicidade é tida como um recurso, que pode ser utilizado pelos indivíduos no sentido de tentar obter recompensas ao nível político e/ou económico. Esta premissa baseia-se no sentido em que os indivíduos tiram vantagens das afinidades culturais que partilham - religião, língua, costumes – e transformam-nas em vantagens económicas ou políticas. Cria-se, assim, um efeito reativo no grupo étnico, para que se crie uma atitude de mudança face às estruturas instituídas e instituições que os afetam. A etnicidade torna-se, em alguns casos, numa organização política que tem em vista a defesa dos seus interesses.

Tendo por base o pensamento seminal de Barth (1969), a etnicidade é também concebida como uma interação social, ou seja, a etnicidade é resultado de um processo contínuo de dicotomização entre os membros do grupo e aqueles que não são membros do grupo e assim se vão estabelecendo as fronteiras entre os grupos, definindo-os etnicamente. Estas fronteiras étnicas distinguem os indivíduos como pertencentes a determinado grupo, sendo que os ‘outsiders’ têm de ser alvo de reconsiderações e limitações, no que concerne aos valores, normas e âmbitos de ação. A interação dos indivíduos é, desta forma, categorizada. A etnicidade é também um processo cognitivo pois, para pertencer ao grupo, é preciso uma compreensão dos símbolos culturais, segundo a autora, “ a definição e redefinição das fronteiras acentua o seu carácter dinâmico e processual, na medida em que de forma contínua são objeto de recomposição”, condicionando-se a interação social. A cultura, sendo materializável - na língua e nos costumes – é fundamental na constituição étnica, dicotomizando-se a cultura étnica da cultura maioritária.

Relacionando desigualdade étnica com o grupo étnico cigano, deve-se ter em conta a multiplicidade de trajetos sociais do grupo étnico cigano ao nível político, religioso, social e cultural. Ao nível social, são alvo de um grande conjunto de desigualdades que afetam a sua inserção na sociedade e principalmente no mercado de trabalho; ao nível cultural, uma vez que têm crenças religiosas distintas, uma língua, estilos de vida, tradições e práticas; e a nível político, pautam-se por uma organização paralela ao exterior e contam com um sistema patriarcal não só na comunidade como na família, sendo de destacar a figura masculina enquanto detentora da autoridade interna. A etnicidade ganha mais relevância quanto mais distinta se parecer com a cultura maioritária, onde se encontra fixada.

O contraste social existente entre os grupos é revelador nas seguintes situações: “a localização residencial, a estrutura etária e sexual, os níveis de escolaridade e

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composição socioprofissional” (Mendes, 2005: 29). O contraste cultural verifica-se através da religião, a língua, a raça, o casamento e os modos de vida. Segundo Machado, a identidade étnica cigana apresenta uma cultura de classes tripartida. Os membros do grupo não são totalmente homogéneos, sendo que a sua atividade profissional predominante é de natureza familiar e independente, inserindo-se no sector do comércio. O autor afirma que é difícil materializar o grupo cigano numa classe social, pois revelar-se-ia incoerente face às suas múltiplas especificidades. Ao nível cultural, o grupo étnico cigano apresenta uma afiliação religiosa própria, caracterizando- se por casamentos endogâmicos e por uma intensa sociabilidade intraétnica; no entanto, o grupo é bastante permeável ao exterior. Os seus modos de vida caracterizam-se por uma família extensa, o que só por si já é um traço cultural distinto em relação à cultura maioritária.

A família é um dos elementos base da comunidade cigana, munida de bastante importância, sendo também um elemento de integração comunitária. A composição familiar pode ser bastante distinta, tendo em conta que a comunidade cigana é caracterizada por fortes traços de sociabilidade que abrangem os parentes com dificuldades económicas ou aqueles cujo cônjuge morreu. A taxa de fecundidade é também superior à média dos portugueses não ciganos e, em geral, caracterizam-se por uma estrutura etária jovem. Há um outro conjunto de valores que pautam a etnia cigana, entre os quais, “o respeito pelos mais velhos, o cumprimento dos compromissos estabelecidos entre famílias, o respeito pelos mortos, o rigor associado aos rituais funerários e a fidelidade conjugal” (Mendes, 2005: 33), deste modo, a importância da família acaba por ser um elemento natural, sendo esta dotada de um grande valor moral.

A etnicidade é também um fator importante na identidade. Entre outros fatores relevam a cultura étnica e a interação interétnica que são responsáveis pela formação de identidades socioculturais, estando relacionadas com os sistemas de ação em que o indivíduo se encontra envolvido; procedem das relações de força entre os atores sociais, da legitimidade que um grupo social representa face ao outro e de todas as ameaças que daí decorrem. Há, assim, um processo de etiquetagem que envolve todos os indivíduos de um determinado grupo étnico.

A identidade, num primeiro processo, é interiorizada pelos indivíduos, ou seja, dá-se uma “interiorização ativa”, que está relacionada com o habitus destes e de todas as relações sociais que ele constrói, o que, segundo Goffman, são “identidades sociais reais”. No entanto, a identidade que os outros lhe atribuem e a identidade que o

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indivíduo forma de si próprio, podem ser, muitas vezes, distintas. Assim, o indivíduo deve adotar estratégias identitárias que tentem reduzir as clivagens entre essas representações.