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Impõe-se clarificar a relação entre etnicidade e «raça». As diferenciações, como grupo étnico ou categoria étnica,32de «raça» e classe, constituem-se como unidades de análise distintas, sendo importante olhá-las assim, no seguimento de autores33como Banton (1967 in Eriksen 1993:5). São, porém diferenciações que muitas vezes se sobrepõem e confundem. Em São Tomé e Príncipe, são atribuídos traços de personalidade, de distintividade comportamental, física, biológica, «cultural», a pessoas enquadradas em determinada categoria. As pessoas assim «catalogadas» são classificadas entre si tendo em conta graus de superioridade e de inferioridade, em última instância ontológicos, porque a determinadas categorias corresponderia um determinado tipo de pessoas. Neste contexto, «ethnicity refers to relationships between groups whose members consider themselves distinctive, and these groups may be ranked hierarchically within a society» (Eriksen 1993:6) (itálicos meus).

A categorização rácica está presente em certas etnoteorias, como acontece nas ilhas atlânticas. A nível emic a categoria usada é a de «raça», pois a diferença – e a semelhança – das identidades são olhadas enquanto algo geneticamente transmitido. A própria atividade ocupacional é entendida como um «comportamento natural»: uma determinada pessoa teria uma propensão natural para a desempenhar.

Assim, os forros seriam os donos da terra e os de elite trabalhariam na cidade, na administração pública e em cargos políticos; os angolares seriam os pescadores; os antigos contratados, como por exemplo os cabo-verdianos, seriam os trabalhadores braçais, mais dados a atividades agrícolas. Esta «distribuição» de pessoas tendo em conta atividades laborais «naturais», estaria em grande medida relacionada com o colonialismo e as ideologias da raciologia «científica», muito comuns nas sociedades de plantação cuja economia se baseou no trabalho escravo, pois as divisões do trabalho assentavam em categorizações «raciais» partindo-se do pressuposto de que determinadas categorias de pessoas estariam particularmente «dotadas» para levar a cabo determinados tarefas. Quanto mais «primitivas» e «africanizadas» mais aptas para o trabalho braçal árduo. A atividade ocupacional é assim um elemento definidor importante para a catalogação étnica e «rácica» (e socioeconómica, de «classe»), mesmo em contexto pós- colonial. É, sem dúvida, reafirmada ainda hoje, ao nível discursivo coincidindo, ou não, com as práticas laborais efetivas da atualidade, e mesmo de um passado recente.Como facilmente se

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Explicarei esta diferença, em detalhe, à frente.

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perceberá, há identidades mais impostas que outras. Tal como afirma Eriksen « […] in some cases, ethnic identities are imposed from the outside, by dominant groups, on those who do not themselves want membership in the group to which they assigned» (1993:33). No caso de São Tomé, enquanto uns insistem na diferença, outros insistem na semelhança. Assim, percebe-se como os graus de sentimento de pertença de determinada pessoa a determinada categoria étnica são variáveis, pois pode haver diferentes pertenças étnicas por parte da mesma pessoa, que variam conforme a situação ou o encontro em causa, ou seja, a relação. As pertenças podem mesmo ser contraditórias, e podem ser vividas com «ambiguidade, angústia e complexidade» (cf. Pina-Cabral, 2003).

Nos estudos sobre o fenómeno étnico, é muito importante reconhecerem-se as diferentes formas de viver a etnicidade, assim como a observação das diferenciações internas dos «grupos», premissa que pretendi seguir em doutoramento, na continuidade do que fiz em mestrado. Acabei por elaborar categorizações tendo em conta o discurso e práticas das pessoas, surgindo em campo categorias como: «levemente angolar», que significa somos angolares mas muito pouco; «angolar di tempo ou genuíno» que seriam os angolares «puros», os «não- misturados»; os «angolares de outrora», que na verdade…não existiam nunca.Estes «verdadeiros angolares», com práticas, corpo di angolar, língua genuína, fala memo, seriam sempre os «outros», mesmo para os próprios auto e héteros classificados de angolares (cf. Feio, 2008: 63-82, 83-88). Observei estratégias de desetnicização34 por parte de pessoas inseridas na categoria angolar, sendo que se reivindicam de um estatuto mais próximo da forrosidade: «hoje em dia, é forro quem tem poder, é forro quem pode!», afirmação que ouvi tanto em 2004 como em 2012 e em 2014, tal como a afirmação «não há diferença não!», como explicarei na tese.

Neste sentido, portugueses e forros, são de algum modo, mais étnicos que os restantes, porque apostam na diferenciação (Feio, 2008:63-82). Outras subcategorias surgiram em campo, como «forro di tempo», que seriam os «forro di antigamente» e que seriam - tal como os «angolares de outrora» - os porta-estandartes dos valores tradicionais da forrosidade, os verdadeiros forros, os ascendentes diretos dos colonos e dos escravos alforriados. Existiriam ainda os «forro com orgulho» (emic), regra geral descendentes dos classificados como «forros di tempo». Os «forros com orgulho», apostariam na diferenciação étnica, face aos contratados, aos continentais, aos angolares, como também observei na presente etnografia. Os seus pais e avós,

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A par destas estratégias, descrevi os processos de etnicização angolar pontual, relacionados com o turismo em terras muito visitadas e que estão na rota do turismo internacional como São João dos Angolares. Ainda as reivindicações de resistência face ao colono, por parte dos autodenominados angolares, que também por vezes se distanciam do forro que classificam de «preguiçoso, corrupto, feito com o branco», como me diziam.

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são definidos como resistentes ao colono e simultaneamente «seus herdeiros», os legítimos donos das terras e das ilhas. Encontrei ainda muitas outras subcategorias, como «forro- angolarizado», «tongas de angolares», aqueles que foram apanhados a desempenhar a pesca, atividade associada naturalmente aos angolares, e que se afirmam, em contexto de praia: «tamos angolares, como não?» (ibid, 2008:65-66). Estas categorizações bem como outras que apresento na presente etnografia, correspondem a diferentes modos de viver a etnicidade, em situação: não são identificações definitivas nem únicas e correspondem a diferentes graus de incorporação étnica, que continuaram a surgir no contexto do trabalho de terreno realizado para o doutoramento.

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