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2. DA CIÊNCIA MODERNA ÀS ETNOCIÊNCIAS: UMA TRANSIÇÃO

2.3. Etnociência: uma alternativa contra-hegemônica

A etnociência tem como marco uma publicação em 1964, realizada por Willian C.

Sturtvant, o qual assegurou que todos os etnoconhecimentos, etnosaberes e etnopráticas pertencem a todas as civilizações, sociedades, comunidades e ancestrais, e tradições dos vários povos da humanidade (BEGOSSI, 1993). Segundo o professor José Geraldo Marques (2002), o que chamamos de etnociência (ou etnociências) já emergiu no panorama científico como um campo de cruzamento de saberes, e tem evoluído por meio de um diálogo frutífero entre as ciências naturais e as ciências humanas e sociais. A congruência destas ciências possibilitou o entendimento de uma nova concepção e a queda das barreiras disciplinares, proporcionando o caminhar e o entendimento por novas áreas antes não contempladas.

Martín (2001) entende que o prefixo etno é uma forma simplificada de dizer “esta é a maneira como os outros veem o mundo”, e que, sempre que esse prefixo anteceder ao nome

de uma disciplina acadêmica, quer dizer que os pesquisadores estão em busca da percepção de uma determinada comunidade frente a um dado aspecto do conhecimento científico e/ou cultural. Nessa concepção, a própria questão disciplinar se amplia quando o termo/prefixo

“etno” é utilizado, dando oportunidade de estabelecer diferentes conexões científicas e dialógicas. Vários autores reconhecem a Etnociência como um campo da Etnologia, Antropologia, a Antropologia Cognitiva, que abrange, no sentido mais amplo, uma alternativa para os paradigmas correntes e de uma alteração no chamado status quo, com um efeito benéfico ao conhecimento científico e à sociedade.

Assim, a previsão passa a ser um detalhe, e os resultados ampliam a dimensão do conhecimento, levando em consideração os vários atores envolvidos e entendimento da situação no entorno. Dessa maneira, as Etnociências tendem a preencher diferentes lacunas da Ciência Moderna, como a falta de dados, informações básicas sobre processos naturais, sendo uma das alternativas contra-hegemônicas que temos dentro da comunidade científica. Nas etnociências estas informações passam a ser obtidas por meio de estudos interdisciplinares capazes de contemplar diferentes olhares e perspectivas.

O enfoque holístico da Etnociência e do Etnoconhecimento consiste, essencialmente, em uma análise crítica da geração e produção de conhecimento, da sua organização intelectual e social, e da sua difusão. No enfoque disciplinar, essas análises se fazem desvinculadas, subordinadas a áreas de conhecimento muitas vezes estanques: ciências da cognição, epistemologia, ciências e artes, história, política, educação, comunicações. Ao contrário da Ciência Moderna, que esbarra numa postura de possível arrogância, presunção, a proposta da Etnociência, é um enfoque transdisciplinar, que substitui a altivez do pretenso saber absoluto, que tem como consequências inevitáveis os comportamentos incontestados e as soluções finais, pela humildade da busca incessante, cujas consequências são respeito, solidariedade e cooperação.

A transdisciplinaridade, base metodológica das Etnociências, apresenta um enfoque holístico ao conhecimento, que procura levar a essas consequências e se apoia na recuperação das várias dimensões do ser humano para a compreensão do mundo na sua integralidade.

Assim, áreas disciplinares, que foram necessariamente individualizadas no passado, confluem em novas estruturas, o que obriga a uma recontextualização, determinando transformações de natureza, conteúdos e formas, com ajustes de metodologias e busca por novos procedimentos, verdadeiramente uma ação contra-hegemônica. E, conforme Marques (2002), do ponto de

vista epistemológico, isto é de suma importância, pois começa a configurar-se uma resposta concreta à crise do paradigma cartesiano de disciplinas gerando disciplinas.

Vale ressaltar, aqui, um autor importante para a nossa discussão, Clifford Geertz (1999), autor do livro: Saber Local, que aborda, em um dos capítulos, “O Senso Comum como Sistema Cultural”. O autor critica as desqualificações de outros saberes por aqueles que se creem credenciados e embasados na ciência oficial para julgar os saberes “pré-científicos”, do “senso comum”, ao mesmo tempo em que salienta a importância de proceder a uma

“antropologia do pensamento”.

Darrel Posey (1987) destaca que inconsciente ou subconscientemente, a ciência moderna se considera dona da “verdade”, concebendo o saber comum, por ele chamado como ciência de folk, como um acúmulo de superstições e de crenças não verificáveis. O saber comum fornece os elementos necessários ao primeiro conhecimento sobre a realidade cotidiana e ao enfrentamento das dificuldades apresentadas no dia a dia. Trata-se de um conhecimento de uso espontâneo da razão, aliado aos hábitos, imaginação, crenças e tradições. Está condicionado à aceitação de valores vigentes e, dessa maneira, não é questionado ou muito menos criticado e sim, entendido entre os seus pares.

As Etnociências se baseiam em avaliações antropológicas que consideram o saber como um conjunto de habilidades possíveis de serem transmitidas e objetivam avaliar os princípios e pressupostos desse conhecimento, considerando a possibilidade de estabelecer relações com o saber científico formal.

O conhecimento das populações, povos, grupos, etnias estudadas, pode ser referenciado de diferentes formas pelas Etnociências, tais como: conhecimento local, indígena, popular, nativo, tradicional, entre outros (ALVES; MARQUES, 2005).

Isso é possibilitado, pois cada povo, grupo ou indivíduo, traduz de diferentes maneiras a sua realidade local. Assim, a riqueza de informações sobre o manejo, interação e relacionamentos se destacam, possibilitando à ciência compreender os diferentes olhares sobre um único fenômeno. Para isso, tornam-se necessárias a utilização e o entendimento, também, de diferentes metodologias que, por sua vez, são importantes para esta compreensão.

Como exemplo da interdisciplinaridade existente dentro das Etnociências, a Ilustração 2 apresenta as disciplinas, cujos métodos, técnicas e conceitos têm sido utilizados na pesquisa Etnobiológica e Etnoecológica.

A utilização de metodologias oriundas de diferentes disciplinas clássicas, pela Etnociência, diminui as críticas a ela lançadas, formando assim uma identificação metodológica única, a Etnometodologia, também de caráter interdisciplinar.

Ilustração 2 - Diagrama mostrando a colaboração teórico-prática e metodológica a uma etnociência

Fonte: organização do autor, adaptado de Marques (2002).

A Biologia e a Antropologia, nos últimos anos, têm desenvolvido um potencial significativo para contribuir com o avanço das pesquisas etnocientíficas. A Etnobiologia e Etnoecologia, Etnociências se originam da Antropologia Cognitiva, que busca entender como o mundo é percebido, conhecido, manejado e classificado por diversas culturas humanas.

A Etnobiologia tem como objetivo analisar a classificação das comunidades humanas sobre a natureza, em particular sobre os organismos. Por isso, disciplinas, como botânica, ecologia e zoologia são fundamentais, caso não se tenha a intenção de ter apenas uma abordagem êmica4.

4 A abordagem êmica representa a concepção do pesquisado. Um construto êmico está de acordo com as percepções e com os entendimentos considerados apropriados pela cultura dos observadores internos (ROSA; OREY, 2012). O padrão êmico se propõe a analisar o fato antropológico, seja étnico, grupal, individual ou fenomenológico, a partir de uma visão propriamente factual. Como o termo êmico significa interno, sugere a procura pela verdade como ela é entendida pelo agente promotor do fato, ou experimentador. Isto é, as pessoas que vivenviam aquela cultura (INSTITUTO ANTROPOS, 2017).

Lévi-Straus é um dos pioneiros da área de Etnobiologia, ao analisar os sistemas de classificação populares e compará-los com os científicos (BEGOSSI, 1993). Dentro da própria Etnobiologia existem várias subdivisões de estudo, que não deixam a interdisciplinaridade de lado, pois contemplam, nestas, diferentes abordagens e pressupostos teóricos para a sua compreensão; entre elas destaca-se a Etnobotânica, que conta com um grande acervo de estudos envolvendo o meio natural e as diversas sociedades e povos.

Segundo Posey (1987), Amorozo (1996), e Albuquerque e Andrade (2002), a Etnobotânica pode ser definida como uma área da ciência que se ocupa do estudo do conhecimento e da conceituação desenvolvida por qualquer sociedade a respeito do mundo vegetal. Tais estudos têm contribuído na compreensão da lógica das relações estabelecidas entre os povos e o componente vegetal que os rodeia (CARNIELLO; PEDROGA, 2008).

De modo suscinto, a etnobiologia, etnoecologia e etnobotânica abrangem os estudos de todos os conhecimentos, estratégias, atitudes e habilidades que permitem a certa cultura, povo, população produzir e reproduzir as condições materiais de sua existência social, por meio da gestão apropriada dos recursos naturais.