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A ETNOGRAFIA NO CONTEXTO DOS ESTUDOS SOCIAIS DA CIÊNCIA E DA TECNOLOGIA (ESCT)

A entrada no mundo da ciência não deve ser pela “entrada mais grandiosa da ciência acabada” e, sim, pela porta de trás, a da ciência em construção (LATOUR, 2000, p. 8).

A etnografia tem despertado interesse de pesquisadores em variados campos de estudos e apesar de estar inicialmente voltada para a compreensão de culturas diversas, pesquisadores dos estudos sociais da ciência, como Bruno Latour, propõem “utilizar a ‘magia do etnógrafo’ no aspecto central do mundo contemporâneo: a ciência” (HARAYAMA, 2012, p. 39).

No campo dos ESCT, o uso extenso da metodologia etnográfica vem ampliando as análises antropológicas sobre ciência e tecnologia, sendo este processo iniciado mais efetivamente a partir dos anos 1970-80 e associado, a princípio, aos “estudos de laboratório” de Latour.

Os “estudos de laboratório” enquadram-se na linha das abordagens micro que tratam das dimensões cotidianas da produção científica, na qual o nome de Bruno Latour tem grande destaque. Além de Latour, outros autores importantes como Steve Woolgar (1988), Michael Lynch (1982; 1993) e Karin Knorr-Cetina (1983; 1992) surgem como expoentes neste cenário das abordagens micro dos ESCT.

Para os estudos sociais de ciência e tecnologia, o uso da etnografia significou uma virada importante na área, marcando o rompimento de um grupo de autores cujas abordagens estruturalistas estavam ligadas a Robert Merton (1973) e sua sociologia da ciência (MONTEIRO, 2012, p. 139) com análises da ciência voltadas mais para o conteúdo do que para o contexto em que a ciência era realizada.

Apesar da importância das abordagens voltadas para o laboratório, a etnografia nos ESCT tem apresentado um número crescente de estudos dentro e fora de laboratórios, tratando de temas diversos e evidenciando o potencial da etnografia de, a partir do laboratório, migrar para outros polos de estudos da C&T. A título de exemplo, podemos citar as etnografias multissituadas das abordagens de Hess (2001) e Hine (2007), no sentido de explorar não só o laboratório, mas seguir as trilhas, as cadeias e trajetórias enredadas pelos atores, abarcando práticas e objetos que não se encontram limitadas a um local geográfico, mas envolvem múltiplos espaços, fluxos e escalas por vezes globais.

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Esse esforço ampliado configura uma segunda onda de etnografias no campo dos ESCT, mais preocupadas com o contexto ao redor do laboratório e com as relações entre laboratório e “sociedade”, sob pontos de vista diversos (HESS, 2001).

Tendo em vista que nossa proposta de estudo está voltada para a compreensão da gestão de um projeto em rede na prática, tomando como local inicial de coleta o laboratório e utilizando o método etnográfico, os trabalhos desenvolvidos por Latour em seu livro Ciência em Ação (2000) e Vida de Laboratório (1997), que abordam mais diretamente a proposta etnográfica de seguir os cientistas no cotidiano de trabalho dentro da perspectiva da TAR, orientaram nosso percurso de pesquisa. Tomamos ainda como suporte os estudos relativos à compreensão da ciência como um sistema circulatório em A Esperança de Pandora (LATOUR, 2001), de forma a compreender os diversos circuitos que envolvem a ciência, no nosso caso a gestão de um projeto de pesquisa.

Tais obras apresentam questões do dia a dia do fazer ciência que puderam ser percebidas durante nosso estudo etnográfico e dizem respeito ao recrutamento de aliados, às negociações, aos conflitos e às resistências encontradas durante a gestão, que envolviam diversos elementos em circulação, tanto os humanos quanto os não humanos. São esses conceitos que nortearão a nossa análise dos desafios enfrentados pelos cientistas na sua prática de gestão dos projetos em rede.

Segundo Latour (2000), existem muitos métodos para o estudo da construção de fatos científicos e de artefatos técnicos, o que na maioria das vezes leva-se ao estudo destes fatos e artefatos em seu produto final. No entanto, a proposta apresentada pelo autor em seu livro Ciência em Ação envolve a necessidade de não analisar os produtos finais: um computador, uma usina nuclear, uma pílula etc.; em vez disso, propõe seguir os passos dos cientistas e engenheiros nos momentos e nos lugares nos quais planejam tais artefatos (LATOUR, 2000, p. 39). E este será o método utilizado nesta pesquisa.

E para esta árdua missão de seguir cientistas, nada melhor do que utilizar a etnografia, tendo em vista a possibilidade que esta oferece de uma imersão no local a ser estudado. No nosso caso, este procedimento permitiu investigar, passo a passo, como uma equipe de gestão de um projeto trabalhava, negociava, decidia e conduzia a prática de gestão da ciência e da tecnologia em seu cotidiano, elementos nem sempre captados em outros instrumentos metodológicos. Assim, nosso interesse pela etnografia esteve relacionado a esta possibilidade de

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entrar pela porta da gestão em ação, em construção, e não somente coletar dados destes projetos quando finalizados.

Diante disso, nossa escolha metodológica se baseia na ideia de que há uma dissonância entre a gestão tal qual ela é descrita por seus protagonistas em relatórios (ou até mesmo por estudos quantitativos) e a gestão como ela ocorre na prática, no cotidiano de aplicação de seus princípios pelos atores envolvidos (MALINOWSKI, 1976). Para conseguir uma aproximação com essa prática é necessário, assim, o encontro com o outro, a observação e a descrição dos fatos observados, o que torna oportuno utilizar o ferramental da antropologia (LIMA, 2012), neste caso o método etnográfico.

Com a aproximação permitida por este método, foi possível uma compreensão dos nexos analíticos entre aqueles eventos aparentemente banais do cotidiano, com princípios mais gerais e “sociológicos”, que dão sentido aos projetos e à sua gestão. Ou seja, não se pretende aqui uma análise “microscópica” das práticas de gestão, mas uma visão analítica que reconstitua, a partir da análise detida da prática, os nexos com sentidos e práticas mais gerais a respeito da pesquisa em rede na sua inserção em contextos de pesquisa pública, de interação com a política ambiental e o planejamento estratégico da Embrapa. Portanto, apesar de estar muito relacionado à escrita de fatos e situações, o trabalho etnográfico não pode ser confundido como sendo mero registro de observações, pois uma boa etnografia requer a compreensão e análise do conteúdo e da linguagem do campo no sentido de englobar as relações sociais, estruturas de poder, significados culturais e a história (HESS, 2001).

Uma vez focados no método etnográfico, buscou-se seguir sete regras propostas por Latour (2000) para se trabalhar com uma abordagem das redes (TAR), seguindo cientistas em suas práticas de construção de fatos. Resumindo-as:

1. Analisar os fatos e máquinas enquanto estão em construção, não levando conosco