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Antigamente, as diretivas da vida humana apoiavam-se sobre verdades ab- solutas, que não podiam ser modificadas. Isto correspondia à concepção estáti- ca que se fazia do mundo naquele tempo, considerando-se a Terra como o cen- tro imóvel do universo. Hoje a humanidade, atingindo uma forma mental di- nâmica, que corresponde à concepção de uma Terra movendo-se dentro do movimento do universo, foi levada à ideia de uma verdade progressiva e rela- tiva, em constante evolução. Tudo então é concebido como um vir-a-ser. Até mesmo a existência é percebida como um transformismo que, assim como ela, não pode ser detido. É verdade que esta existência se realiza e se manifesta através de uma forma que a define e a fixa. Mas também é verdade que esta forma vai sempre mudando e, por isso, permanece apenas por um período de- terminado, ficando limitada no espaço de um dado segmento ao longo da traje- tória do tempo, esgotado o qual ela desaparece, para, depois de ter se desfeito, aparecer sob outra forma. Trata-se, portanto, apenas de uma forma temporária, continuamente sujeita a desaparecer para reconstruir-se. Eis que a existência de todas as coisas em nosso universo está encerrada dentro da lei do tempo, que jamais deixa de marcar o ritmo do seu fatal transformismo, impondo uma contínua renovação, indispensável para que se possa realizar a evolução. Por- tanto, apesar de permanecermos agarrados às formas, tendo a ilusão de ser possível detê-las e, assim, fazê-las permanecer como elas são, a experiência nos ensina que, na realidade, as coisas não são como as vemos manifestarem- se, pois o que delas existe de fato é apenas a sua duração, a sua trajetória no tempo, cujo ritmo, como um relógio, marca o passo do seu incessante trans- formismo.

A mente humana abandonou hoje a ideia do absoluto imóvel para colocar- se no relativo em movimento, porque se deu conta, por amadurecimento evo- lutivo, que esta é a realidade da vida. Este fato deslocou as velhas bases das religiões, fundadas em outros conceitos. Entretanto elas se mantêm com a ve- lha forma mental, resistindo assim às novas tendências. Nasce daí um contras- te entre as duas concepções e exigências opostas, que são dificilmente concili- áveis, pelo menos enquanto a evolução não tiver terminado de atravessar a presente fase de transição. As massas foram educadas segundo a primeira for- ma mental, tendo registrado e assimilado este modo de conceber, e isto não é fácil de mudar rapidamente, pois as ideias têm uma vontade própria, que, uma

vez lançada numa direção determinada, tende a continuar nela por inércia. As mentes, para terem uma sensação de segurança e não se equivocarem na for- mação da própria conduta, têm necessidade de crer que alcançaram a última verdade, absoluta e imóvel, pois somente uma tal verdade parece capaz de garantir uma segurança na qual se confie totalmente. De outro modo, seria como querer basear a ética apenas em princípios relativos, flutuantes e, portan- to, discutíveis. Para merecer a obediência destas mentes, necessita-se de uma verdade imóvel, dogmaticamente fixada, absolutamente segura e definitiva nas suas afirmações. Uma verdade que mudasse e se contradissesse não seria mais verdade. Ela deve, como é apropriado à psicologia humana, ser sempre verda- deira, e não hoje sim e amanhã não. Então, para estas mentes, a verdade deve ser infalível comando de Deus, que já sabe tudo, e não uma progressiva apro- ximação humana daquela verdade.

No entanto a mente, evoluindo, começou a perceber que as coisas estão si- tuadas diversamente. Ela compreendeu então que o ser humano não possui absolutos e que ele, de fato, não sabe senão atingir progressivamente uma su- cessão de valores relativos, os quais, através da evolução, aproximam-no cada vez mais do absoluto. Este, no entanto, é somente o ponto final desta ascese, encontrando-se hoje muito longe de ser alcançado. E ainda bem longe dele estão também as religiões, que, no entanto, por representarem um pensamento sobre-humano, deveriam saber tudo. Elas estão ainda cheias de mistérios e de pontos indefinidos a serem esclarecidos e definidos. Estão repletas de proble- mas não resolvidos, que precisam ser resolvidos e que vão sendo resolvidos pela intervenção de mentes laicas e pelo amadurecimento do pensamento hu- mano, conforme o princípio acima mencionado das verdades relativas e pro- gressivas, através de sucessivas aproximações de um absoluto ainda longínquo para o concebível humano.

Por isso nos encontramos diante do contraste entre duas exigências opostas, que se tenta em vão conciliar. Eis a razão pela qual as religiões não possuem de fato o conhecimento absoluto e total, capaz de oferecer uma solução defini- tiva. Se elas o possuíssem, não haveria mais mistérios ou pontos discutíveis, nem interpretações diversas da verdade, com perspectivas particulares ou vi- sões antagônicas, condenando-se uma às outras, e o pensamento religioso esta- ria à frente, em vez de, como frequentemente acontece, ter de ser arrastado pelo processo laico da ciência. As religiões esperam e aceitam grande parte da verdade, proveniente da evolução da mente humana, que vai progressivamen-

te, por sua conta, conquistando e oferecendo explicações cada vez mais com- pletas. Isto é comprovado pelo fato de que, hoje, as religiões não estão à testa do progresso do pensamento humano, tendo a ciência acabado por seguir adi- ante sozinha, deixando-as de lado, prescindindo delas como se não existissem. Isto é uma simples constatação do fato.

Ora, o fato de não possuir o conhecimento não elimina, para as religiões, a necessidade de afirmar que o possuem. Elas devem sustentar que atingiram a verdade, enquanto apenas seguem o caminho geral de alcançá-la através de progressivas aproximações, que aparecem pelo amadurecimento evolutivo das faculdades mentais humanas. Apesar de tudo, as religiões também se encon- tram submetidas à condição de terem de caminhar, porque não se pode existir senão caminhando, no entanto, ao mesmo tempo, creem e fazem crer que estão imóveis. De um lado, elas não podem mostrar que se transformaram, para não cair em contradição com os seus princípios absolutos e eternos. Mas, por outro lado, não podem deter o fluir do tempo, pelo qual elas, assim como tudo mais, são arrastadas e transformadas, não lhes sendo possível escapar às leis da exis- tência. É assim que, se não quiserem ficar para trás em posições atrasadas, mesmo se declarando absolutas e imóveis, elas têm de se transformar, como todas as outras manifestações da vida, seguindo a grande marcha da evolução, à qual nenhum ser pode subtrair-se.

De tal contraste entre inovadores e conservadores resulta o fato de que as religiões, ao invés de favorecer o progresso do pensamento, tendem, pelo con- trário, a travar o seu desenvolvimento. Assim o pensamento tem de avançar por si mesmo, com o seu próprio esforço, arrastando consigo o peso morto de quem, para não se mover e impedir os outros de avançar, resiste, mas está pronto, quando lhe é conveniente, a aceitar as novas verdades. Na Terra, as velhas verdades são defendidas porque os princípios servem de base para man- ter posições que ninguém está disposto a abandonar. A resistência é devida a razões práticas. Foi sobretudo por esta razão que o Sinédrio se opôs a Cristo. Sustenta-se uma verdade quando ela é útil à vida, que, na sua economia, assim exige. Mas a procura de novo conhecimento para aprofundar a verdade inte- ressa somente a pouquíssimos antecipadores da evolução, tomados por uma ardente curiosidade de saber, ultrapassando as massas, que permanecem alhei- as a tudo isto.

Falamos em termos gerais, com base em conceitos biológicos, expondo as leis da vida, que são as mesmas para todos. Nelas estão incluídas todas as ma-

nifestações humanas e, portanto, também as religiões. É inútil, então, distin- guir entre uma e outra. O homem é o mesmo e faz as mesmas coisas em todas as religiões. O que muda é somente a forma, as palavras, o estilo. Trata-se de leis biológicas que funcionam para todos os seres situados no nível evolutivo em que se encontra a raça humana na sua média. Um exemplo disso está no fato de que a base mais forte de uma amizade é a presença de um inimigo co- mum. A fraternidade entre os seguidores de um grupo nasce e se reforça, quando se condenam os de outro grupo. Estas são as leis biológicas que vemos aplicadas por toda parte. Passar de uma religião para outra não suprime o espí- rito sectário, que é qualidade humana.

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Mas há ainda uma outra razão pela qual as religiões tendem a ficar paradas nas suas posições do passado. Não é só a preguiça de pensar ou o medo de que, tocando o velho edifício dos princípios sobre os quais se baseiam suas posições materiais, este venha a desmoronar. A função das religiões não é so- mente teórica, para afirmar princípios, mas também prática, para dirigir as consciências e educar as massas. Estas têm as suas exigências psicológicas e, como são lentas para compreender e se mover, conservam tenazmente as posi- ções estabelecidas. É ao nível destas massas, adaptando-se às suas necessida- des, que as religiões, se quiserem funcionar, devem descer, porque aquele é o material que elas têm de elaborar.

Ora, fazer descer àquele nível novidades repentinas, pretendendo deslocar subitamente os lentos movimentos consuetudinários, sobre os quais se baseia a técnica da assimilação dos princípios destinados a fabricar o homem que vai substituir o animal, pode ocasionar, em vez de progresso, anarquia e desor- dem. Em vez de fazer progredir, uma inovação pode escandalizar. Pensa-se que Deus nunca deve mudar de critério. Na realidade, porém, uma verdade, para ser aceita na Terra, deve esperar que os cérebros amadureçam e, assim, tornem-se capazes de compreendê-la. O fato de, a princípio, não ser admitida, prova que a verdade é relativa e não pode existir senão em função dos cérebros nos quais tem de penetrar. A base concreta sobre a qual as religiões – apesar de possuírem verdades mais avançadas, recebidas por obra de videntes superi- ores – apoiam na Terra suas verdades religiosas é o consentimento coletivo, que, em vez de ser apenas uma afirmação teórica, tem uma existência real nas mentes e é aceito por parte das massas, formando uma corrente psicológica de fé capaz de introduzir aqueles conceitos na vida. Estes, portanto, são verdadei-

ros enquanto gozarem de tal consentimento, sendo aceitos pela corrente de pensamento. O paganismo, com seus deuses e templos existiu como verdade, enquanto houve quem acreditou nele, porém, tão logo a humanidade deixou de crer nele, parou de existir e não foi mais verdade.

Por isso, quando a crítica busca destruir a fé na qual as religiões se baseiam, estas se rebelam, pois sabem que a destruição desta base psicológica, onde elas estão apoiadas, irá matá-las e, assim, matará também a casta de ministros que as representam. Se cai a forma mental, cai também a religião que sobre ela se baseia. O suporte é psicológico. Os princípios existem na mente de quem crê, mas isto porque e somente enquanto eles acreditam. Criar uma corrente psico- lógica diversa, significa na prática destruir tudo. Compreende-se, assim, por- que o maior trabalho de todas as religiões consiste em lutar para manter de pé a forma mental coletiva que as sustém. Por isso elas procuram basear-se no absoluto, no imutável, no eterno, sendo levadas também ao dogmatismo, com afirmações que concluem em inviolabilidade e indestrutibilidade, para resistir na luta contra todos os assaltos. Trata-se de um problema de sobrevivência. Foi com tais meios que, para seu poderio, o cristianismo lutou contra o Impé- rio na Idade Média.

A substância biológica sobre a qual se erguem as verdades religiosas é jus- tamente este consentimento coletivo, patrimônio humano que custou esforços de milênios para poder ser assimilado e fixado na raça. Isto, portanto, repre- senta um precioso valor biológico, o qual é necessário conservar, mas não para ficar estagnado aí dentro, e sim para ser utilizado como base de novos desen- volvimentos. Assim como o judaísmo foi precioso para o cristianismo, este será precioso para se alcançar elevações ainda maiores.

Tais transformações evolutivas sobrevêm, como em todos os amadureci- mentos humanos, através de lentas incubações e terminam por repentinos sal- tos para diante, que se chamam revoluções. Elas também existem nas religiões, porque esta é a forma do progresso evolutivo em todos os campos humanos. Quando chega a hora do salto, a revolução se concentra em torno de um chefe. Então há luta. Perante o mundo, ele não aparece como um condutor de verda- des superiores, o que interessa a bem poucos, mas sim como um agitador das posições adquiridas, que na Terra são fundamentais. Nele se vê sobretudo um novo pastor, que quer expulsar os velhos, para substituí-los na direção e posse do rebanho. Isto é o que de Cristo compreendeu o hebraísmo. Para as velhas

religiões, o novo que surge é sempre um herege, devendo, por isso, ser destru- ído em nome de Deus.

Esta é a razão pela qual as religiões temem qualquer um que desperte as consciências, porquanto é mais cômodo que estas permaneçam no sono. Afi- nal, verdades novas e conceitos mais avançados não servem para as massas, que se adaptam antes à lenta repetição mecânica secular, feita sem pensar, para se orientarem em direção ao alto, mas cansando-se o menos possível. E as re- ligiões devem servir às massas, feitas de almas primitivas, cuja exigência é que lhes seja servido um alimento a elas proporcionado. E servi-lo é justamente a função dos administradores do ideal. Ambas partes acabam por caminhar em acordo, porque, no fundo, pastor e rebanho desejam a mesma coisa. O primei- ro quer estabilidade, para não perder sua posição terrena, enquanto o segundo quer reduzir ao mínimo o esforço de evoluir. É assim que, quando aparece um ser como Cristo, acabam por crucificá-lo. E quem quer segui-Lo encontra-se perante a muralha da incompreensão humana, cuja resistência lhe impõe um lastro imenso a arrastar para frente.

Este é o jogo que acontece em nosso mundo, no atual nível evolutivo. Exis- tem, como dizíamos há pouco, verdades religiosas que constituem um patri- mônio precioso. Este foi longamente elaborado e acumulado com esforço, por obra milenária de sugestão educadora, fixada na psique das massas, que repre- senta hoje uma corrente de pensamento coletivo imponente. Tudo isto merece respeito, sendo um capital biológico que deve ser defendido. Mas também existe o progresso, que leva à conquista de ideias novas, e estas têm de ser fixadas na psique das massas. Mesmo quando a ciência, avançando, descobre que as velhas verdades estavam equivocadas, não se pode destruí-las de repen- te, porque elas devem e têm de cumprir a sua função biológica no nível e no momento em que nasceram e existem. Somente destruir o velho nada deixa em seu lugar, e no vazio não se pode viver. É necessário, então, não destruir de repente todas as coisas velhas, mas sim transformá-las pouco a pouco em no- vas, de maneira que possam ser substituídas sem deixar vazios, nos quais não se saberia mais como dirigir-se. Assim, vemos que, mesmo deixando de pé a ilusão de se possuir verdades absolutas, exigida pelo mundo, vive-se na reali- dade em função de verdades relativas e progressivas, como afirmamos.

Deste modo, ainda que sustentando verdades absolutas, pode-se obedecer à exigência de um movimento contínuo em direção ao absoluto, por aproxima- ções sucessivas. Evidentemente, o instinto humano de subir leva ao desejo de

uma rápida satisfação, antecipando assim a chegada do ponto final da evolu- ção, que é o absoluto, dando-o como alcançado. Mas este ponto, de fato, está longe. Então é mais verdadeiro e mais condizente com a realidade permanecer positivo, reconhecendo que estamos longe daquele ponto, mas que nos avizi- nhamos dele a cada dia, evoluindo. Portanto é imprescindível renovar-se, mas procurando destruir o menos possível, para deixar de pé o que de bom e utili- zável possa existir no passado. É justo, por lei da vida, que os jovens substitu- am os velhos, mas não é necessário que os jovens os matem por este motivo. Basta esperar que os velhos morram. Assim, quando uma religião, por falta de maturidade coletiva, não está em condições de aceitar novas verdades, a única solução é esperar. Mais tarde, ela irá procurá-las, porque se terá apercebido de que foi superada por elas. Então, com medo de não chegar a tempo, a religião correrá para incorporar as novas verdades, que ela mesma condenou inicial- mente. E, de fato, é isto que costuma acontecer.

Esta é a técnica da evolução das religiões. Eis a mecânica do contínuo e fa- tal movimento para fazer avançar quem diz e crê permanecer imóvel. Confor- me nos mostra o exemplo de Cristo e de muitos de seus seguidores menores, isto é o que aconteceu, acontece e poderá acontecer em todas as religiões.

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