• Nenhum resultado encontrado

O extrativismo no Cerrado norte-mineiro: elo entre camponeses e biodiversidade

No documento IGOR SIMONI HOMEM DE CARVALHO (páginas 123-129)

Capítulo 2 Contextualizando: o campesinato e a conservação do Cerrado no Norte de Minas

2.9. O extrativismo no Cerrado norte-mineiro: elo entre camponeses e biodiversidade

As regiões abrangidas pelo Cerrado estão entre as que ocupam a posição de maior destaque como áreas destinadas ou aptas à atividade extrativa. Historicamente, e ainda hoje, sua biodiversidade tem grande importância para as populações do bioma, especialmente as camponesas (ALMEIDA, 1998; SAWYER et al., 1999; PEREIRA, 1996; HIRONAKA, 2000; NOGUEIRA, 2005). Silva (1998), por exemplo, mostrou os diversos usos que se faz das plantas nativas pelas comunidades da região do Parque Nacional do Grande Sertão Veredas, no Noroeste de Minas Gerais. As estratégias de sobrevivência humana no Cerrado sempre incluíram inúmeras espécies vegetais usadas para alimentação, construção de casas e abrigos, medicina, combustível.

A atividade extrativa no Cerrado é, via de regra, complementar à pequena produção agropecuária (SAWYER et al.,1999), mas pode ser a atividade econômica principalde algumas famílias, como nos casos de extrativistas e comerciantes de pequi de Goiás e do Norte de Minas (OLIVEIRA, 2006). Conforme já mencionado, pouco ou nenhum investimento financeiro é requerido à atividade extrativa, que se apresenta, portanto, bastante acessível às camadas menos capitalizadas da zona rural.

Dentre as espécies extrativas do Cerrado, o pequi (Caryocar brasiliense) é provavelmente a principal. Seu fruto é chamado de “ouro do Cerrado”, e sua madeira é também de excelente qualidade. O pequitem grande importância econômica e nutricional, em especial

102

no Norte de Minas e o estado de Goiás (RIBEIRO, 2000; OLIVEIRA, 2006; AFONSO & CARVALHO, 2009). Segundo dados do IBGE de 2004, foram comercializados quase 1000 toneladas de pequi pelos municípios da meso-região Norte de Minas. Somente na micro-região de Grão Mogol, que inclui Itacambira, Botumirim, Cristália, Josenópolis e Padre Carvalho, foram 132 toneladas. É importante ressaltar que a maior parte do pequi é comercializado informalmente, não sendo registrado nos dados oficiais, e sendo difícil arriscar uma estimativa do volume comercializado anualmente. A Tabela 2 mostra os principais municípios do Norte de Minas onde ocorreu a comercialização do pequi em 2004.

Município (MG) comercializadas em 2004 Toneladas de pequi

Lontra 168 Japonvar 105 Patis 70 Brasília de Minas 69 Varzelândia 69 Ibiracatu 66 Montes Claros 59 Coração de Jesus 57 Bocaiúva 55 Grão Mogol 52 Itacambira 28 Luislândia 27 Botumirim 21 Olhos-d'Água 16 Cristália 13 Guaraciama 11 Jequitaí 11

Claro dos Poções 10 Josenópolis 9 Padre Carvalho 9

São Romão 8

Ibiaí 7

São João da Ponte 6 Buritizeiro 1 Tabela 2. Volume de pequi comercializado em municípios do Norte de Minas em 2004 (em toneladas). Fonte: IBGE.

103

Já o buriti (Mauritia flexuosa), tem cerca de onze usos, da raiz à seda que forra suas folhas jovens (SAMPAIO, 2012). A mangaba é usada na alimentação e seu látex teve grande importância econômica na primeira metade do século XX. Outros frutos e castanhas comestíveis também têm grande importância, como baru (Dypterix alata), babaçu (Orbignya

phalerata), cagaita (Eugenia dysenterica), coco-butiá, gabiroba, palmito da gueroba, murici,

araticum (Annona crassiflora), jatobá (Hymenaea stignocarpa), araçá (ALMEIDA et al., 1990; ALMEIDA & SILVA, 1994; SILVA et al., 2001).

Existe uma grande diversidade de plantas medicinais no Cerrado, ao ponto deste bioma ser conhecido como uma “farmácia viva” (Articulação Pacari, 2005). Felfili & Borges Filho (2004) dão especial destaque ao extrativismo da casca do barbatimão (Stryphnodedron adstringens), mas muitas outras merecem menção, como: arnica, barbatimão, pacari, sucupira, quina-de- vara, cajuzinho, cavalinha, carqueja, salva-vida, braço-forte (DAYRELL, 1998).

Muitas madeiras foram fundamentais à construção de casas, cercas, currais, paióis e outras instalações, como a aroeira, sucupira, jatobá e buriti. A maior parte das boas madeiras nativas do Cerrado são hoje imunes de corte, pelo fato de, historicamente, sua extração ter sido predatória; o que não impede a possibilidade de replantios e planos de manejo que visem a sustentabilidade da extração madeireira no Cerrado.

Outras plantas são usadas para a confecção de artesanato e utilitários. Schmidt (2005), por exemplo, destaca o extrativismo de capim dourado (Syngonanthus nitens) no Jalapão, estado do Tocantins, como uma atividade que promove a geração de renda e a conservação da biodiversidade na região. O extrativismo de sempre-vivas (família Eriocaulaceae) tem também grande importância econômica no Distrito Federal, Goiás e Minas Gerais (SAWYER et al., 1999). Além disso, existe o papel fundamental da lenha, oriunda de inúmeras espécies, e produto indispensável na zona rural como fonte de energia calorífica na preparação de alimentos (ABRAMOVAY, 1999; DIAS, 2006). Galinkin (1999) destaca ainda a existência de mais de 200 espécies de plantas com interesse apícola.

Até mesmo os capins nativos, comidos por bovinose eqüinos criados em áreas de Cerrado, podem ser considerados produtos do extrativismo vegetal no bioma. Segundo o

check-list da flora do Cerrado, existem no bioma 510 espécies de gramíneas, das quais se

destacam os gêneros Paspalum (104 espécies), Panicum (67), Axonopus (25), Ichnanthus (23), Aristida (23) e Andropogon (18), que ocorrem na maior parte das fitofisionomias do Cerrado: campos limpo, sujo e rupestre; cerrado ralo, denso e sensu stricto; cerradão; veredas (SANO et

104

al., 2008).Só na região de Grão Mogol existem 41 espécies de gramíneas (PIRANI et al., 2003).

Diversas outras espécies são forrageiras, como as leguminosas do gênero Stylosanthes, conhecida no Norte de Minas como malineira, e outras podem ainda ser utilizadas na produção de ração, como, por exemplo, o côco da palmeira Attalea geraensis, conhecida como catolé ou pindoba.

Algumas características das espécies do Cerrado, especialmente das frutas, dificultam a adequação da atividade extrativa aos mercados convencionais, que exigem escala, padronização e previsibilidade (CARVALHO, 2007). Dentre estas características, está a dispersão das populações das espécies de valor econômico, o que aumenta em muito o custo de transporte para reunir uma quantidade significativa do produto, em contraposição à produção concentrada das monoculturas. A produtividade das frutas, em geral, depende de chuvas em períodos determinados, sendo assim muito irregular de ano pra ano. O florescimento e a frutificação podem ocorrer em períodos diversos do ano, dificultando o planejamento da coleta. Além disso, há uma grande variabilidade genética nas populações das espécies nativas, resultando em pouca padronização no tamanho, cor, gosto. As políticas públicas e ações da sociedade civil relacionadas ao extrativismo no Cerrado foram também detalhadas em minha dissertação de mestrado (CARVALHO, 2007).

Muitos autores defendem a agregação de valor por meio do beneficiamento dos produtos extrativistas e camponeses em geral (por exemplo, a transformação de frutas em geléias e licores, o envasamento e a rotulagem) como forma de facilitar o acesso aos mercados e melhorar a renda dessas populações (ABRAMOVAY, 1992; CARVALHO, 1998; SOUSA- SANTOS & CÉSAR, 2002; VEIGA, 2002). Contudo, a agregação de valor exige investimentos que, muitas vezes, são inacessíveis aos extrativistas do Cerrado. Há ainda dificuldades no atendimento às normas sanitárias legais, fortemente influenciada pelos padrões industriais de produção em larga escala, gerando risco de fechamento das unidades de beneficiamento. Em geral, falta aos técnicos e órgãos do serviço de inspeção compreensão sobre as especificidades dos empreendimentos comunitários de pequeno porte.

Em muitos casos o extrativismo é praticado de forma despreocupada e sem critérios, onde não se leva em consideração a sustentabilidade da coleta (PIRES & SCARDUA 1998). Em geral, porém, onde o extrativismo é praticado não se verifica a extinção local das espécies ou algum prejuízo visível às populações vegetais ou animais (DAYRELL 1998). Tradicionalmente, a coleta extrativista é feita de acordo com a disponibilidade de tempo, a

105

capacidade de transporte e a valorização do produto, seja pela própria família ou comunidade, seja nos mercados local ou regional. Nos locais onde havia grande abundância dos produtos coletados, a coleta dificilmente excedia a capacidade de reposição natural dos ecossistemas. Atualmente, muitas populações de espécies de interesse extrativo foram reduzidas, devido, especialmente, à expansão da produção em larga escala, sendo então pressionadas pelos extrativistas, que muitas vezes respondem às demandas do mercado. Nestes casos, é possível que a atividade extrativa seja insustentável. Em resposta a essa problemática é que surge o conceito de “boas práticas de manejo”, no qual são estabelecidos critérios para a coleta das espécies nativas e ações visando sua sustentabilidade. Dentre estas ações, estão: não coletar a totalidade dos recursos disponíveis, deixando parte dos frutos apodrecerem no chão ou coletando partes das plantas sem matá-la ou danificá-la seriamente; selecionar sementes das espécies nativas para plantá-las em áreas onde já ocorrem (adensamento) ou onde não ocorrem, especialmente nos quintais e roças; realizar podas e outros tratos que favoreçam a produtividade das espécies de interesse. Nos anos recentes, muitas pesquisas estão sendo realizadas neste sentido, resultando em cartilhas de boas práticas de manejo, como as publicadas para o pequi (OLIVEIRA & SCARIOT, 2010) e para o coquinho-azedo (LIMA et al., 2010).

Existem também algumas iniciativas de cultivo de espécies cuja demanda é maior: plantios de pequi em Iporá-GO (OLIVEIRA, 2006) e em Canarana-MT (empreendimento “Dupaps”) e dos produtores de guariroba (Syagrus oleracea) de Goiás (AGUIAR et al.,1996

apud SAWYER et al., 1999). Pesquisas têm sido realizadas também no sentido de viabilizar o

cultivo e melhor aproveitamento destas espécies, como, por exemplo, por parte da Embrapa Cerrados, de Planaltina-DF, sobre a germinação das sementes, produção de mudas, plantio, beneficiamento e armazenagem dos frutos. É importante que a domesticação das espécies do Cerrado possa ser viabilizada pelas próprias comunidades extrativistas, o que Shigeo Shiki (inf. pess.) chamou de “domesticação camponesa”, a partir de maneiras simples e acessíveis, como: plantio de espécies frutíferas nativas nos quintais; cultivos dessas espécies em sistemas agroflorestais (SAFs); e adensamento de áreas naturais com espécies aproveitáveis. Tal processo, entretanto, dificilmente irá adquirir, no curto prazo, o ritmo e a escala exigidos pelo mercado capitalista, mas tem o potencial de trazer benefícios a estas comunidades no curto prazo e, no longo prazo, também em uma escala regional. Ademais, a domesticação realizada pelos próprios extrativistas pode ampliar o mercado para tais produtos, mas sem saturá-lo

106

(SAWYER et al., 1999), corroborando com a hipótese de “aliança” entre cultivo e extrativismo defendida por Homma (1989).

A coleta dos produtos extrativos é realizada, muitas vezes, em propriedades de terceiros, geralmente fazendas de médios e grandes pecuaristas. Em alguns casos, os proprietários cobram pelo acesso aos recursos; em outros, permitem que a atividade seja realizada livremente, estabelecendo relações cordiais com as comunidades vizinhas (CARVALHO, 2007). É comum, entretanto, a emergência de conflitos entre extrativistas e proprietários de terras, como no caso de coletores de pequi no Norte de Minas (RIBEIRO 2000), de babaçu no Bico do Papagaio (TO) e da castanha de baru (Dipteryx alata) no Oeste Goiano (SAWYER et al., 1999).

Nas áreas de Cerrado do Norte de Minas, o extrativismo tem grande importância para as comunidades rurais, tanto que os sistemas produtivos geraizeiros são caracterizados como “agroextrativistas”. A presença de produtos como o pequi são traços marcantes de sua cultura, e o peso econômico nas unidadesprodutivas familiares é de grande relevância. Oextrativismo de plantas frutíferas, oleíferas, medicinais, de madeira e de forragem é intensamente praticado pelas populações locais com fins domésticos e comerciais, sendo que em muitas das comunidades ele representa a principal fonte de renda. Além das espécies frutíferas já mencionadas, temos diversas espécies medicinais, como a quina de vara (para cura de doença do estômago), o cajuzinho (rins, fígado e dor de barriga), a cavalinha (coluna e pressão baixa), a carqueja (estômago, cabelo e sangue), a salva-vida (sangue) eo braço forte (dor de barriga e sangue) (DAYRELL, 1998). Grande importância também é atribuída à caça de animais silvestres (considerada uma forma de extrativismo) como complemento protéico para comunidades rurais do Cerrado (MOREIRA et al., 2008).

Com a chegada da agricultura de larga escala na região, a atividade extrativa ficou comprometida, pois ocorria principalmente nas áreas de chapada, justamente as que foram tomadas pela monocultura do eucalipto. O extrativismo, como elemento marcante na cultura geraizeira, tem impulsionado a luta pela reconquista de seus territórios, e pela recuperação da vegetação nativa que aí existia. Torna-se, assim, uma arma política no enfrentamento das forças que vêm se sobrepondo ao seu modo de vida e dificultando sua reprodução sócio- econômica. Torna-se, ao mesmo tempo, aliado na luta pela recuperação dos ecossistemas e dos serviços ambientais relacionados. Vale lembrar que as chapadas são as caixas d‟água do

107

Cerrado, podendo também fixar grande quantidade de carbono atmosférico e abrigar significativa riqueza biológica.

A prática extrativista faz com que os Geraizeiros assumam o papel de “vigilantes” territoriais, já que os recursos coletados em geral estão dispersos pelo território que habitam. O extrativismo confere aos Geraizeiros também o papel de “guardiões da biodiversidade”, pois os mantêm em contato permanente com a biodiversidade que os rodeia. O incentivo à coleta de frutas nativas feito pela Cooperativa Grande Sertãotem possibilitado a identificação de áreas de Cerrado preservado, que passam a ser melhor vigiadas pela comunidade extrativista junto ao CAA-NM e à Cooperativa (CARVALHO, 2007). Um caso emblemático desse tipo de situação é o da comunidade Água Boa 2, em Rio Pardo de Minas, onde a identificação e o mapeamento de uma área tradicionalmente utilizada para o extrativismo, denominada “Areião”, evitou seu desmatamento e suscitou a luta pela criação, no local, de uma Reserva Extrativista (CARVALHO, 2007; CORREIA et al., 2008).

Assim, pode-se afirmar que o extrativismo no Cerrado, especialmente do Norte de Minas, possui grande importância tanto do ponto de vista econômico quanto do ponto de vista da sustentabilidade ecológica, sendo adequada à realidade camponesa e podendo propiciar, a estas populações rurais, melhorias de renda e qualidade de vida. Propõe-se incluir, sob o conceito de extrativismo, também o fornecimento de capins e outras espécies nativas para o gado e outros animais que pastam.

No documento IGOR SIMONI HOMEM DE CARVALHO (páginas 123-129)